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A guerra dos dois mundos
Robert Kurz
As contradições da globalização
se fazem notar também sob o aspecto militar: numa nova espécie, pós-moderna, de guerra. É o que mostra a comparação com os fatos
do passado. No período histórico há
pouco encerrado, estavam frente a frente
as superpotências EUA e União Soviética, os dois mais poderosos Estados do
planeta. A corrida armamentista entre
essas superpotências, conduzida mediante gastos vultosos, produziu um temor duradouro de que viesse o inferno
de uma troca de golpes intercontinental,
com pesadas armas atômicas.
Esse temor se espalhou pelo mundo todo e precipitou-se sobre o plano cultural-simbólico nas produções da grande literatura, da ficção científica e da cultura
popular. Um movimento pacifista em
nível global com pretensões moralizantes colocou-se contra o perigo anunciado
de destruição da humanidade pelos poderosos deste mundo.
Sabe-se que tudo saiu completamente
diferente. A guerra atômica mundial não
aconteceu; impedida menos pelos movimentos pacifistas do que, isso sim, pelo
empate entre as superpotências na questão nuclear. Em vez disso, a União Soviética foi guarnecida de armas até a morte
financeira, enquanto o sistema estatal-capitalista destruía a si próprio por suas contradições internas.
Desde então, só há uma superpotência:
os EUA. O espectro da guerra atômica
em escala mundial, a ser travada entre os
dois Estados mais poderosos, dissolveu-se no ar; a respectiva literatura apocalíptica hoje não passa de mero material cultural arqueológico.
Confronto contra espectros
Mas o "one world" da globalização capitalista
não se tornou mais pacífico. Pelo contrário: ameaça afundar num mar de sangue
e lágrimas. O centro ocidental do capital
mundial, sob a hegemonia militar dos
EUA, sente-se desafiado por um novo
inimigo, que surge no lugar do "império
do Mal" outrora localizado no Leste. Esse inimigo, tal qual o contra-império desaparecido, tem características que lhe
são comuns.
Diante dele as velhas oposições de interesses nos países-núcleo capitalistas industrializados perdem ainda mais força
e se diluem como nunca antes. A supremacia militar dos EUA, em todo caso,
não enfrenta concorrência; e além disso
a globalização do capital tornou infundada a luta entre impérios nacionais por
zonas territoriais de influência. Alega-se
que o aparato militar globalmente presente dos EUA, ao qual estão subordinados os Exércitos dos países europeus via
Otan [aliança militar ocidental], não estaria privilegiando interesses nacionais
específicos estadunidenses, e sim protegendo os modos de produção unificados
e o funcionamento do mercado mundial
contra "distúrbios".
Daí já podemos inferir que a nova imagem de inimigo tem um caráter diferente
de todas as anteriores. Não se trata mais
de uma concorrência imperial entre poderes de igual linhagem e mesmo nível,
mas do confronto violento com os espectros de crise global nas formas mutantes
em que estes se apresentam: "Estados
delinquentes", "warlords", máfias, bandos armados, seitas religiosas e de todos
os que apadrinham aquela economia de
pilhagem que segue a globalização como
uma sombra.
As motivações ideológicas, religiosas e
socioeconômicas dessa difusa imagem
de poder não têm mais nenhum fundamento social ou cultural próprio. São,
sem exceção, produtos em decomposição e putrefação do próprio capitalismo
"one world". Os membros do Taleban,
por exemplo, nunca foram algo diferente
de um misto de máfia das drogas (no caso, a heroína), adereço hollywoodiano e
ideologia pós-moderna disfarçada de religião. Algo não mais exótico que ativistas antiaborto, milícias racistas e psicopatas americanos que matam quem encontram pela frente, as seitas protestantes importadas pela América Latina ou
os bandos de radicais da extrema direita
na Europa.
Aqueles que os EUA intitulam "Estados delinquentes", ora países como Irã,
Líbia, a parte sérvia do que restou da Iugoslávia e agora novamente o Iraque,
constituem na guerra pós-moderna da
nova ordem mundial um mero fenômeno de transição. São ditaduras que sobraram da época passada e se tornaram
disfuncionais para o sistema mundial
unificado. Com seus Exércitos arcaicos e
sistemas de armas provenientes de uma
industrialização fracassada, elas se brutalizam em suas ruínas de modernização, adquirem autonomia e se tornam
imprevisíveis. Por isso, têm que ser forçosamente apaziguadas.
Porém, por trás desses modelos fora de
linha, evidenciam-se fenômenos bem diferentes, eles próprios produtos da nova
época. Se bem observarmos o espectro
dos novos "impérios do Mal", veremos
uma progressiva transição para estruturas que não se localizam mais no plano
estatal do poder político e militar. O regime intransigente de Saddam Hussein é
mais uma clássica ditadura da modernização, um resquício da Guerra Fria. Milosevic, com seu governo-máfia, já foi
um novo tipo de "potentado da crise" sobre as ruínas de uma máquina estatal
destruída pelo mercado mundial. O domínio taleban só tinha alguns poucos resíduos de um Estado moderno para
mostrar. E um fenômeno como a Al Qaeda está definitivamente assentado sobre
um terreno pós e subestatal.
Nova feição de poder
Essas e outras formas semelhantes de seitas armadas, empresas privadas militarizadas, certos bairros e regiões inteiras dominadas por bandos de criminosos etc., disseminam-se há um bom tempo por todo o
mundo e também pelos próprios países
do Ocidente. A Al Qaeda é somente a primeira dessa nova e bárbara feição de poder, que em suas quase inacreditáveis dimensões transformou-se num desafio
direto para a potência mundial EUA e
tem de ser combatida por operações militares em grande escala como se fosse
um Estado concorrente.
Esse desenrolar dos fatos foi previsto
há muito tempo. Na literatura, autores e
autoras, como por exemplo a escritora
americana Marge Piercy (1936) em seus
romances de "social phantasy", descreveram desde os anos 80 um mundo de
pesadelo, descivilizado, em que não existem mais Estados territoriais, e sim apenas "zonas" difusas de conglomerados
transnacionais armados, de um lado, e
bizarras favelas, de outro, empestadas
por novas epidemias e dominadas pela
primitiva lei do mais forte. No domínio
da ciência política, teóricos dos anos 90,
como Martin van Creveld, historiador
militar israelense, reviram a expressão
"guerra civil", tão insuficiente para definir os confrontos armados como os que
eclodiram em muitas regiões do mundo
com o fim da União Soviética. Van Creveld extrapolou a expressão para chegar
ao conceito de uma "guerra pós-estatal"
que, segundo ele, deverá se espalhar sobre o mundo do século 21.
Tal guerra não será mais conduzida entre Estados, como nos tempos de prosperidade do capitalismo, mas a longo prazo; além disso, não mais será travada entre o último Estado superpotência e um
poder como a Al Qaeda, que foge a toda
representação pelas categorias da modernidade burguesa. A guerra do futuro,
segundo Van Creveld, acontecerá após o
desaparecimento do mundo de Estados;
ela acontecerá entre poderes dos quais a
Al Qaeda poderia ser uma espécie de protótipo. Essa tendência também pode
ser deduzida do caráter radicalmente transformado dos movimentos de guerrilha por todo o mundo.
Na história pregressa da modernização, a guerrilha era um Estado "em potencial", um fenômeno de formação de Estado, portanto. A guerrilha de hoje
nas Filipinas ou na Colômbia, por sua
vez, não quer mais se tornar Estado; ela
já é um fenômeno de desestatização.
O mundo oficial do capitalismo e da
democracia -sobretudo, claro, o mundo dos Estados ocidentais, com os EUA
na ponta- perseguiu as novas forças,
gestadas em seu próprio ventre, por uma
estratégia duradoura de recusa e recalque. Primeiro, agiu-se como se, após o
declínio do antigo "império do Mal", fosse fácil manter sob controle e pouco a
pouco fazer perecerem numa era de Estado democrático em escala internacional, baseada na unificação dos mercados
mundiais, coisas tão desagradáveis
quanto práticas de violência, guerrilha,
máfia, terrorismo etc.
Hoje até se anunciou um novo inimigo
global, resumido no conceito de "terrorismo". Mas tal imagem de inimigo permanece inconcebível para a ideologia
mundial oficial, porque essa ideologia
não tem o menor interesse na verdadeira
natureza desse inimigo.
Também no passado os grandes conflitos globais sempre foram, naturalmente,
resultado da própria modernização
-fosse o caso da luta entre os impérios
nacionais desde o final do século 19 ou o
conflito de sistemas após 1945.
Nesses conflitos, no entanto, o "Mal" se
deixava com muito mais facilidade construir-se como uma imagem de inimigo
externo, pois afinal de contas sempre se
tratava, de fato, de potências adversárias
externas, de Estados concorrentes ou sistemas fundados no solo comum do mercado mundial. Al Qaeda e congêneres,
por seu lado, não são nem Estados nem
sistemas sociais. O "Mal" não é mais um
"império" territorial, e sim um fenômeno interno da própria globalização. Por
isso, a nova imagem de inimigo, modelada a duras penas, é transparente e permite que vislumbremos o fundo comum de
democracia e terrorismo, de mercado e
máfia, de razão burguesa e loucura, de
Iluminismo e pseudo-religioso contra-Iluminismo.
Mas as elites de poder ocidentais são
incapazes de reconhecer no inimigo e
"autor de distúrbios" da ordem seu parente mais próximo e mais íntimo. Característica, aliás, que elas compartilham
com a maioria dos cidadãos comuns da
economia de mercado. E, quando o cidadão não sabe mais o que fazer, já que se
sente acuado pelos monstros e espectros
incubados pela irracionalidade de seu
próprio modo de vida e ordem social, aí
ele chama a polícia. Na era da globalização e de seus espectros de crise, quem
tem de agir imediatamente em nível global é uma polícia que deve, ela mesma e
de arma em punho, apaziguar as contradições sociais.
Graus do distúrbio
O conceito de "polícia mundial", com o qual os EUA já
no passado haviam sido caracterizados,
só agora adquire seu sentido completo e
se torna literal. O resultado são os contornos supranacionais de tropas organizadas da polícia mundial sob o comando
dos EUA, extrapolando a estrutura até
então vigente da Otan. Embora não exista nem possa existir de modo nenhum
um Estado mundial, a última potência
do planeta reivindica o monopólio da
força em nível global e, com isso, põe em
questão o próprio princípio moderno da
concepção de Estado para o resto do
mundo. Além do mundo de Estados do
Ocidente só restam "zonas" do planeta
com diferentes graus de "distúrbio".
Nesse sentido, partindo dos EUA como aparato central de força, a doutrina
militar ocidental transformou-se radicalmente. Com isso, ficou claro mais
uma vez o nexo estrutural interno entre
desenvolvimento capitalista e promoção
de guerra. Os aparatos militares não estão sendo desguarnecidos, e sim reguarnecidos. A "desterritorialização" da sociedade, que no processo da globalização
aparece economicamente e, na paralisia
da regulação nacional-estatal, politicamente, faz-se notar também no plano
militar, no desmantelamento dos tradicionais grandes Exércitos nacionais.
Não é mera coincidência que o vocabulário desse reaparelhamento militar lembre as campanhas pela "flexibilização da
mão-de-obra". Como no modo de produção capitalista, em que no lugar de
"exércitos de trabalho" em massa aparece um sistema global de áreas de atuação
mais diversificadas, extremamente enxutas em termos empresariais e com alta
mobilidade, na estratégia militar o paradigma de tropas especiais flexíveis e de
ação mundial com armamentos "high-tech" dissolve-se no paradigma de exércitos de massa baseados na infantaria e
nos veículos blindados.
Decisivo para essas transformações é
que o serviço militar deixe de ser um setor com implicações sociopolíticas. Ele
se torna um "serviço temporário" para
profissionais bem treinados, algo como
assentar azulejos ou vender carros. Por
essa razão é que o fim do Exército baseado no serviço militar obrigatório faz parte da lógica de tal reaparelhamento. As
máquinas de destruição de última geração aparecem como "postos de trabalho" absolutamente normais.
De modo diferente das inflamadas batalhas de Estados-títeres da Guerra Fria,
como as que ocorreram na Coréia, Vietnã etc., também não há mais, portanto,
heróis de guerra.
As novas guerras policiais em âmbito
global dão antes a clara impressão de
uma espécie de extermínio químico-eletrônico de ervas daninhas e pragas ou
igualam na consciência pública operações para apagar incêndios florestais e
operações de socorro após terremotos.
Com isso se evidencia uma polarização
que corresponde exatamente aos lados
da globalização e da crise: lá no céu, o filisteu "high-tech" pós-moderno desfazendo-se de sua carga de bombas; cá na
terra, o elemento aparentemente arcaico
pós-moderno, que sai saqueando e estuprando por suas imediações, munido de
espingarda, machado e faca. Não dá para
decidir qual dos dois representa monstro
pior. Ambos são na mesma medida marcados pela ignorância em relação aos
contextos sociais que os produziram.
Superioridade inócua
A gigantesca superioridade militar da polícia mundial, entretanto, vai se mostrando cada vez mais inócua. Não só a crise social
mundial, cujas causas são ignoradas, está
gestando novos poderes pós-estatais e
pós-políticos segundo o padrão Al Qaeda, mas também os golpes dos aparatos
de alta tecnologia ameaçam cair no vazio
também no plano militar.
Um lutador armado de facão não pode
enfrentar um caça invisível, mas o inverso também é válido. Não há mais nível de
luta comum às duas partes. Não se pode
colocar uma polícia mundial atrás de cada jovem "supérfluo" para o capitalismo
mundial ou moralmente desleixado, ainda que os cassetetes usados estejam cada
vez mais pesados.
O governo americano agora quer desenvolver até armas atômicas "formato
polícia mundial" (as "Mini-Nukes").
Mas a tentativa de manter em xeque por
meio de uma polícia mundial "high-tech" os territórios devastados pelo mercado mundial num universo economicamente desterritorializado com toda certeza está fadada ao fracasso.
E é justamente por isso que essa tentativa pode se arrastar, torturante, por tanto tempo ainda.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor
de "Os Últimos Combates" (ed. Vozes) e "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e Terra). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Marcelo Rondinelli.
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