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A ponta do iceberg
Crise que
atinge o Masp
pode se estender
a outros museus
se não se
modificar a relação entre
Estado, iniciativa
privada e
sociedade civil
TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nenhuma questão
de cultura é apenas um caso singular, nenhuma
questão de cultura
se resolve apenas num formato
estrutural. Caso e forma geral
se combinam para gerar efeitos. Portanto, as saídas para
uma questão cultural serão
buscadas na convergência dos
dois planos.
A questão Masp -hoje constrangedora para o museu mas
também para toda a política
cultural pública ao redor- inclui um caso singular a chamar
a atenção geral: a ausência de
um projeto curatorial de prazo
pelo menos médio, distinto da
simples inércia rotineira, tocado por um curador estável e
que arme o diálogo do museu
com sua coleção e com a arte da
cidade e do mundo. Um projeto
curatorial dá ao museu uma linha cultural que lhe desenha
uma trajetória econômica.
Economia e idéia cultural
andam juntas, mas é a idéia
cultural que determina, não a
economia, e é o projeto curatorial que aponta os rumos, não o
inverso. Um museu se faz com
uma idéia curatorial e se desfaz
sem ela. Esse é um aspecto singular desse caso. O resto são
detalhes, de discussão interna
do museu ou não, mesmo porque, no resto, o Masp é largamente viável, se quiser.
Seria, porém, um erro cômodo supor que a questão Masp se
resume a um aspecto e a alguns
nomes ou incidentes. A forma
geral do problema é sua dimensão sistêmica, determinante
num país fragilizado como este. Por sua condição simbólica,
o que ocorre no Masp é mais
que a ponta do iceberg. Nem
por isso constitui um caso isolado, contendo em si toda a origem de seu problema.
Na perspectiva do sistema da
arte, a chamada crise do Masp,
que não é só dele, remete, antes
de nada, à rediscussão de um
contrato social para os museus.
Admiti-lo significa aceitar
que, no sistema da arte do qual
os museus são cabeças-de-ponte (sobretudo fora daqui, porém aqui também), quase nada
mais, em país fragilizado, pode
ser feito por um único ator social. O Masp é privado, mas o
privado, aqui, não dá conta.
O poder público, sozinho, sozinho -e fará melhor se entender que seu papel é adotar uma
política cultural de cooperação
com a sociedade civil para que
ela alcance seus objetivos, como seu parceiro, e não seu concorrente.
À iniciativa privada, como ao
terceiro setor, cabe entender
que deve responder pelo que
faz ("accountability") não só
em termos de manejo do eventual dinheiro público usado como de projeto. E entender, de
vez, que responsabilidade social pela cultura não significa
só patrocinar exposições mas
comparecer o tempo todo,
mesmo quando o assunto não
tem glamour (pagar conta de
luz). E ao terceiro setor cabe
arregaçar muito mais suas
mangas culturais.
Carros e cultura
Nessa rediscussão do contrato social para os museus, o poder público poderia esclarecer,
por exemplo, pois também ele
deve prestar contas, por que a
indústria automobilística (que
pode se deslocar para a China a
qualquer momento) recebe
tantos poderosos incentivos
(ganha o terreno, não paga impostos durante anos, tem financiamento público a juros
amigos) enquanto o setor cultural, em que, no entanto, trabalham muito mais pessoas, fica apenas com os clássicos, limitados e criticados incentivos
fiscais (e, no entanto, um museu nunca iria se deslocar para
a China, nunca os recursos nele
investidos se esfumariam da
noite para o dia).
E caberia perguntar, a todos,
por que este país, que tem no
Sesc um modelo de política cultural bem-sucedida, coisa de
Primeiro Mundo, não gera solução análoga para os museus
-quer dizer, amparo público,
gestão privada e significação
social.
Há, claro, outros tópicos de
caso a enfrentar: por que em
Buenos Aires uma coleção ótima, embora reduzida (comparada ao que há aqui), consegue
construir para si um museu novo, de primeira linha -o Malba- e aqui o Masp não consegue pagar a conta da luz? Por
que Porto Alegre constrói um
museu novo para Iberê Camargo (1914-94) e aqui o Masp não
consegue pagar a conta de luz?
O exemplo de Ciccillo Matarazzo [criador do Museu de Arte
Moderna de São Paulo] está
morto e esquecido? Por quê?
Vão livre
Esses dois casos estão, por
certo, imersos em duas outras
formas gerais. Nenhum configura uma pergunta que caiba só
ao Masp responder.
No vão livre do Masp, que
não pode ser só uma boa metáfora, há espaço para uma grande mesa redonda e três cadeiras
para três personagens: poder
público, iniciativa privada e sociedade civil. Uma quarta se reservaria a um convidado que
não precisa ser apenas observador: o sistema S (Sesc, Sesi).
Na pauta, o novo contrato social dos museus: administração
(mandatos de diretoria de museus públicos, participação do
setor privado no museu público
e vice-versa), finanças (incentivos, aportes diretos do setor
público e do privado) e projeto
curatorial (desenvolvimento
da coleção, papel cultural, competências).
Sem um novo contrato -para todos os museus, públicos e
privados-, nem museus hoje
sem crise aparente (mas ela está ativa no coração do sistema)
se verão livres de virar icebergs
a derreter -não sem antes
afundar mais uma ou outra
idéia de cultura.
TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e autor de
"Niemeyer" e "Guerras Culturais" (ambos pela
editora Iluminuras), entre outros livros.
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