São Paulo, domingo, 28 de junho de 2009

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Ponto de fuga

Onde a terra se acaba e o mar começa


Em "Turismo Infinito", nenhuma improvisação é permitida; forma-se uma realidade paralela, em que os diversos eus de Fernando Pessoa se manifestam


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A companhia portuguesa do Teatro Nacional São João (Porto) apresenta, no Sesc Pinheiros (SP), um espetáculo dirigido por Ricardo Pais, sobre textos de Fernando Pessoa e três cartas de sua amada Ofélia Queirós. Título: "Turismo Infinito".
Dispositivo cênico austero, cinza, insituável. Os atores deslocam-se sem formar um conjunto ou manter um diálogo: são individualidades que pertencem, todas, à mesma abstração. O rigor impera. Tudo é contido e preciso.
Sem formidáveis atores, capazes de tornar incandescente essa frieza de lâmina, o espetáculo não existiria. Ora, eles são jovens e prodigiosos, mestres perfeitos de técnica que se entregam, intensos, às suas encarnações. Emília Silvestre, Pedro Almendra, João Reis, José Eduardo Silva e Luís Araújo personificam o poeta, alguns de seus heterônimos e a mulher querida.
Nenhuma improvisação lhes é permitida, tudo vem controlado. Forma-se uma realidade paralela, em que os diversos eus do poeta manifestam-se, adquirindo uma tessitura transcendente. Ao invadi-la, não se descobrem terras longínquas exóticas, como na epopeia de Camões, mas galáxias interiores.
Junção entre mar e terra, lugar nenhum e, por isso mesmo, verdadeiro, mundo para além do mundo. Viagem dentro de si, por diversos exploradores: não ser ninguém, a menos que se seja muitos.

Cena
Em "Turismo Infinito", os seres, isolados, emanam da mesma matriz, mas não cruzam olhares e não se veem. Num momento de poética flutuação, aproximam-se para uma dança, sem se tocarem.

Dor
"No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação." Consciência de si, consciência que suspeita de si e consciência do absurdo se fundem, o que leva ao sentimento da irrealidade de estar no mundo. Há um impossível lirismo, porque, ao existir, torna-se crítico dos sentimentos que a poesia fabrica. A escrita de Pessoa desdobra-se sobre um paradoxo: viver a impossibilidade de viver. O poeta viaja abstratamente e assim o entendeu com perfeição o "Turismo Infinito". Sua nave é a palavra, a língua, o verso, a ficção.

Dificuldade
"Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser." Trecho de "A Carta da Corcunda para o Serralheiro", escrita por Maria José, heterônimo feminino de Fernando Pessoa, incluída em "Turismo Infinito".

A vida é sonho
"Tenho que escolher o que detesto -ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a ação, que a minha sensibilidade repugna; ou a ação, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu. Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra." Fernando Pessoa, "O Livro do Desassossego".


jorgecoli@uol.com.br


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