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Ponto de fuga
Onde a terra se acaba e o mar começa
Em "Turismo Infinito", nenhuma improvisação é permitida; forma-se uma realidade paralela, em que os diversos eus de Fernando Pessoa se manifestam
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
A
companhia portuguesa
do Teatro Nacional São
João (Porto) apresenta,
no Sesc Pinheiros (SP), um espetáculo dirigido por Ricardo
Pais, sobre textos de Fernando
Pessoa e três cartas de sua
amada Ofélia Queirós. Título:
"Turismo Infinito".
Dispositivo cênico austero,
cinza, insituável. Os atores deslocam-se sem formar um conjunto ou manter um diálogo:
são individualidades que pertencem, todas, à mesma abstração. O rigor impera.
Tudo é contido e preciso.
Sem formidáveis atores, capazes de tornar incandescente essa frieza de lâmina, o espetáculo não existiria. Ora, eles são jovens e prodigiosos, mestres
perfeitos de técnica que se entregam, intensos, às suas encarnações. Emília Silvestre, Pedro Almendra, João Reis, José
Eduardo Silva e Luís Araújo
personificam o poeta, alguns
de seus heterônimos e a mulher querida.
Nenhuma improvisação lhes
é permitida, tudo vem controlado. Forma-se uma realidade
paralela, em que os diversos
eus do poeta manifestam-se,
adquirindo uma tessitura
transcendente. Ao invadi-la,
não se descobrem terras longínquas exóticas, como na epopeia de Camões, mas galáxias
interiores.
Junção entre mar e terra, lugar nenhum e, por isso mesmo,
verdadeiro, mundo para além
do mundo. Viagem dentro de
si, por diversos exploradores:
não ser ninguém, a menos que
se seja muitos.
Cena
Em "Turismo Infinito", os
seres, isolados, emanam da
mesma matriz, mas não cruzam olhares e não se veem.
Num momento de poética flutuação, aproximam-se para
uma dança, sem se tocarem.
Dor
"No meu coração há uma paz
de angústia, e o meu sossego é
feito de resignação." Consciência de si, consciência que suspeita de si e consciência do absurdo se fundem, o que leva ao
sentimento da irrealidade de
estar no mundo. Há um impossível lirismo, porque, ao existir,
torna-se crítico dos sentimentos que a poesia fabrica.
A escrita de Pessoa desdobra-se sobre um paradoxo: viver a impossibilidade de viver.
O poeta viaja abstratamente e
assim o entendeu com perfeição o "Turismo Infinito". Sua
nave é a palavra, a língua, o verso, a ficção.
Dificuldade
"Não é por ser corcunda que
estou aqui sempre à janela, mas
é que ainda por cima tenho
uma espécie de reumatismo
nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse
paralítica, o que é uma maçada
para todos cá em casa e eu sinto
ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar
que o senhor não imagina. Eu
às vezes dá-me um desespero
como se me pudesse atirar da
janela abaixo, mas eu que figura
teria a cair da janela? Até quem
me visse cair ria e a janela é tão
baixa que eu nem morreria,
mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me
na rua como uma macaca, com
as pernas à vela e a corcunda a
sair pela blusa e toda a gente a
querer ter pena mas a ter nojo
ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é
não como tinha vontade de
ser." Trecho de "A Carta da
Corcunda para o Serralheiro",
escrita por Maria José, heterônimo feminino de Fernando
Pessoa, incluída em "Turismo
Infinito".
A vida é sonho
"Tenho que escolher o que
detesto -ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a
ação, que a minha sensibilidade
repugna; ou a ação, para que
não nasci, ou o sonho, para que
ninguém nasceu. Resulta que,
como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de,
em certa ocasião, ou sonhar ou
agir, misturo uma coisa com
outra." Fernando Pessoa, "O
Livro do Desassossego".
jorgecoli@uol.com.br
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