São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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O filme de lugar nenhum

Divulgação
Cena do filme "A Margem"



O crítico relembra a surpresa que sentiu quando viu pela primeira vez "A Margem", marco do movimento, e sua dificuldade em situá-lo na história da sétima arte


por Jean-Claude Bernardet

A primeira conversa que tive com Ozualdo Candeias foi espantosa. Inesquecível para mim, talvez para ele também, já que muitos anos depois, divertindo-se, fez referência a ela. O encontro ocorreu dias depois de eu ter visto "A Margem" pela primeira vez.
O filme tinha me surpreendido por diversos motivos, um deles é que eu não sabia como inseri-lo na filmografia brasileira. Tematicamente, estilisticamente, parecia não ter antecedentes no Brasil. Meu gosto por "A Margem" era bastante dividido.
Por um lado, gostei imensamente desses personagens à deriva, que perambulavam por zonas limítrofes em deterioração, dessas relações entre eles que se esboçavam, mas não se consolidavam. E também da sequência do café no centro da cidade. Por outro lado, apresentei uma nítida resistência aos seus elementos obviamente simbólicos, como a barca de Caronte.
Os aspectos de que gostava me sugeriram uma relação com filmes da vanguarda francesa dos anos 20. Essas andanças, esses descampados -e uma relação com "Limite" (1931) que só depois poderíamos estabelecer, já que naquela época o filme de Mário Peixoto não circulava-, esse esgarçar da trama. Essa possível afinidade com a vanguarda francesa foi o que comentei com Candeias, para a maior surpresa de sua parte, pois ignorava que tal relação pudesse ser estabelecida como também, acredito, desconhecia sua existência.
De repente, Candeias e eu nos encontramos em dois universos culturais que não se comunicavam bem. Candeias não entendia a relação que eu fazia, mas achava ótimo. E eu ficava sem entender como esse cineasta tinha chegado a um tal filme inaugural, que não se encaixava em lugar nenhum. O que revelava a força de Candeias, seu excepcional talento visual e rítmico, que ele tirava de si próprio, e não de uma formação cinematográfica que lhe teria proporcionado uma filmografia a que se pudesse filiar "A Margem".
Depois vários encontros ocorreram, mas um deles não foi menos surpreendente do que o primeiro. Acredito que tenha sido depois de "As Bellas da Billings". Particularmente seduzido por traços deambulatórios e limítrofes que me tinham interessado em "A Margem", mas que agora, depois de "As Rosas da Estrada", se apresentavam depurados, seguros, livres de uma carga simbólica explícita, pensei que seria difícil comentá-los com Candeias, embora 20 anos tivessem decorrido desde "A Margem". Quando Candeias me perguntou o que eu pensava do filme, embora tivesse gostado muito, fiquei hesitante quanto ao que dizer.
Encaminhei a conversa no sentido de fazer com que Candeias me dissesse o que ele pretendia com esse filme. Explicou-me, então, que o filme era uma advertência às moças que se prostituíam ou pensavam em se prostituir, uma advertência às famílias de que não havia nenhuma esperança nesse futuro, mas só degradação, humilhação. Essa mensagem moralista, em que Candeias via o aspecto mais relevante de seu filme, para dizer a verdade, não só eu não a tinha percebido como, para continuar a dizer a verdade, não lhe dava a menor importância. E acredito que o mesmo valia para todas as pessoas do meu meio cultural que apreciavam esses filmes de Candeias.
Cheguei à conclusão de que havia dois cinemas de Candeias. Um deles eram os filmes que ele fazia, com suas preocupações. Outro, eram os filmes que nós víamos. Esses dois cinemas ficavam superpostos, mas não se entrelaçavam necessariamente. Pouco nos importavam as recomendações morais.
E, para Candeias, o simples caminhar pela estrada, o andar a esmo, o ritmo do andar, a espera de algo vago e indeterminado, o desejo latente e sempre insatisfeito, uma pulsação de vida mínima em ambientes degradados, esse despojamento do estilo reduzido a um quase nada às vezes bressoniano -nenhuma intimidade entre "Mouchette - A Virgem Possuída" (1967), de Bresson, as "Rosas" e as "Bellas"?-, esses elementos não interessavam se não viessem carregados das implicações morais que ele lhes atribuía.
Será que Candeias sabe por que amamos seus filmes?

Jean-Claude Bernardet é crítico, roteirista e escritor, autor de "Cinema Brasileiro - Propostas para uma História" (ed. Paz e Terra), "Aquele Rapaz" (ed. Brasiliense) e "A Doença" (Companhia das Letras).


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