São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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Retalhos de Oiticica


O cineasta Ivan Cardoso fala do terceiro documentário que está produzindo sobre o artista plástico e comenta seu longa que parodia o "Arquivo X"


Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

Fanático pela "Família Soprano", o seriado do mafioso que faz análise, e de "A Sete Palmos", sobre uma família de coveiros, Ivan Cardoso, 49, diz que chegou à idade de ver só o que quer: "Eu quero me divertir, não quero me aporrinhar, não quero ver contraluz em barraco, iluminação publicitária do Nordeste..." Anárquico, debochado e apaixonado pelas cenas clichês dos clássicos do terror, o cineasta explica assim a maldição do "terrir" que paira sobre sua carreira: "Desde "Nosferato no Brasil" há uma coisa que me trai: eu faço as coisas a sério e todo mundo acha graça".
Ivan Cardoso está finalizando dois projetos, o longa-metragem "O Sarcófago Macabro", uma paródia do "Arquivo X", e seu terceiro documentário sobre Hélio Oiticica (o primeiro foi "HO", de 1979, e, o segundo, "À Meia-Noite com Glauber", de 1997), uma colcha de retalhos que irá se chamar "Heliorama". Além disso, prepara uma exposição de fotografias de Oiticica afagando um revólver, fotogramas que redescobriu entre antigos rolos de copiões: "É uma sacada genial, porque o revólver hoje em dia é uma coisa nojenta, que só serve para matar, e ele está mostrando ali um uso mais legal, o revólver para dar prazer, para se chupar. Ele novamente está na frente de todo mundo", diverte-se em entrevista à Folha, por telefone, de seu apartamento no Rio.

Por que você deixou as sobras do filme "HO" em hibernação por tantos anos?
Primeiro por um excesso de zelo. Quer dizer, eu gosto muito do trabalho que fiz; tenho muito orgulho de ter podido fazer tão pouco que é muito. Porque todo mundo me conhece mais como mestre do "terrir", pelos filmes "O Segredo da Múmia", "As Sete Vampiras" e "O Escorpião Escarlate", mas eu tenho uma carreira de documentarista que, é chato falar nesses termos, é das melhores que existem neste país. O meu primeiro documentário foi sobre o Moreira da Silva (1974). Depois, em 1977, fiz "O Universo de Mojica Marins", que foi o filme que, de certa maneira, resgatou o Zé do Caixão. Depois fiz um documentário, veja só, sobre Dyonélio Machado, autor de "Os Ratos", fiz "HO" e, em 1997, "À Meia-Noite com Glauber", que é um diálogo entre o Glauber e o Hélio (eu costumo dizer que é um diálogo da estética da fome com a estética da vontade de comer).
E qual o motivo para retomar as "sobras" de "HO" agora?
Eu nunca jogo fora as sobras dos meus filmes; eu já era edwoodiano antes de ter visto o filme do Tim Burton ["Ed Wood", 1994", mas também, por outro lado, não sou tão organizado assim. Infelizmente, desse filme do Hélio, só me sobraram os copiões, os negativos eu perdi. Porque geralmente montam o filme e jogam as sobras fora, não importando que você tenha filmado 12 horas... Tem vários outros filmes ali, basta você saber enxergar, ainda mais no caso do filme do Hélio, que eu filmei mais de uma hora e só montei originalmente 13 minutos.
O que diferencia o "Heliorama" do "HO"?
Esse novo filme nasceu em circunstâncias especiais. Eu estava lendo um livro sobre a belle époque do cinema no Brasil ["Bela Época do Cinema Brasileiro", de Vicente de Paula Araújo, ed. Perspectiva", que faz um inventário justamente daquelas primeiras seções de cinematógrafo, que passavam o negócio do Edison [Thomas A. Edison, diretor de "Frankenstein" (1910)", do Méliès [George Méliès, que, no segmento do terror, dirigiu "A Mansão do Diabo" (1896)", dos pioneiros mesmo. Na época muitas programações eram anunciadas como "novidades excêntricas", aí eu falei "porra, isso aqui é a cara do Hélio Oiticica", aí continuei a ler e descobri, por exemplo, um negócio de "homem-pássaro" que se referia às pessoas que tentavam voar, mas pode ser perfeitamente o parangolé. O Hélio, vestindo um parangolé, vira homem-pássaro. Aí fiz uma paródia de uma seção de cinema mudo com 13 atrações, utilizando outros materiais também. No período em que fiz "HO", por exemplo, eu gravei uma entrevista de mais de uma hora com o Hélio. E ele trabalhou como ator no "Dr. Dyonélio", fazia um senador romano. Esse pedacinho do senador romano, eu transformei num "avant-trailer" do "Sol Subterrâneo", que é um outro livro do Dyonélio Machado, embora não tenha nada a ver a imagem com o livro, é um "fake", mas é um "avant-trailer" desse filme, passado na Roma Antiga. No "Segredo da Múmia", o Hélio fez o papel de um egípcio que participa de uma orgia e que dá um beijo na boca de um outro ator, chamado Arnaldo Muniz Freire; na época a gente não montou por achar que não pegava bem mostrar o Hélio, um artistão, dando um beijo em outro homem, por pudor... E acabei com uma pérola na mão: um beijo proibido. Então, esse episódio em que ele faz um mercador egípcio virou "Euforias em Bagdá". Depois consegui também a fita de uma entrevista que o Hélio deu após a seção do "Universo do Mojica Marins", onde ele aparece ao lado de Zé do Caixão. Essas são -mais o quadro em que ele chupa o revólver, chamado "Eu com o Três Oitão"- quatro atrações de "Heliorama".
Como eram os bastidores da cena artística no Rio na época em que você conheceu e conviveu com HO?
Eu estudava num colégio "prafrentex" aqui da zona sul chamado "Colégio São Fernando: entra burro e sai malandro". Era um colégio em que já tinham estudado o Carlos Imperial, o Jean Marc não sei das quantas [Jean Marc von der Weid, conhecido militante estudantil nos idos de 1968". Eu era uma espécie de líder estudantil, era representante de classe, fazia jornal. Infelizmente todo mundo tem um mal, eu era esquerdofrênico (risos). Só que, por causa dos filmes do Godard, eu era da linha "A Chinesa", então eu e dois colegas de colégio, o Ricardo Barreto e o Sidny Garcia, fazíamos lá uma agitação cultural, a gente passava filmes e convidava artistas para dar palestras. Isso era em 66, 67... Já tínhamos feito uma palestra com o Carlos Vergara e o Rubens Gerchman que tinha ido muito bem, e os dois disseram que eu deveria procurar o Hélio Oiticica, que era o criador da tropicália. Porque também, na época, esse tipo de coisa servia para os artistas darem um "plá" de esquerda, aquele papo. E lá fomos nós bater na casa do HO, eu acho que na época a gente estudava até de calça curta. E, pô, não só nos deparamos com o Oiticica como nesse dia eu conheci o Rogério Duarte e o Torquato Neto. Então foi um dia assim realmente... A gente chegou ao céu, foi o máximo. E foi muito curioso porque, vamos dizer, a gente chegou lá como engajado e tal, e o Hélio me reconheceu: "Você é o neto do Dulcídio Cardoso, que namorava a Esther de Abreu", que era tudo o que eu não queria ouvir, né?; acontece que meu avô foi o último prefeito do Getúlio e namorou uma cantora portuguesa chamada Esther de Abreu, o que era uma grande fofoca na época, um coronel e uma vedete eram um prato cheio pra revista de fofoca, e o Oiticica era um tremendo leitor dessas revistas. Mas aí o Hélio foi dar a palestra no colégio e a diretora interrompeu a fala dele no meio.
Por quê? Ele estava incendiando muito a platéia?
É, porque ele falou uma coisa -para você ver a atualidade do Hélio-, ele falou que, se você pegasse um spray e pichasse a cara de uma fotografia de um general, aquilo era uma obra de arte. Aí a diretora "pá, está encerrada a palestra". E o que foi que ela fez? Jogou a gente nos braços do Hélio Oiticica. A partir daí ele virou nosso maior ídolo.
E daí em diante vocês passaram a conviver bastante, quer dizer, ele tinha essa generosidade mesmo com as pessoas?
É, eu posso te contar uma coisa fantástica. No final da vida dele, muitas vezes eu ia jantar na casa dos meus pais e levava ele, aí eu saía depois e ele ficava vendo novela com a minha mãe; ele era apaixonado pelas novelas das oito (risos). Mas ele era uma pessoa fabulosa, porque era muito democrático, dava atenção a qualquer pessoa que se dirigisse a ele. E nós ficamos muito próximos, ele, o Barreto, o Sidny e eu: ele chamava a gente de "The Kids". A gente era estudante, sabe como é, estava procurando um lugar pra fumar maconha, não podia fumar maconha na casa dos pais, então uniu-se o útil ao agradável, a gente ia fumar maconha na casa do Oiticica e ele ia ouvir o último disco do Bob Dylan na casa do Barreto, ele e os amigos.
E quando você começou a filmar?
Eu tinha parado de estudar e tinha de fazer alguma coisa, aí um colega de colégio me vendeu uma câmera super 8 e lá fui eu fazer um curso de fotografia e dizer para a minha família que eu ia ser fotógrafo e cineasta com aquela super 8 na mão e milhares de idéias na cabeça (risos). Eu tinha uma namorada muito bonita, chamada Helena Lustosa, que era uma das meninas mais bonitas do píer, e ela foi estrela de todos os meus filmes, e tinha uma amiga nossa, chamada Cristine Nazaré, ela era muito bonita também e era uma atriz genial, e dois amigos, o Ricardo Horta, que virou o vilão dos filmes, e o Zé Português, que era o mocinho, e tinha uma meia prima, chamada Ciça Afonso Pena: esses atores formavam os Ivamps, que era meu grupo de atores. Com esse pessoal eu fiz quatro longas-metragens, entre 71 e 74, incluindo o "Nosferato no Brasil".
Além do "Heliorama", você está preparando uma exposição referente ao HO, não?
Sim, eu tinha as sobras desses filmes em latas; isso é um problema, acarreta logo a maior briga com a minha mãe, coitada, que tem de guardar latas e latas de filme na casa dela, não é justo, mais caixão de anjo, ela deve sofrer muito (risos). E dentro dessas latas, onde havia os rolos de copiões, encontrei um rolinho de fotogramas amarrado por uma fita de couro com um bilhete do Hélio. Eu sou tão burro que não olhava, não lia aquilo, embora guardasse. Aí tinha escrito: "A: Strips com os pés da Lygia Clark" e "B: Eu com o três oitão", com a letra dele. Aí eu fui desembrulhar isso e achei esses fotogramas. O engraçado é que esse revólver pertenceu ao meu avô: ele chupou o revólver do Dulcídio Cardoso (risos). Como as fotos foram tiradas dos fotogramas, elas adquirem um movimento fantástico, não é quadro a quadro, porque assim não teria muito movimento, mas são fotogramas de uma mesma sequência, o que confere movimentação cinematográfica. Entre esses fotogramas eu fiz uma outra seleção, ampliei eles, fiz o negativo, porque eles eram negativos de cinema, de 16 mm, tivemos de ampliar, fazer todo um trabalho de restauração para chegar a esse resultado que vou expor agora em agosto na galeria Artur Fidalgo (0/xx/21/2549-6278), no Rio, e depois na André Millan (0/xx/11/3062-5722), em São Paulo.



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