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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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Livre do liberalismo ortodoxo e do populismo revolucionário, o Brasil é o país da região com mais chances de concretizar as mudanças necessárias

Decepção e esperança na América Latina

Alain Touraine

O 30º aniversário do golpe de Estado no Chile, da morte de Salvador Allende por resistir à rendição, depois de ter enviado sua mensagem de democracia ao povo chileno quando a ditadura se abatia sobre ele, nos oferece a oportunidade não apenas de reviver aqueles dias dramáticos e, indo além, a instauração ou a manutenção de ditaduras militares em todo o Cone Sul, mas também de fazer o esforço maior para descobrir se, com o fim das ditaduras e de uma interminável transição para a democracia, a América Latina pode, afinal, encontrar a fórmula mágica que lhe permita combinar democracia política e crescimento econômico, com a necessária transformação das estruturas sociais. Tal reflexão impõe, de saída, a recusa de duas visões políticas cujo fracasso foi igualmente completo: o populismo revolucionário e o liberalismo não-igualitário. Depois do fim da União Soviética, de Fidel Castro ter se reduzido a um mero ditador caribenho e de o movimento sandinista se degradar na corrupção, as esperanças depositadas na guerrilha e no pensamento revolucionário se esfumaram. O que era de esperar, já que sua tese sobre a dependência afirmava que todo o poder está fora do país e que, portanto, as forças nacionais nada podiam contra ele, atribuindo papel central a um apoio externo, o do campo socialista, graças ao qual a guerrilha, que sozinha era muito fraca, apesar do seu poder de denúncia, poderia levar a uma derrubada dos regimes dominados. Como esse apoio externo deixou de existir, restam apenas discursos revolucionários sem efeito revolucionário, atos corajosos de militantes prontos a se sacrificar e alianças políticas cada vez mais confusas. Salvador Allende, por sua coragem, é a imagem mais nobre desse populismo revolucionário que sucumbiu à crise econômica por ele desencadeada e que os EUA souberam transformar em contra-revolução. Mas nada desse regime foi capaz de sobreviver. É por isso que o Chile resiste tanto a lembrar esse passado, a despeito da coragem dos militantes da memória cuja ação, apesar de tudo, tem uma repercussão muito menor que a dos argentinos. São poucos, hoje em dia, os que depositam esperanças em Hugo Chávez [presidente da Venezuela]; até os que se opõem aos adversários dele ainda mais violentamente que ele próprio nada esperam da sua logomaquia bolivariana. Quanto às políticas liberais, que pouco a pouco se espalharam pela América Latina, como pelo resto do mundo, não trouxeram crescimento à região, mas aumentaram a desigualdade e a massa dos excluídos. O balanço desse longo período, em escala continental, é decepcionante. A América Latina em seu conjunto não parece engajada em um desenvolvimento auto-sustentável e menos ainda em um desenvolvimento duradouro. Não que não tenha havido algum sucesso, como o que o México viveu ou mesmo o progresso real obtido pela social-democracia brasileira de Fernando Henrique Cardoso. Mas, em conjunto, a imagem é fosca, como também é fosca a da Europa -que vê morrer o capitalismo renano do Estado de Bem-Estar Social-, cada vez mais atrasada em relação aos EUA nos domínios mais avançados da ciência e da tecnologia.

Desenvolvimento
Quais são, então, as condições do que se pode chamar de desenvolvimento, para retomar uma palavra que fizemos mal em abandonar? Há pelo menos três, todas indispensáveis. E nos três casos a realidade está longe de corresponder às necessidades. A primeira é a cidadania. Essa palavra é mais clara que democracia. O desenvolvimento é sempre de um povo, de um território com suas instituições e sua cultura, pois sem cidadania cada grupo se fecha sobre si mesmo e a competição ou os conflitos entre as partes do conjunto acabam por exauri-lo, como se vê em muitos países africanos. Desse ponto de vista, alguns países da América Latina, como o Chile e o Brasil, mas também o México, apesar da rejeição dos indígenas, adquiriram uma consciência nacional e até um certo espírito de cidadania. O segundo componente é o mais difícil de possuir. Poderia ser chamado de classes sociais ou, mais claramente, coalizões de forças definidas por seus conflitos. A multiplicação dos grupos de interesse semeia a confusão. A polarização social, ao contrário, é dinâmica, sobretudo porque os campos opostos procuram elaborar uma política global, que inclua a diretriz do Estado, um projeto de educação etc. O Chile foi praticamente o único país que conheceu essa polarização que sempre faltou à Argentina, apesar do discurso das sucessivas CGTs [centrais sindicais]. Polarização que tampouco esteve presente no México, onde o sindicalismo foi há muito tempo incorporado ao aparelho de Estado, nem no Brasil. O terceiro elemento é, pelo menos na aparência, o mais fácil de possuir: a crença na razão, que permite superar o mundo paralisante dos particularismos e todas as formas de nostalgia do paraíso perdido. Nisso a América Latina, em seu conjunto, é fraca, como o demonstra o estado de suas universidades e de seus centros de pesquisa. Buenos Aires já brilhou intensamente; hoje, só o eixo São Paulo-Campinas atinge um nível internacional, por mais que o México tenha alguns pontos fortes, enquanto o Chile, tão racional e laborioso, não conta com instituições que permitam a seus pesquisadores mobilizar o político. Tudo isso parece muito didático e distante da realidade, mas é justamente a "realidade" -que está distante do desenvolvimento- que é insatisfatória. E explicar tudo pela dominação estrangeira só leva à complacência ou à expectativa de uma crise milagrosa que destruiria o adversário. Mas não escrevo estas linhas para me distanciar da realidade ou passear pela utopia. Ao contrário, se o faço, é porque o que era impensável se tornou possível. O desencadeamento da cruzada americana, do triunfo de uma lógica de guerra sobre uma lógica de globalização econômica, dá aos países do continente, sobretudo aos mais sólidos, uma autonomia de ação e, consequentemente, uma consciência de suas responsabilidades e de suas possibilidades que eles não tinham antes. O Chile desperta aos poucos do medo de si mesmo e de Pinochet; a Argentina acaba de romper com sua total dependência do sistema financeiro internacional. O México, ao contrário, está paralisado por sua impotência de criar um sistema político.

Solução de FHC e Lula
Mas, para além dos aspectos favoráveis ou desfavoráveis existentes na maioria dos países da região, é o Brasil que tem condições para encontrar uma solução. Nele, o populismo revolucionário e o liberalismo ortodoxo já não têm mais força. E existe um amplo consenso favorável à solução preparada por Fernando Henrique Cardoso e que Lula quer aplicar: finalmente aliar a educação ao progresso social mediante uma forte consciência nacional e a uma vontade ativa de entrar na economia mais moderna. Mas o Brasil só poderá atingir esses objetivos se aumentar seu nível de mobilização social e até de conflitividade.
Há muito tempo a conjuntura não era tão favorável ao Brasil, ao Chile e a seus parceiros, entre os quais a Argentina leva a vantagem de apresentar um alto nível de educação. Mas é preciso que a consciência não entrave a existência, que a ideologia não recuse a realidade, que a vontade coletiva se una ao calor dos conflitos e à confiança na produção, no investimento e no trabalho. É chegada a hora do aumento da produção e da luta maciça contra a miséria urbana. É preciso que por toda parte as vontades despertem e as mudanças se acelerem.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Rubia Prates Goldoni.


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