São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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Ponto de Fuga

Mares e éticas


A atual mostra do Museu Lasar Segall, "Navio de Emigrantes", é muito bonita e rigorosa; o princípio de centrar uma exposição em uma obra única é excelente

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA A atual mostra do Museu Lasar Segall [em SP] é muito bonita e rigorosa. Tem uma particularidade: foi organizada em torno de um só quadro, "Navio de Emigrantes", que o grande pintor terminou em 1941. Reúne os desenhos preparatórios, as gravuras em que se vê a obra germinar desde os anos 1920, as fotografias que pertenceram ao artista e que certamente o inspiraram para conceber seu formidável "Navio".
O princípio de centrar uma exposição em uma obra única é excelente. Estimula o olhar, que se concentra, interrogativo, focalizado sobre o fato concreto da tela.
As artes parecem sempre misteriosas e, para tranqüilizar-se diante do enigma, costumamos buscar alguma noção geral, abstrata, que parece explicar tudo muito bem.
No entanto olho tranqüilo não vê, já que não se inquieta nem pergunta.
É sempre melhor pôr de lado as noções e interrogar diretamente a obra. O exercício é bem mais difícil. Quando alguém diz "Segall é expressionista", projeta sobre o artista conhecimentos e critérios provenientes de um saber convencional, que dão segurança ao espírito.
No entanto essas noções e esse saber prévio são como as lentes de um binóculo que, ao invés de aproximar, afastam.
Se, ao contrário, se dirige à tela de modo honesto e cuidadoso, percebe que ela escapa continuamente àquilo em que parecia se enquadrar.
Há uma ética da obra, daquilo que mostra e ensina, ética rebelde às classificações. Suas lições dirigem-se, antes de tudo, ao olho.

Arquiteto
O tombadilho é enorme, atravessado por grandes vigas.
É como se elas afastassem as amuradas, dilatassem a grande superfície para dar espaço a um mundaréu de gente. Há também o cordame que se estira, some nos altos e ultrapassa a borda superior da tela. Essas cordas se unem num ponto distante, vertiginoso, imaginário, invisível, porque fora dos limites da tela.
Os emigrantes de Segall são vistos do alto, expostos numa grande superfície panorâmica.
As vigas riscam o espaço em retângulos e triângulos desiguais. São elas, secundadas pelas cordas estendidas, que estruturam a visão. Segall sempre teve a necessidade arquitetural para suas pinturas: retas, ângulos, ritmos geométricos. Esse falso expressionista era um verdadeiro apolíneo.

Mortiço
A luz que banha o "Navio de Emigrantes" é homogênea. Ilumina tudo por igual e cada um dos pequenos personagens tem a sua mesma dose de claridade um pouco morna. Estão todos bem definidos em suas individualidades. Formam pequenos grupos.
O pintor não se diverte com cores vibrantes, com reflexos nas ondas, com brumas picturais. Escolhe alguns poucos tons baixos, marrons, cinzas.
Não faz um drama eloqüente ou qualquer denúncia exaltada.
Emana da tela melancolia e tédio. É a calma da resignação, o instante incerto em que tudo foi deixado e nada ainda chegou. Tempo do transitório que parece não ter fim.

Errantes
[O escritor] Stefan Zweig e Segall trocaram cartas sobre "Navio de Emigrantes". Zweig diz que Segall deveria "representar toda a tragédia dos refugiados de hoje, amontoados diante dos consulados, nos navios, nos trens e ao longo das estradas".
Quando Segall lhe envia a fotografia do quadro, Zweig responde: "Há nele uma síntese realmente profética da miséria contemporânea". A profecia se cumpriu, plena: nunca tantos migrantes se deslocaram, em desespero, fugindo da miséria, como nos dias de hoje.


jorgecoli@uol.com.br


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