São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Literatura

Em crise com Deus


Em "Jó", o austríaco Joseph Roth faz uma releitura contemporânea da história bíblica

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Jó - Romance de um Homem Simples" (Companhia das Letras, tradução de Laura Barreto, 200 págs., R$ 44), o escritor austríaco Joseph Roth traz para o começo do século 20 a conhecida história bíblica. Na transposição, Mendel Singer, o protagonista, é professor de religião para crianças. Como diz o narrador, "piedoso, temente a Deus e em nada extraordinário, era um judeu comum".
Pai de dois filhos e de uma filha, marido de Débora, que estava grávida, tinha a "consciência limpa": "Não precisava arrepender-se de nada, e nada havia que tivesse cobiçado".
É o nascimento da quarta criança, Menuhim, a marca inicial das provações de Mendel Singer. O menino adoece e não pode ser levado para um hospital russo porque o pai não aceita que receba tratamento gentio, sem os cuidados religiosos necessários.

Intervenção divina
A desgraça do personagem começa no instante em que troca a possibilidade de interferência humana pela esperança de intervenção divina: "Nenhum doutor poderá curá-lo, se não for essa a vontade de Deus".
A seqüência de eventos ruins põe à prova a credulidade do professor: os filhos são convocados para o Exército do czar, um consegue fugir, o outro se alista, o que, na prática, significaria uma chance imensa de que o pai não voltasse a ver nenhum dos dois nunca mais; Menuhim fica cada vez mais doente; a relação com Débora, antes fonte de tranqüilidade e prazer ("amava a mulher e deleitava-se em sua carne"), se deteriora; por fim, Miriam, a linda filha, se envolve sexualmente com cossacos.
No desenrolar da narrativa, tudo piora, mesmo que boas perspectivas surjam às vezes, até o momento em que Singer, já nos EUA, para onde havia fugido para livrar a filha do novo círculo de amizades, perde a fé e rejeita o Deus que sempre acatara. Uma reviravolta bastante forçada modifica ainda uma vez a sua visão de mundo antes do término do texto.

Mito e realidade
A ironia aqui reside no fato de que não há sofrimento de proporções descomunais na vida desse Jó reinventado: suas agruras não são tão diferentes assim daquelas que tantos enfrentaram no período histórico em que o enredo se desenrola.
Como diria Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa, em um poema (o oitavo de "O Guardador de Rebanhos") em que, ao contrário do que sugere a postura do protagonista deste romance em seus momentos finais, a redenção passa muito longe de qualquer salvação pelo além, "os seres existem e mais nada,/ e por isso se chamam seres".


ADRIANO SCHWARTZ leciona literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.


Texto Anterior: + Autores: Quase memória
Próximo Texto: Mercado livre
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.