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Duas garrafas de rum
Best-sellers quando foram lançados,
"Uma História dos Piratas",
de Daniel Defoe, e
"Os Tigres de Mompracem",
de Emilio Salgari,
revivem
o imaginário
sobre o tema
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CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A figura clássica do
pirata ocupa um lugar ambíguo no
imaginário do Ocidente. Num aspecto, é a barbárie -alguém que
abdica das regras dos Estados
constituídos e rompe seu eixo
moral, assumindo o direito de
matar, saquear e violentar ao
sabor do arbítrio.
Mas, em outro aspecto, que
poderíamos chamar de literário, o pirata é uma figura fascinante que se confunde com o
justiceiro vingador, aquele que
não se submete a viver com o
rebanho e afirma a sua individualidade sobre todas as coisas.
Nessa representação romântica, explorada pela ficção popular e pelo cinema, ele é no
fundo um bom sujeito, que, por
força das vicissitudes e crueldades da vida, se viu obrigado a
viver solitário, à margem da sociedade. E o navio, o habitat do
pirata, será o símbolo da liberdade, da aventura e do desconhecido que emergiu a partir
do século 15 para desenhar o
mapa de um mundo novo a ser
conquistado.
Dois livros revisitam o tema,
na ficção e na não-ficção -e é
interessante observar como essa fronteira, ao falar em piratas, é difusa.
"Uma História dos Piratas",
de Daniel Defoe (1660-1731),
apresenta-se como uma historiografia, ainda que o autor nos
advirta em um momento de
seu relato: "Os estranhos acidentes das suas vidas errantes
são tais que muitos ficarão tentados a achar que toda essa história nada mais é que uma novela ou um romance".
Literatura de massa
E "Os Piratas de Mompracem", de Emilio Salgari (1862-1911), é a cristalização do mito
do pirata em sua forma mais folhetinesca, realizando plenamente, na entrada do século 20,
o que de certa forma obras como "Robinson Crusoe", do próprio Defoe, já anunciavam dois
séculos antes -uma literatura
de massa para abastecer um
novo público leitor, ávido de
aventuras laicas, que começava
a se criar nos grandes centros
urbanos europeus.
O livro de Defoe -ficamos
sabendo pela apresentação de
Luciano Figueiredo, professor
da Universidade Federal Fluminense que fez a seleção dos
textos, com abundantes notas
informativas- foi à época um
grande sucesso.
Originalmente assinado por
um fictício capitão Charles
Johnson, para reforçar a idéia
de que o autor era do ramo, se
estrutura mais ou menos como
informação jornalística.
Sempre atento à presumida
veracidade do fatos, o livro procura mostrar fidelidade aos dados concretos para abastecer a
curiosidade dos leitores, revelando fontes, assinalando dúvidas e transcrevendo aqui e ali
documentos de época.
Situação ambígua
O grande interesse pelo tema
se explica porque a própria Inglaterra viveu uma situação
ambígua com a atividade corsária. Figuras históricas relevantes, como sir Francis Drake
(1545-1596), por exemplo, praticaram pirataria a serviço da
coroa, mas então os tempos
eram outros. Os heróis de antanho que ajudaram a firmar o
poder naval do país passavam a
ser "o terror da atividade comercial do mundo", uma área
que os ingleses começavam a
dominar e que viam ameaçada
pelos corsários.
Essa passagem traumática de
um tempo para outro é visível
em vários momentos e personagens do livro, como o pirata
Stede Bonnet, que, antes de se
aventurar na vida criminosa,
era um "senhor de uma imensa
fortuna", conhecendo "todas as
vantagens de uma educação liberal"; ou William Kidd, oficialmente contratado para combater os piratas e que acabou enforcado por se tornar um deles.
Num momento, o Brasil aparece com otimismo, como sempre ("o ouro dali é considerado
o melhor"), sem faltar o detalhe
picante que vem nos celebrizando: "As mulheres são loucas
por estrangeiros. Não só as cortesãs (...), mas também as mulheres casadas, que se mostram
muito gratas quando alguém
lhes brinda com um encontro
secreto".
Aliás, duas piratas mulheres
que se passavam por homens,
Mary Read e Anne Bonny, são
outro capítulo curioso do inventário de Defoe.
Dois séculos depois, nas
obras do italiano Emilio Salgari, um escritor imensamente
popular no seu tempo, a figura
do pirata já não tem mais lugar
no mundo real e se refugia na
fantasia.
Em "Os Tigres de Mompracem", de 1900 -obra reeditada
agora numa edição que reproduz as ilustrações originais-,
acompanhamos as aventuras
extraordinárias de Sandokan,
um terrível pirata que tem seu
"covil" na ilha de Mompracem,
na Malásia, de onde sai com sua
inesgotável tripulação de foras-da-lei, sempre prontos a morrer por ele a um estalar de dedos, para raptar a amada Marianna, a "Pérola de Labian".
Orientalismo
Arrancando-a das mãos implacáveis do tio, lorde James,
que a havia prometido ao baronete William, o herói Sandokan
dispõe-se a abandonar a vida de
pirata para dedicar-se a sua rainha, dura decisão que lhe dá a
sombra de um destino trágico.
As mais mirabolantes e inverossímeis aventuras tiram o fôlego do leitor, que nada precisa
temer; seguindo a fórmula consagrada, as páginas avançam
sempre com a garantia de um
final feliz.
Sandokan sintetiza a imagem
exótica do orientalismo romântico alimentado pela Europa do século 19 e, ao mesmo
tempo, marca o imperialismo
inglês como vilão, que será sua
grande novidade e o seu tempero libertário multicultural.
CRISTOVÃO TEZZA é escritor, autor de "O Filho
Eterno" (ed. Record), pelo qual ganhou, na semana passada, o Jabuti de melhor romance.
UMA HISTÓRIA DOS PIRATAS
Autor: Daniel Defoe
Tradução: Roberto Franco Valente
Editora: Jorge Zahar (tel. 0/xx/21/
2108-0808)
Quanto: R$ 34 (264 págs.)
OS TIGRES DE MOMPRACEM
Autor: Emilio Salgari
Tradução: Maiza Rocha
Editora: Iluminuras (tel. 0/xx/11/
3031-6161).
Quanto: R$ 44 (336 págs.)
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