São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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Duas garrafas de rum


Best-sellers quando foram lançados, "Uma História dos Piratas", de Daniel Defoe, e "Os Tigres de Mompracem", de Emilio Salgari, revivem o imaginário sobre o tema

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A figura clássica do pirata ocupa um lugar ambíguo no imaginário do Ocidente. Num aspecto, é a barbárie -alguém que abdica das regras dos Estados constituídos e rompe seu eixo moral, assumindo o direito de matar, saquear e violentar ao sabor do arbítrio.
Mas, em outro aspecto, que poderíamos chamar de literário, o pirata é uma figura fascinante que se confunde com o justiceiro vingador, aquele que não se submete a viver com o rebanho e afirma a sua individualidade sobre todas as coisas.
Nessa representação romântica, explorada pela ficção popular e pelo cinema, ele é no fundo um bom sujeito, que, por força das vicissitudes e crueldades da vida, se viu obrigado a viver solitário, à margem da sociedade. E o navio, o habitat do pirata, será o símbolo da liberdade, da aventura e do desconhecido que emergiu a partir do século 15 para desenhar o mapa de um mundo novo a ser conquistado.
Dois livros revisitam o tema, na ficção e na não-ficção -e é interessante observar como essa fronteira, ao falar em piratas, é difusa.
"Uma História dos Piratas", de Daniel Defoe (1660-1731), apresenta-se como uma historiografia, ainda que o autor nos advirta em um momento de seu relato: "Os estranhos acidentes das suas vidas errantes são tais que muitos ficarão tentados a achar que toda essa história nada mais é que uma novela ou um romance".

Literatura de massa
E "Os Piratas de Mompracem", de Emilio Salgari (1862-1911), é a cristalização do mito do pirata em sua forma mais folhetinesca, realizando plenamente, na entrada do século 20, o que de certa forma obras como "Robinson Crusoe", do próprio Defoe, já anunciavam dois séculos antes -uma literatura de massa para abastecer um novo público leitor, ávido de aventuras laicas, que começava a se criar nos grandes centros urbanos europeus.
O livro de Defoe -ficamos sabendo pela apresentação de Luciano Figueiredo, professor da Universidade Federal Fluminense que fez a seleção dos textos, com abundantes notas informativas- foi à época um grande sucesso.
Originalmente assinado por um fictício capitão Charles Johnson, para reforçar a idéia de que o autor era do ramo, se estrutura mais ou menos como informação jornalística.
Sempre atento à presumida veracidade do fatos, o livro procura mostrar fidelidade aos dados concretos para abastecer a curiosidade dos leitores, revelando fontes, assinalando dúvidas e transcrevendo aqui e ali documentos de época.

Situação ambígua
O grande interesse pelo tema se explica porque a própria Inglaterra viveu uma situação ambígua com a atividade corsária. Figuras históricas relevantes, como sir Francis Drake (1545-1596), por exemplo, praticaram pirataria a serviço da coroa, mas então os tempos eram outros. Os heróis de antanho que ajudaram a firmar o poder naval do país passavam a ser "o terror da atividade comercial do mundo", uma área que os ingleses começavam a dominar e que viam ameaçada pelos corsários.
Essa passagem traumática de um tempo para outro é visível em vários momentos e personagens do livro, como o pirata Stede Bonnet, que, antes de se aventurar na vida criminosa, era um "senhor de uma imensa fortuna", conhecendo "todas as vantagens de uma educação liberal"; ou William Kidd, oficialmente contratado para combater os piratas e que acabou enforcado por se tornar um deles.
Num momento, o Brasil aparece com otimismo, como sempre ("o ouro dali é considerado o melhor"), sem faltar o detalhe picante que vem nos celebrizando: "As mulheres são loucas por estrangeiros. Não só as cortesãs (...), mas também as mulheres casadas, que se mostram muito gratas quando alguém lhes brinda com um encontro secreto".
Aliás, duas piratas mulheres que se passavam por homens, Mary Read e Anne Bonny, são outro capítulo curioso do inventário de Defoe.
Dois séculos depois, nas obras do italiano Emilio Salgari, um escritor imensamente popular no seu tempo, a figura do pirata já não tem mais lugar no mundo real e se refugia na fantasia.
Em "Os Tigres de Mompracem", de 1900 -obra reeditada agora numa edição que reproduz as ilustrações originais-, acompanhamos as aventuras extraordinárias de Sandokan, um terrível pirata que tem seu "covil" na ilha de Mompracem, na Malásia, de onde sai com sua inesgotável tripulação de foras-da-lei, sempre prontos a morrer por ele a um estalar de dedos, para raptar a amada Marianna, a "Pérola de Labian".

Orientalismo
Arrancando-a das mãos implacáveis do tio, lorde James, que a havia prometido ao baronete William, o herói Sandokan dispõe-se a abandonar a vida de pirata para dedicar-se a sua rainha, dura decisão que lhe dá a sombra de um destino trágico.
As mais mirabolantes e inverossímeis aventuras tiram o fôlego do leitor, que nada precisa temer; seguindo a fórmula consagrada, as páginas avançam sempre com a garantia de um final feliz.
Sandokan sintetiza a imagem exótica do orientalismo romântico alimentado pela Europa do século 19 e, ao mesmo tempo, marca o imperialismo inglês como vilão, que será sua grande novidade e o seu tempero libertário multicultural.


CRISTOVÃO TEZZA é escritor, autor de "O Filho Eterno" (ed. Record), pelo qual ganhou, na semana passada, o Jabuti de melhor romance.

UMA HISTÓRIA DOS PIRATAS
Autor: Daniel Defoe
Tradução: Roberto Franco Valente
Editora: Jorge Zahar (tel. 0/xx/21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 34 (264 págs.)

OS TIGRES DE MOMPRACEM
Autor: Emilio Salgari
Tradução: Maiza Rocha
Editora: Iluminuras (tel. 0/xx/11/ 3031-6161).
Quanto: R$ 44 (336 págs.)


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