São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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O ápice de Philip Roth


Novo romance do autor norte-americano, "Indignação" é o melhor que escreveu nos últimos 20 anos, diz crítico irlandês

JOHN BANVILLE
Indignation" [Indignação, ed. Houghton Mifflin, 256 págs., US$ 26, R$ 47] é o melhor romance de Philip Roth desde "O Avesso da Vida" (1986).
Desde então, publicou muitos livros excelentes -talvez livros demais: ele é quase tão prolífico quanto John Updike-, mas nenhum com um desenho tão intricado, apaixonado e fascinante quanto este.
Roth recebeu grandes elogios por lamentos à moda do rei Lear em romances como "Teatro de Sabbath" e "O Animal Agonizante", bem como, mais recentemente, por "Homem Comum" e "Fantasma Sai de Cena" [todos pela Cia. das Letras], nos quais a morte tem presença central.
Mas, em seu novo romance, retomou a graça e sutileza de trabalhos anteriores e produziu uma obra-prima tardia.

Sangue e gordura
Não que "Indignação" esteja livre do toque de Tânatos, pressagiando morte e desgraça.
Ainda que o protagonista de Roth, Markus "Markie" Messner, tenha apenas 19 anos, em sua época já viu sangue suficiente para saciar a sede de vingança do mais furioso dos reis.
"Cresci com o sangue -com o sangue e a gordura e afiadores de facas e máquinas de fatiar e dedos amputados ou pedaços de dedos desaparecidos das mãos de meus três tios e também de meu pai- e jamais me acostumei com com isso ou gostei disso."
A história se passa em 1951, e a máquina de fatiar em questão é a Guerra da Coréia. Markie, um jovem de Nova Jersey, estudante aplicado, vem obtendo notas excelentes em uma pequena faculdade da região e espera escapar ao serviço militar.
Mas seu pai, um açougueiro kosher, está "enlouquecido de preocupação pelo filho único e querido parecer tão despreparado para os perigos da vida quanto qualquer pessoa ao chegar à idade adulta, enlouquecido pela descoberta de que o seu menininho está crescendo".

"Tour de force"
Levado à loucura pela loucura do pai, Markie, que considera "indignação" a mais bela palavra da língua, não encontra outra saída a não ser escapar rumo ao desconhecido. E por isso se matricula no distante Winesburg College, em Ohio.
As páginas iniciais, que evocam de forma compacta o ambiente de Markie em Nova Jersey e seu trabalho no negócio da família, são um daqueles "tours de force" que sempre caracterizaram Roth.
Pode-se ver Markie em seu paletó esporte e sapatos brancos de camurça, pode-se sentir o cheiro do sangue e da serragem no açougue, pode-se sentir o anseio do jovem pelas boas coisas da vida com as quais o futuro lhe acena.
Maravilhosamente evocativas, igualmente, são as passagens que descrevem os esforços do protagonista para se enquadrar às limitações da faculdade no Centro-Oeste dos EUA, sem deixar de preservar a independência e a integridade pessoal.

Obsessão
Uma das sutilezas de "Indignação" é que jamais nos é permitido perceber o que exatamente impulsiona Markie, nos níveis mais profundos. Ainda que ele seja reconhecido como excepcionalmente inteligente e trabalhador e seja convidado a se integrar às fraternidades judaica e cristã da faculdade, prefere se manter rigidamente distante de todas as seduções.
Dedica-se aos estudos com uma obsessão comparável à de seu pai. Mesmo quando sua aparente misoginia é contestada pelo "diretor de homens" da instituição, recusa-se a ceder.
Em um confronto esplêndido, Markie cita de forma extensa e fiel uma polêmica de Bertrand Russell sobre o ateísmo e depois vomita "contra o vidro de uma das fotos emolduradas que enfeitam a parede do diretor, mostrando a equipe de futebol de Winesburg que ganhou, invicta, um campeonato em 1924". Como sempre, não se pode acusar Philip Roth de excesso de delicadeza.
E, porque Roth é Roth, não demora muito para que surja uma mulher. O sexo é o propulsor incansável de seu trabalho, mas neste livro ele é maculado por sangue e morte.
Trata-se de um tema narrativo que Roth sustenta com imensa competência. A apresentação inicial e direta do sangue e das tripas que o trabalho em um açougue envolve se altera e obscurece quando Olivia Hutton entra em cena.
No começo uma Ofélia para o Hamlet de Markie, ela parece uma estudante completamente normal, "pálida e esguia, com um cabelo castanho avermelhado, escuro", ainda que possua, ou assim pareça a Markie, "modos distantes, intimidadores e autoconfiantes".
No entanto Markie mal consegue acreditar na sorte de que desfruta quando, em seu primeiro encontro, Olivia se prova prodigamente generosa com seus favores sexuais.
Como é comum na ficção, porém, bons momentos engendram sérios problemas. Não demora para que Markie esteja de volta ao escritório do Sr. Caudwell, onde o diretor o acusa de um relacionamento indigno com a jovem dama em questão, que deixou o colégio abruptamente, com sua reputação maculada.
"Indignação" é um trabalho enganosamente curto, escrito em estilo cuja limpidez oculta obscuridade.
Mas, ao final do primeiro quarto do livro, quando estamos nos acomodando à história de esforço juvenil e rebelião filial de Markie, sofremos o abalo de uma revelação que abre imensas perspectivas: "Contando minha história para mim mesmo hora após hora em um mundo sem relógio, espreitando incorpóreo nessa gruta da memória, sinto que venho fazendo a mesma coisa há 1 milhão de anos".
Todo aquele sangue e todas aquelas lâminas deveriam ter nos alertado para os acontecimentos sombrios que viriam, como tenebrosamente vieram.


JOHN BANVILLE é escritor irlandês, autor de "O Mar". Este texto saiu no "Financial Times". Tradução de Paulo Migliacci.
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