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A VIOLÊNCIA DA HISTÓRIA
OBRA DE MALRAUX DRAMATIZA CONFRONTO ENTRE A MORAL DO INDIVÍDUO E A FATALIDADE DO REAL; PARA SEU MAIS IMPORTANTE BIÓGRAFO, ESCRITOR ACREDITAVA QUE RELIGIÃO TERIA PAPEL DECISIVO NO SÉCULO 21
Alcino Leite Neto
de Paris
Você quer fazer do terrorismo uma espécie de
religião?", pergunta Souen a Tchen em "A
Condição Humana" (1933), de André Malraux.
Souen continua: "Eu sou menos inteligente que você,
Tchen, mas para mim... para mim... não. (...) É pelos
nossos que eu combato, não por mim". Tchen retruca:
"Para os nossos você não pode fazer coisa melhor do
que decidir morrer. A eficácia de nenhum homem pode
ser comparada àquela do homem que escolheu isso".
Mais tarde, Tchen vai levar a cabo o seu ataque suicida
contra Chiang Kai-shek: "Dar um sentido imediato ao
indivíduo sem esperança e multiplicar os atentados,
não por uma organização, mas por uma idéia: fazer renascerem os mártires. (...) Tchen apertou a bomba sobre seu braço com conhecimento de causa. (...) O carro
do general estava a cinco metros, enorme. Ele correu na
sua direção com uma alegria extática, se lançou por cima dele, com os olhos fechados".
Ler, reler André Malraux é quase uma obrigação nestes tempos. A história não acabou, como previam alguns, e poucos, como o escritor francês, puderam retratar com tanto vigor os conflitos entre o indivíduo e a
história, a associação política e a decisão moral, os atos
da vontade e a fatalidade dos fatos. O centenário de seu
nascimento, no próximo dia 3 de novembro, é também
um bom pretexto para voltar a sua obra. Outro ainda é o
que o Mais! oferece agora ao leitor, com a publicação de
um desconhecido e apaixonado texto do crítico e escritor Paulo Emílio Salles Gomes sobre Malraux.
O texto de Paulo Emílio (1916-1977) é uma longa resenha a respeito da mais célebre biografia do escritor
francês: "André Malraux - Une Vie dans le Siècle" (Uma
Vida no Século), feita pelo jornalista Jean Lacouture. Foi
escrita em 1973, ano em que a editora Seuil publicou o
livro na França. No mesmo estilo que Paulo Emílio consagraria em suas críticas de cinema, a resenha é simultaneamente um apanhado extensivo da vida de Malraux,
uma análise de sua obra, de seu perfil moral e político e
uma crítica propriamente dita ao livro de Lacouture.
Radiografia do terrorismo
A Folha conversou
com Lacouture em Paris a respeito de
um dos elementos que hoje aparecem com mais força
na obra do escritor: a sua observação radiográfica do
terrorismo e da violência da história. Para o biógrafo,
Malraux, que morreu em 1976, já tinha consciência do
que aguardava o mundo nestes dias. "Ele acreditava em
duas coisas: que o mundo é transformado pela violência
e que a religião teria papel bastante importante no século 21", afirma Lacouture, hoje com 80 anos.
A escritora Lygia Fagundes Telles, que foi casada com
Paulo Emílio, conta que Malraux era uma das grandes
admirações do crítico. "Ele adorava "A Condição Humana". Achava que ninguém havia falado com tanta
precisão no romance sobre os dramas dos revolucionários. Paulo conheceu Malraux em Paris. Tinha um
exemplar do livro com dedicatória", diz Lygia.
Malraux teve simpatias pelo socialismo, lutou ao lado
dos comunistas contra Hitler e junto com os republicanos espanhóis contra Franco, mas nunca aderiu ao
marxismo. "A Condição Humana" conta as ações secretas dos comunistas na China e a insurreição armada
promovida por eles em Xangai, em 1927.
Paulo Emílio, por sua vez, foi desde a juventude um
marxista que iria se inclinar pelo trotskismo. Por conta
de sua militância, foi preso aos 19 anos, no bojo das perseguições feitas após o fracasso da Intentona Comunista (1935). Protagonizou uma fuga sensacional do presídio do Paraíso, em São Paulo, com 16 outros detentos,
através de um túnel de dez metros. Exilou-se em Paris,
onde passou dois anos. Nesse período, revela Lygia,
Paulo Emílio foi analisado por Jacques Lacan. "Mas ele
não gostaria que eu contasse isso."
Segundo a escritora, Paulo Emílio identificava as suas
atribulações políticas com aquelas por que passou Malraux -muito mais trágicas e aventurosas, aliás, como a
sua tentativa de roubo de peças arqueológicas do Camboja, pelo que também foi preso e passou um ano no
cárcere oriental. "Paulo falava muito da vida do Malraux, dos dramas que viveu, de sua fibra."
Lygia define, porém, a fascinação de Paulo Emílio pelo escritor como "contraditória". "Ele lamentava o fascínio que Malraux tinha pelo poder, o seu envolvimento com o Estado francês do pós-guerra. Paulo era um
trotskista muito rigoroso e, para ele, Malraux teria traído a causa socialista", conta a escritora.
A escritora Lygia Fagundes Telles, que foi casada com Paulo Emílio, conta que Malraux
era uma das grandes admirações do crítico. "Ele adorava "A Condição Humana". Achava que ninguém havia falado com tanta precisão no romance sobre os dramas dos revolucionários", diz
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Não foi só ele que pensou assim. Uma nova biografia
publicada na França, "André Malraux - Une Vie" (ed.
Gallimard), do jornalista Olivier Todd, enfatiza o anti-comunismo do escritor e revela, a partir de documentos
da antiga KGB (o serviço secreto soviético), que os russos planejavam matá-lo durante a Guerra Civil Espanhola, por julgá-lo próximo demais dos anarquistas.
A associação com os comunistas durante a Resistência aos nazistas também foi circunstancial. Já no fim da
Segunda Guerra, ele se liga ao general Charles de Gaulle
e o acompanha em sua escalada de poder na França. Em
1959, Malraux foi nomeado ministro da Cultura. "Paulo
Emílio implicava muito que ele tivesse se associado tanto ao poder, mas também dizia que ele fez coisas boas,
como limpar os prédios históricos de Paris", diz Lygia.
A escritora chegou a conhecer André Malraux no mesmo ano de 1959, quando ele esteve no Brasil durante
uma missão diplomática pela América Latina: "Era um
homem de olhos bonitos, largos, brilhantes, uma cara
fortíssima".
Lygia não se lembra por que o texto de Paulo Emílio
permaneceu inédito, mas talvez seja esse o motivo: foi
escrito em pleno governo Médici (1969-1974), quando o
regime militar de 64 vivia a sua fase mais repressiva.
Sem descuidar do personagem nem da biografia, Paulo
Emílio procura no livro os temas que lhe interessam no
momento. Sua desmontagem do mito Malraux é também uma forma de afrontar o poder instituído. Seu comentário sobre a tortura, ao final do texto, é um protesto contra as práticas do regime militar brasileiro e contra o terrorismo de Estado.
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