São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2007

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+ sociedade

Gente também é bicho

Analisando um caso debatido na Justiça da Áustria, a jornalista americana pondera as vantagens entre ser homem ou chimpanzé nos dias atuais

Se for possível declarar que um chimpanzé é uma pessoa, então nada impede que uma pessoa se torne macaco

China Photos/Getty Images
Chimpanzé tenta escalar mastro durante os "jogos animais", em Chongqing, na China


BARBARA EHRENREICH

Hiasl, um chimpanzé de 26 anos que vive na Áustria, abriu um processo solicitando que a Justiça o reconheça como ser humano [leia texto ao lado], e eu gostaria de ser a primeira pessoa a lhe dar as boas-vindas à nossa espécie.
Meu ativismo em defesa dos animais nunca foi muito além do estágio de comprar apenas ovos produzidos por galinhas criadas no terreiro. Mas são as possibilidades humanas suscitadas pelo caso de Hiasl que atraem minha atenção.
Se for possível declarar que um chimpanzé é uma pessoa, então nada poderá impedir que uma pessoa se torne macaco.
Prevejo um surto de mudanças de espécie e a adesão de grande número de pessoas à classificação de chimpanzés.
A transição não precisa envolver dispendiosas cirurgias de prolongamento de braços ou aplicações de Rogaine [medicamento] em todo o corpo para o desenvolvimento de pêlos, porque afinal já somos praticamente chimpanzés.
Compartilhamos com eles 99% de nosso genoma, o que torna possível a chimpanzés receber transfusões de sangue e doações de rins humanos.
A despeito das limitações vocais, comunicam-se facilmente uns com os outros e são capazes de aprender as linguagens humanas. Empregam ferramentas e vivem em grupos que exibem variações de comportamento, as quais seria possível atribuir ao que os antropólogos reconhecem como cultura.
E podemos estar biologicamente bem mais perto deles do que Darwin um dia imaginou.
Em maio passado, paleontólogos descobriram indícios de procriação cruzada entre humanos e chimpanzés até cerca de 5 milhões de anos atrás e propuseram a hipótese de que os seres humanos modernos são resultado dessa predileção ancestral pela bestialidade.

Razões econômicas
Os motivos do processo de Hiasl são econômicos. O santuário animal em que ele reside está sem dinheiro e, na Áustria, só um ser humano tem direito a receber doações pessoais.
Muitos seres humanos no país podem se sentir motivados, da mesma forma, a solicitar o status de chimpanzés. Há indivíduos que cometem crimes para obter acesso à comida e ao atendimento médico gratuitos que as prisões oferecem.
Seria muito mais fácil e agradável conseguir que a Justiça os declarasse chimpanzés e permitisse que desfrutassem da agradável vida de um animal de zoológico. Não só os seguranças são amistosos, mas as jaulas foram desenhadas com cuidado psicológico muito maior do que os escritórios ou baias nas empresas humanas.
É verdade que nem todos os chimpanzés desfrutam das mordomias de Hiasl, que passa a maior parte de seu dia assistindo à TV. Eles correm o risco de serem vendidos a uma companhia farmacêutica para pesquisas, por exemplo, mas é um perigo que deve se reduzir à medida que mais chimpanzés obtiverem status humano.

Sexualidade
Além do caso austríaco, o Parlamento da Espanha também está considerando um projeto de lei que concederia "proteções morais e legais fundamentais" aos primatas.
E, quando os primatas tiverem conquistado essas proteções, os seres humanos norte-americanos também desejarão desfrutar delas. Estou pensando em comida, abrigo e cuidados médicos e/ou veterinários. Outro motivo para realizar a transição de humano a primata é o sexo, especialmente se você for inteligente o bastante para se declarar bonobo ou chimpanzé pigmeu.
Os bonobos, que são geneticamente tão próximos dos seres humanos quanto os chimpanzés de grande porte, usam o sexo do mesmo modo que usamos apertos de mão: como uma forma de cumprimento entre indivíduos, não importa a combinação de sexos envolvida.
Quando velhos amigos se encontram, eles começam a roçar mutuamente as regiões genitais, e o orgasmo mútuo serve como um animado "tudo bem, mano?". Além disso, os bandos de bonobos vivem sob o comando das fêmeas, o que pode servir como estímulo especial às mulheres que desejem considerar suas opções de transição à vida como chimpanzés.
Existe outro motivo, menos egoísta, para solicitar o status de chimpanzé. Como eu, você talvez se sinta um pouco desapontado com a nossa espécie.
Aqui estamos dotados de ferramentas, do poder da palavra e dos cérebros mais poderosos do planeta -mas o que fizemos de nossos poderes? Envenenamos o mundo, o recobrimos de nossas repulsivas estruturas e exterminamos a maior parte das espécies que compartilhavam do planeta conosco, de elefantes e tigres a peixes.
Evidentemente, o que torna os humanos especialmente incômodos é nossa tendência a acreditar em nossa superioridades absoluta sobre todas as demais criaturas. Só nós, entre todas as espécies, desenvolvemos religiões e filosofias que nos declaram unicamente merecedores da hegemonia global.

Homens e animais
No entanto um a um de nossos traços humanos supostamente únicos terminaram por ser encontrados em outras espécies: os chimpanzés têm culturas, os golfinhos fazem arte (na forma de padrões de bolhas), as fêmeas de morcegos vampiros dividem comida com os amigos, os babuínos machos morrem em defesa de seu grupo, os ratos, recentemente, demonstraram capacidade de reflexão que se assemelha à consciência. Nós somos animais, e os animais somos nós.
Mas não presuma que basta desejar o status de chimpanzé, por qualquer que seja o motivo, para que seu pedido seja atendido, pois não temos razões para acreditar que os chimpanzés venham a nos aceitar.


BARBARA EHRENREICH é jornalista, autora de "Miséria à Americana" (ed. Record). Este texto foi publicado na "Nation".
Tradução de Paulo Migliacci.


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