São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2007

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+ debate

"É impossível ser neutro"

Autor, em 1979, de uma polêmica história da Guerra do Paraguai, Júlio Chiavenato comenta a recente discussão sobre a ideologização dos livros didáticos

DA REDAÇÃO

Um debate em torno da ideologização do ensino da história tem provocado polêmica, com denúncias de livros didáticos que fariam propaganda do governo federal e do regime comunista.
Se, por um lado, esses livros, encomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), continham exemplos extremos de parcialidade, como chamar o chinês Mao Tse-tung de "grande estadista", por outro a disputa entre versões da história é uma constante.
Para comentar o caso, o Mais! foi ouvir alguém acostumado a essas disputas: Júlio José Chiavenato.
Chiavenato enfrentou um dos exemplos mais pungentes da tese de que a história é escrita pelos vencedores, a história da Guerra do Paraguai como descrita pelos militares, durante a ditadura militar.
Em 1979, lançou "Genocídio Americano - A Guerra do Paraguai" (ed. Brasiliense), questionando a história oficial do conflito. E, com o passar do tempo, o contestador se tornou contestado.
Em vez de enaltecer o "heroísmo" das potências regionais que venceram o regime de Solano López, Chiavenato enfatizou a obediência de Brasil e Argentina à política externa britânica -para a qual o Paraguai pecaria justamente por tentar escapar à sua influência.
Depois de gozar do prestígio de revisar a história contada pelos militares, Chiavenato viu, na década de 90, Francisco Doratioto, hoje professor de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília, apresentar uma nova versão, com outras explicações para o conflito: "Maldita Guerra" (Companhia das Letras, 2002).
Na entrevista abaixo, o jornalista autodidata -diz que não quis fazer curso superior- afirma que as duas versões têm abordagens diferentes, mas não aceita a minimização da influência britânica. Também diz que "é impossível ser neutro". Para Chiavenato, 68, o problema dos livros didáticos atuais não é a ideologia -ela sempre está presente-, mas sua própria existência: "O ideal seria não haver livro didático, mas, sim, o professor ser qualificado". (ERNANE GUIMARÃES NETO)

 

FOLHA - Como vê a atual revisão da Guerra do Paraguai?
JÚLIO JOSÉ CHIAVENATO -
A cada vez que se escreve um livro de história, os fatos são analisados com os olhos do presente. Quando escrevi meu livro, o país era pressionado pela ditadura militar, o que influenciou sua escrita e a leitura das outras pessoas. O assunto era um tabu na história do país.

FOLHA - Seu texto operou uma "desmistificação"?
CHIAVENATO -
Foi de encontro a tudo isso, por vários motivos. Primeiro, desmascarava a versão de que fomos os heróis -como se na guerra pudesse haver heróis. Depois, pela reação exacerbada dos militares.

FOLHA - Em que mudou seu discurso nesses anos?
CHIAVENATO -
Nada, o que mudou foi o entendimento das pessoas.

FOLHA - Que diz de pesquisadores que amenizam a influência da Inglaterra, como Doratioto?
CHIAVENATO -
Não se pode ignorar que, quando começou a guerra, o Brasil começou a tomar empréstimos cada vez maiores da Inglaterra. A dívida externa do Brasil cresceu e os empréstimos foram quase exclusivamente para a guerra. É evidente que na relação com a Inglaterra havia várias contradições -como há na relação com os EUA hoje.

FOLHA - O que o aluno aprende sobre a Guerra do Paraguai hoje está mais próximo da "realidade"?
CHIAVENATO -
Depende do professor. De 1920 a 1979, não houve nenhum livro "novo" sobre a Guerra do Paraguai. Desde então surgiram dois livros de certa importância: o de Doratioto e o meu. É o maior conflito da América do Sul, no entanto só há esses livros -há teses. Esses dois livros estão próximos da realidade, dão condições de o professor ensinar. Mas, infelizmente, hoje está tudo ideologizado.

FOLHA - Há uma falsa aparência de neutralidade?
CHIAVENATO -
É impossível ser neutro. Já imaginou escrever um livro sobre o Holocausto e ser neutro? Foram 6 milhões de mortos, é preciso ser contra.

FOLHA - E a ideologia em "Projeto Araribá", livro didático que usou textos de divulgação do programa Fome Zero, ou em "Nova História Crítica", considerado extremamente parcial contra o capitalismo e pró-comunismo?
CHIAVENATO -
Não tem nada de mais ser a favor ou contra o socialismo ou o comunismo. Mas há formas de dizer com responsabilidade e sabendo a quem dizer. Tem gente que quer convencer; já o professor deve ajudar o aluno a tirar suas próprias conclusões.

FOLHA - Pelo que viu desses livros, parecia exagerada a apresentação dos conceitos?
CHIAVENATO -
Os autores se defenderam dizendo que as citações apareciam fora de contexto. Para mim era a coisa certa dita de forma errada.

FOLHA - Qual sua opinião sobre os livros didáticos de história no Brasil?
CHIAVENATO -
Em primeiro lugar, acho que não deveria existir livro didático. Acaba sendo ideológico, pois o maior consumidor de livros didáticos no Brasil é o governo. Ele já é feito pensando-se no currículo escolar, já há ideologia.

FOLHA - Está no PNLD?
CHIAVENATO -
De jeito nenhum.

FOLHA - O sr. tem nível superior?
CHIAVENATO -
Não, sou autodidata. Não quis perder tempo com faculdade, vi a porcaria que era.

FOLHA - Como autor de livros de história, que acha da norma do PNLD que estabelece como requisito para participação a comprovação de nível superior do autor?
CHIAVENATO -
Do ponto de vista deles, estão corretíssimos: pegam, teoricamente, as pessoas mais qualificadas. Mas o resultado é esse que você está vendo.


Leia a íntegra desta entrevista

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