|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BRASIL 500 D.C.
Cidade na periferia de Recife mostra que o Brasil pode se tornar um bom lugar
Resistência à barbárie
JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folha
À primeira vista, nada de espetacular. Camaragibe é uma pequena cidade de 120 mil habitantes localizada na periferia de Recife. Há 17 anos, deixou de ser distrito do município de São Lourenço da Mata e a metamorfose começou. Dessa vez, no entanto, a
mudança aconteceu na contramão do que vem ocorrendo, de
modo geral, no Brasil. Em vez de
degradação urbana e ecológica,
recuperação do espaço do cidadão e do meio ambiente; em vez
de mortalidade infantil, miséria,
tráfico de drogas, desemprego,
delinquência juvenil, violência,
prostituição de crianças, turismo
predatório, corrupção, demagogia, endividamento da administração, uma impressionante estatística de cuidado e respeito ao
outro.
Em meados deste ano, o atual
prefeito, Paulo Santana, recebeu o
prêmio Prefeito Criança, concedido pela Unicef e pela Fundação
Abrinq aos 20 municípios brasileiros com projetos mais bem-sucedidos na assistência a crianças e
adolescentes. A implantação do
atendimento dentário domiciliar
fez da cidade modelo de saúde
bucal; o projeto de atenção médico-psicológica a meninas reduziu,
de modo drástico, a gravidez infantil; a lei de Dação, que permite
o pagamento de dívidas ao município em doações de imóveis ou
serviços de infra-estrutura comunitária, fez de maus devedores cidadãos empenhados em participar do bem-estar de sua cidade;
espécies nativas da mata atlântica
estão sendo cultivadas em um viveiro florestal; 5,5% do orçamento é destinado ao incentivo da cultura e do esporte e, por último e o
mais importante, a cidade tem a
menor taxa de mortalidade infantil do Nordeste (5,6 por 1000, inferior à de São Paulo) e 100% das
crianças com idade de 7 a 14 anos
estão na escola. Tudo isso, pasmem, não impediu a prefeitura de
pagar a seus funcionários um salário mínimo de R$ 163,00 -acima da média da maioria do país!
Gilberto Dimenstein, ao comentar o fato, nesse jornal, em
agosto passado, dizia que tais experiências "mostram como somos idiotas sociais". Ou seja, além
de truculentos, cínicos, gananciosos, oportunistas e superficialmente "modernosos", nos tornamos "idiotas" ao desconhecer que
não pode existir riqueza material
ou espiritual construída sobre a
destruição físico-moral de seres
humanos e do ambiente natural.
Nessa cidadezinha ninguém quer
fabricar "miamis" pagas com a
exploração quase escravista dos
que as edificam; ninguém pensa
que a solução de problemas básicos de subsistência e de convivência social está no turismo voraz e
descontrolado que, quase sempre, traz mais prejuízos morais e
ambientais do que reais benefícios econômicos; ninguém, por
fim, espera de braços cruzados
que os fetiches do Estado ou da
iniciativa privada venham, miraculosamente, socorrer os que desistiram da responsabilidade para
consigo mesmos.
Não se trata de brincar de Poliana e repetir, como bobos alegres, a
receita de "como ser feliz na indigência tropical". A experiência lograda de uma administração honesta, competente e baseada na
participação de todos não exclui a
crítica severa ao abuso de poder
político e econômico desse país. A
chave da discussão é outra. Trata-se de mostrar que viver sem menores abandonados nas ruas, sem
assaltos, sem crianças natimortas
e analfabetas ou cidadãos desempregados e entregues à privação é,
antes de tudo, sinal de criatividade, auto-respeito, autonomia e
exercício da dignidade.
As consequências de experiências felizes como essa são maiores
do que imaginamos. Em primeiro
lugar, é reconfortante observar
que "pessoas comuns" são capazes de se entusiasmar por algo que
foge ao simples gozo passivo do
consumo, do espetáculo e das
sensações, para citar o que
Zygmunt Bauman define como os
hábitos dominantes de nosso
tempo. Encontrar satisfação no
trabalho criativo não exige rios de
dinheiro, "spotlights" ou fotos em
revistas de celebridades. Em segundo lugar, a experiência é
exemplar por mostrar que o desprezo ou o pavor da participação
popular é uma invenção persecutório-ideológica dos que nasceram e se educaram confinados no
lado opulento do imaginário
"muro brasileiro", mais cruel e
impiedoso que seu congênere histórico de Berlim antes da queda.
O povo não é uma ficção de direita ou de esquerda, é, simplesmente, o conjunto de indivíduos
comprometidos com aquilo consensualmente aceito como o Bem
Comum. Se cultivamos essa idéia,
somos perfeitamente capazes de
agir de forma solidária; se, ao contrário, fazemos dela uma farsa
abastardada a serviço de uns poucos, o povo, como seus líderes,
passa a seguir as regras da lei do
cão, imposta pelos donos do poder. Em terceiro lugar, vem, talvez, o fundamental. Ao educar
crianças como estão sendo educadas as crianças de Camaragibe,
ensinamos o valor da vontade, da
determinação, do espírito de potência, esses sim, o melhor antídoto e a melhor prevenção contra
a cultura da lassidão e da debilidade moral que leva os privilegiados
brasileiros a se ocuparem exclusivamente do próprio umbigo e da
quantidade de droga que têm que
ingerir para suportarem a futilidade existencial em que estão
mergulhados.
Há 50 ou 60 anos, essa cidadezinha era, curiosamente, uma vila
operária onde os trabalhadores tinham assistência médica, educação, condições dignas de habitação e interesses culturais voltados
para o esporte, a música, as letras
e a discussão política. O tom do
convívio social, obviamente, era
dado pela tradição conservadora.
Mas o núcleo da socialização democrática estava preservado. Os
patrões não pensavam em fazer
dos empregados bestas de carga
anônimas e descartáveis ao se tornarem "improdutivas". Na casa
de alguns operários se podia ver,
nas estantes, obras da literatura
brasileira e internacional, às vezes
em edições originais. O Brasil não
sucumbira, ainda, à idéia do "God
is money" e, pobres ou ricos, muitos achavam que existem coisas
na vida que não se medem ou trocam por dinheiro.
Depois, veio tudo o que conhecemos, até o estado atual: assassinatos gratuitos em ruas e cinemas; acintes culturais, econômicos e sociais do tipo "New York
Center", nas "barras da tijuca"
país afora; CPIs de narcotráfico,
mostrando que, entre nós, a aliança da elite com a ralé parece ilustrar as mordazes sátiras de Brecht
ou as perigosas origens culturais
do nazismo, como fez ver Hannah
Arendt em suas análises.
O renascer da pequena cidade
pernambucana traz um sopro de
esperança e alívio para os que se
recusam a olhar os 500 anos de
nossa história como um monte de
ruínas. Exemplos como esse mostram a lucidez da poesia cabralina: "Muita diferença faz, entre lutar com as mãos e abandoná-las
para trás". O Brasil, com menos
cupidez e mais seriedade, pode se
tornar um bom lugar para viver.
Aos que escutarem o que foi dito -soluços desconsolados de
"esquerdas moribundas"-, recomendo uma visita a Camaragibe. Lá, o dito é feito e o que é feito
é, de preferência, feito por todos,
para todos e em nome de todos. É
isso a resistência à barbárie; é isso
a construção da democracia. Parabéns Camaragibe, obrigado Camaragibe!
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "A Inocência e o Vício" (Relume-Dumará) e "Sem Fraude Nem Favor" (Rocco). Ele escreve mensalmente na seção
"Brasil 500 d.C.", da Folha.
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br
Texto Anterior: Joyce Pascowitch Próximo Texto: Diálogos impertinentes: Um espírito baixou no século Índice
|