São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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Publicado em novembro de 1899, "A Interpretação dos Sonhos" é o primeiro monumento da psicanálise, a corrente de pensamento mais influente do século
A descoberta revolucionária de Freud

Reprodução
O fundador da psicanálise, Sigmund Freud


RENATO MEZAN
especial para a Folha

"Este livro é minha reação ao fato mais importante, à perda mais pungente que ocorre na vida de um homem: a morte de meu pai." Assim se expressa Freud no prefácio à segunda edição de "A Interpretação dos Sonhos", em 1909, dez anos após a publicação da primeira, cujo centenário estamos comemorando por estes dias. Como que para saudar o novo século com um progresso decisivo no conhecimento da alma humana, o editor Deuticke colocou no frontispício do livro a data de 1900. E, de fato, o século que ora se encerra foi ao menos no campo das humanidades o século freudiano. Nenhuma outra corrente de pensamento influenciou tanto nossa visão do homem, das relações interpessoais, da educação das crianças, dos conflitos emocionais, para não falar do óbvio -a sexualidade-, quanto a escandalosa disciplina da qual a "Traumdeutung" é o primeiro monumento e ao mesmo tempo uma das mais impressionantes realizações.
É interessante pensar que, muitas vezes, as obras inaugurais de uma nova área da invenção humana atingem um grau de perfeição dificilmente alcançado pelas que se seguem. É como se a descoberta de um novo campo expressivo trouxesse consigo um potencial de criação de idéias e de padrões que já nas primeiras concretizações se encontra realizado em grau superlativo. Pense-se no caráter ao mesmo tempo original e modelar dos poemas homéricos para a língua grega, do "Pentateuco" para o idioma hebraico, da "Divina Comédia" e dos "Contos de Canterbury" para o italiano e para o inglês ou ainda no "Cravo Bem Temperado" para o sistema tonal na música, nos concertos de Mozart para o piano da sua época e das sonatas de Beethoven para o da sua... os exemplos certamente não escasseiam. A "Interpretação" é algo do mesmo gênero: referência para todas as realizações futuras e demonstração impressionante da fecundidade de um pensamento revolucionário.
O livro saiu em novembro de 1899, mas sua redação se iniciou bem antes. Ela faz parte de um conjunto de trabalhos que ocupou Freud na segunda metade da década de 1890, após a publicação dos "Estudos Sobre a Histeria", em 1895. Aliás, esse foi um ano fértil em inovações sem as quais nosso século não teria a feição que teve: os irmãos Lumière realizam a primeira projeção de cinema, Marconi inventa o telégrafo sem fio, ocorre a primeira Bienal de Veneza, Roentgen descobre os raios X e em Paris se publica a "Iconographie de la Salpêtrière", um livro adornado com gravuras mostrando com riqueza de detalhes as contrações, paralisias e contorções das histéricas internadas naquele hospital. Ora, a histeria era na época o grande mistério da medicina e discutia-se até mesmo se se tratava ou não de uma doença. Havia os que pensavam que as histéricas eram apenas simuladoras em busca de atenção; Freud, nas pegadas de Charcot, seu professor, era dos que se opunham a tal concepção e se dedicara nos anos anteriores a elucidar o problema da histeria.
Esse esforço o conduziu a diversas consequências, entre as quais a descoberta do método para interpretar os sonhos. Tentando compreender por que as histéricas não conseguiam nem se lembrar nem descobrir o sentido dos seus espetaculares sintomas, Freud foi levado a postular a existência de uma região psíquica na qual se alojavam a recordação de certos traumas, frequentemente de natureza sexual: o inconsciente. Em virtude da ação de mecanismos a que denominou defesas, essas idéias e lembranças penosas se encontravam separadas da consciência, porém conservavam seu poder patógeno; assim, os sintomas eram resultado de diversas combinações entre os impulsos proibidos e as defesas contra eles, em particular a repressão.
Esse é o pano de fundo contra o qual se organizam suas pesquisas no final da década de 1890. Não é difícil compreender que, tendo partido de um problema específico -a natureza e o tratamento da histeria-, Freud se visse pouco a pouco a braços com toda a psicopatologia, na época território tão desconhecido quanto o interior da África.
Por que, em alguns casos, os conflitos conduziam à formação de uma histeria, em outros à de uma neurose obsessiva, em outros ainda a outros quadros? Por que a sexualidade desempenhava em papel tão essencial nesse conjunto de perturbações? Como funcionava a memória, para que o ato de recordar e de reviver os traumas esquecidos tivesse a extraordinária consequência de extinguir os sintomas? Por que a interpretação deles, isto é, a descoberta da sua causa e da sua significação, abria caminho para a cura da paciente? Essas e outras questões impuseram a Freud a tarefa de construir toda uma psicologia, isto é, uma teoria da mente capaz de dar conta tanto do seu funcionamento normal quanto dos diversos tipos de desarranjo que o podem afetar. E, ao longo dos anos que vão de 1895 até 1900, nós o vemos debater-se com esses mistérios, tateando, propondo e descartando hipóteses, até conseguir criar o arcabouço do que seria a psicanálise.

As afinidades eletivas
Temos dessa época um documento extraordinário: as cartas trocadas com Wilhelm Fliess, um médico de Berlim, judeu como Freud, e que durante anos foi seu principal interlocutor. Por elas sabemos das suas dificuldades teóricas, clínicas e pessoais durante esse período, talvez o mais rico e fecundo da sua longa vida. Por mais de 15 anos, de 1887 até 1902, Freud enviou quase diariamente a seu amigo uma vasta série de esboços teóricos e relatos clínicos, bem como narrativas detalhadas do seu dia-a-dia e comentários acerca dos acontecimentos políticos, culturais e científicos que o interessavam.
Naturalmente, remetia também a Fliess os capítulos do livro sobre os sonhos, à medida que os ia escrevendo, e esperava ansioso as críticas e comentários do seu "único público", como o chamava carinhosamente. A correspondência com Fliess é assim uma espécie de "making of" da "Traumdeutung", o filme paralelo que documenta as peripécias, impasses e conflitos que acompanharam a sua redação.
Freud necessitava, para construir sua psicologia, de um acesso ao inconsciente menos cheio de obstáculos do que os que lhe proporcionavam as neuroses. Esse foi o motivo que o levou a se interessar pelos sonhos, além do fato de que seus pacientes -como os de hoje, aliás- frequentemente contavam sonhos nas sessões. Freud teve a idéia de aplicar ao sonho o mesmo método que aperfeiçoara para investigar as neuroses, a combinação da associação livre com a interpretação do sentido. E assim, na manhã de 25 de julho de 1895, sentou-se à sua mesa de trabalho e dedicou-se a associar sobre cada fragmento de um longo sonho que tivera na noite anterior: o da "injeção em Irma".
Esse sonho, e sua interpretação, compõem o capítulo 2 do livro, intitulado "Análise de um Sonho-Modelo". Freud toma cada elemento do sonho -o cenário, os diálogos, os personagens etc.- e segue as associações que ele lhe suscita: com isso, forma-se uma trama paralela de idéias, imagens e sentimentos, na qual certos fios se cruzam e se recruzam.

A essa trama ele denominou conteúdo latente do sonho e postulou que, por meio de condensações e de deslocamentos, ela daria origem ao sonho "sonhado", ou seja, ao conteúdo manifesto.
Isso implicava postular que o conteúdo latente se apresentava transposto e como que deformado no conteúdo manifesto e que a responsabilidade de tal deformação incumbia às defesas encarregadas de censurar o que, no conteúdo latente, fosse reprovável pela consciência moral -isto é, os desejos sexuais e agressivos. Desse modo, chegou à definição do que é a função psicológica do sonho: "Um sonho é a realização disfarçada de um desejo reprimido", na fórmula que se tornou célebre.
No final de 1896, morre o pai de Freud, fato que o lança numa grave depressão. Ele já tinha o costume de anotar seus sonhos e os interpretar sistematicamente; vários deles, inclusive o que teve na noite da morte do pai, foram incluídos no livro. Durante o ano de 1897, Freud está inquieto: seus esforços para construir a "psicologia" se revelam infrutíferos, o luto pelo pai inibe sua criatividade, as análises são interrompidas pelos pacientes antes da solução dos seus sintomas... As cartas documentam esses momentos difíceis, bem como as tentativas de teorização dos problemas clínicos: Freud se persuade de que as histéricas haviam sido seduzidas pelos pais e de que esse trauma era a causa última -o "caput Nili", a cabeceira do Nilo- dos sofrimentos delas. Publica essa hipótese e é saudado com sonoras gargalhadas por seus colegas médicos, um dos quais chega a dizer que a teoria da sedução era um "conto de fadas científico".

A auto-análise
E então, em setembro de 1897, sobrevém a catástrofe: Freud se dá conta de que a sedução era mais uma fantasia do que uma realidade. Na dramática carta de 21/9/1897, descreve a Fliess os motivos que o levaram a abandonar essa hipótese e, ao mesmo tempo, comenta que seu trabalho dos últimos cinco anos desmoronava como um castelo de cartas. Desesperado, inibido em seu trabalho, perdido em meio aos enigmas que o atormentavam, decide aplicar a si mesmo o método terapêutico que inventara e empreende uma auto-análise sistemática. Como não podia consultar um psicanalista -pois era o único praticante da arte-, resolve valer-se da "estrada real para o inconsciente" que os sonhos lhe ofereciam. Noite após noite, estes se tornam mais vívidos e detalhados: no dia seguinte, ele os anota e interpreta, percorrendo todas as veredas a que o levam suas recordações e fantasias.
O resultado não se faz esperar: em poucas semanas, como lemos nas cartas do outono de 1897, desvenda todo um período da sua primeira infância, no qual encontra os impulsos incestuosos e agressivos que posteriormente denominou "complexo de Édipo". Confirma com sua mãe certos detalhes factuais surgidos da interpretação desses sonhos; a descoberta de que eram verídicos o anima a continuar. Ele prossegue em sua aventura solitária, seguindo duas vertentes simultâneas, que desde então se encontram indissociavelmente vinculadas à psicanálise: a exploração de um psiquismo singular (o seu), com as experiências, lembranças e fantasias próprias a ele e apenas a ele, e a teorização em escala mais vasta, buscando extrair desse material absolutamente individual características constantes e mecanismos que pudessem ser válidos para todos -ou ao menos para uma certa categoria de pessoas.
Em "Freud, Pensador de Cultura", especialmente no segundo capítulo, procurei traçar as principais etapas e ramificações desse trajeto, cujos detalhes naturalmente não é o caso de evocar aqui. O que fica claro, como desenho geral, é que Freud opera constantemente em três níveis ou registros. Um é o da análise de suas próprias produções psíquicas, especialmente os sonhos. Outro é o das questões clínicas colocadas por seu trabalho, tanto no plano técnico (questões ligadas à interpretação, à transferência, à resistência e a outros aspectos do processo analítico) quanto no plano psicopatológico (a distinção e classificação das diversas neuroses). O terceiro, de fundamental importância, é o da referência à cultura e ao social-histórico, ou seja, às dimensões extra-individuais que de um modo ou de outro determinam a vida psíquica do indivíduo. Estão nessa categoria suas reflexões sobre a moral e seu papel coercitivo quanto aos desejos, mas também os primeiros estudos de obras literárias, nas quais discerne a operação dos mesmos mecanismos e elementos postos em relevo pelo estudos das neuroses e dos sonhos: defesas, condensação, deslocamento, fantasias etc.
Dessa maneira, Freud se interessa pelos atos falhos e em 1898 envia a Fliess a análise do esquecimento do nome de Signorelli, o pintor dos afrescos da catedral de Orvieto, que formará o capítulo inicial da "Psicopatologia da Vida Cotidiana". Também começa sua coleção de piadas judaicas, que fornecerão o material ilustrativo de um de seus livros mais importantes, "O Chiste e sua Relação com o Inconsciente", no qual se debruça pela primeira vez sobre a questão da agressividade. E, animado pelos resultados da sua auto-análise, que lhe permite vencer a depressão e descobrir modos mais eficazes de trabalhar na clínica, decide no início de 1898 escrever um livro sobre a interpretação dos sonhos.

Síntese das descobertas
O que disse até aqui basta para perceber como a "Traumdeutung" é muito mais do que um manual para interpretar os sonhos. A obra concentra praticamente tudo o que Freud havia descoberto até então, e seu plano aparentemente simples oculta uma riqueza que até hoje os analistas não acabaram de explorar.
O primeiro capítulo foi na verdade o último a ser escrito: é uma revisão da literatura científica sobre os sonhos, tal como existia em 1899. Freud adiou sua redação o quanto pôde, porque esse material era árido e pouco trazia de interessante tanto para ele, que acabara de organizar suas próprias idéias, quanto para o leitor, que seria obrigado a percorrer dezenas de páginas antes de chegar ao que de fato era relevante. Mas, depois de um debate epistolar com Fliess, Freud decidiu que era necessário provar à comunidade médica que sabia do que estava falando, que conhecia o que se fizera antes dele e podia dar razões convincentes para recusar o ponto de vista predominante na época, a saber, que ou o sonho não tinha sentido algum, ou era apenas resultado de processos fisiológicos no cérebro, no fundo não muito diferentes dos gases intestinais que às vezes acompanham a digestão.
Atravessada essa "selva selvaggia", o leitor encontra a análise do sonho de Irma, com seu cortejo de associações. Um breve capítulo 3 enuncia a tese de que todo sonho é uma realização de desejos, ilustrando-a com exemplos de sonhos infantis e de "comodidade" (o sedento que sonha com água, o estudante tresnoitado que sonha já ter chegado ao seu local de trabalho etc.). Vem em seguida o capítulo 4, que introduz as noções centrais de deformação, de conteúdo latente e de conteúdo manifesto. O capítulo 5 trata do material e da fontes do sonho -as vivências recentes ("restos diurnos"), o infantil, o somático- e discute alguns sonhos típicos, como os de nudez, de exame e da morte de pessoas queridas.
O capítulo 6, o mais longo, estuda o trabalho do sonho, ou seja, os mecanismos pelos quais de todas as fontes e materiais latentes se elabora o sonho manifesto. Aqui se amplia o exposto no capítulo 4 sobre a condensação, o deslocamento, a "consideração pela figurabilidade", ou seja, os mecanismos pelos quais idéias se transformam em imagens -e se aborda a questão da lógica do sonho, isto é, como materiais tão díspares se combinam para formar uma sequência de imagens que funciona como uma narração.
No capítulo 7, Freud enfrenta o grande problema de construir um modelo da psique que possa explicar como o sonho é possível. Aqui surgem as idéias de inconsciente, consciente e consciência, de regressão, de realização do desejo como aquilo que move o "aparelho psíquico" e ao mesmo tempo o emperra. Discute-se também a questão da angústia, materializada no fenômeno tão comum do pesadelo, e se introduz o conceito capital de processos primários e secundários.
Essa breve enumeração dos tópicos do livro não pode transmitir a sensação de maravilhamento que se apodera de quem o lê pela primeira vez. Freud é um escritor magnífico. Dá inumeráveis exemplos de cada tema que aborda, extraídos de sonhos próprios e de pacientes; comenta obras literárias -na seção "sonhos típicos", do capítulo 5, fala de "Édipo Rei" e de "Hamlet" a propósito dos desejos edipianos na criança, mas aqui e ali salpica seus argumentos com referências a Cervantes, Shakespeare, Goethe, Zola e inúmeros outros ficcionistas. Oferece mais do que uma introdução à teoria das neuroses, comparando seguidas vezes aspectos da vida onírica a questões da psicopatologia.
Pouco a pouco, vai persuadindo o leitor de que a tese defendida no livro é verdadeira e por vezes utiliza o recurso de conversar com um interlocutor imaginário, que levanta objeções que o leitor certamente também faria. Assim, quando se abre o capítulo "teórico", com a comovente narrativa do sonho da criança morta, cujas roupas pegam fogo porque sobre elas caiu a vela funerária, o cenário está armado para a construção da "psicologia" que Freud perseguira com tamanho afinco nos anos anteriores e que serve como fundamento tanto para a teoria dos sonhos quanto para a teoria das neuroses, além de fornecer as justificativas metapsicológicas para a técnica psicanalítica.

Um trabalho de detetive
A ordem lógica dos capítulos -cada qual com um grande sonho cuja análise faz avançar o argumento, cercado de inúmeros outros que ilustram tópicos mais específicos- oculta, porém, uma outra, a da auto-análise. Devemos a Didier Anzieu um paciente trabalho de reconstrução dessa auto-análise, num livro que ainda hoje, 40 anos após sua publicação, é leitura obrigatória para quem se interessa pelas origens da psicanálise: "L'Auto-Analyse de Freud" (PUF, Paris).
Utilizando referências cruzadas entre os sonhos, a correspondência com Fliess e os fatos históricos a que Freud alude ao comentar certos sonhos -a queda de um gabinete ministerial, a eleição de um prefeito anti-semita em Viena, a guerra de 1898 entre os Estados Unidos e a Espanha etc.-, Anzieu reconstitui todo o trajeto de Freud por seu próprio inconsciente. Mostra de que modo os sonhos abriram caminho para a análise de seus desejos infantis, das angústias que os acompanhavam e dos sintomas que ambos colaboraram para organizar no adulto Freud; expõe as etapas da elaboração do luto pelo pai; elucida os fundamentos neuróticos da amizade com Fliess, que a rigor bem se poderia chamar de "paixão transferencial". Aliás, como talvez fosse previsível, a conclusão do livro sobre os sonhos trouxe também o fim dessa relação, na qual Fliess desempenhou sem saber o papel de um analista -um tanto obtuso e atuador, é verdade, mas indispensável para que o processo se instalasse e se desenvolvesse.
Quando começa o novo século, Freud dá os passos necessários para ser nomeado "Professor Extraordinarius", cargo honorífico cujo prestígio na sociedade austríaca poderia lhe granjear clientela e algum respeito por parte de seus colegas médicos. Tem encaminhados o "Caso Dora" -a primeira amostra mais consistente do seu trabalho, publicada somente em 1905-, o livro sobre os atos falhos, que saiu em 1901, e o esboço do "Chiste". Conseguiu finalmente construir um sistema de psicologia fundamentado em hipóteses claras sobre a estrutura da psique, capaz de dar conta tanto de seu funcionamento normal quanto dos transtornos que o podem perturbar, engendrando cada um uma neurose diferente. Tem os elementos para fundamentar sua prática e dar conta do sucesso ou do fracasso de seus tratamentos.
"A Interpretação dos Sonhos" é o marco central nesse trajeto: antes de a concluir, Freud era um cientista talentoso, mas perturbado por sintomas que ele mesmo chamava de histéricos e por inibições e depressões que às vezes o incapacitavam para seu trabalho. Era um homem um tanto frustrado, que sabia ser muito capaz, mas que chegara aos 40 e poucos anos (na época, isto era o início de velhice) sem atingir os altos objetivos que sua ambição e seu talento lhe haviam fixado.
Obviamente, a publicação do livro não mudou isso do dia para a noite: mas o que ele continha era o início de uma nova disciplina, bem como o ajuste de contas de Sigmund com seu pai, com a sociedade tacanha em que se sentia sufocado e com seus próprios demônios interiores. Em breve, começaria a reunir em torno de si jovens médicos interessados em suas descobertas, que formariam o núcleo inicial do movimento psicanalítico. Ainda teria pela frente 40 anos de vida produtiva, como sabemos, e muitas descobertas ainda estavam por se associar ao seu nome. Mas certamente estava justificado em considerar, como escreveu em 1931 no prefácio à terceira edição inglesa do seu livro: "Insight such as this falls to one's lot but once in a lifetime" -descobertas como esta só se fazem uma vez na vida.


Renato Mezan é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenador da revista "Percurso" e autor de "Escrever a Clínica" (Casa do Psicólogo), "Tempo de Muda" e "Freud, Pensador da Cultura" (Companhia das Letras), entre outros.


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