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A primeira crítica
da Redação
A primeira resenha conhecida
sobre o livro que inaugurou a psicanálise saiu num jornal literário
de Viena, o "Die Gegenwart", em
16 de dezembro de 1899. Freud
não gostou nada do texto, intitulado "A Interpretação Científica
dos Sonhos", e escreveu uma carta a seu amigo Wilhelm Fliess em
que lamentava: "É vazia como
avaliação crítica e inadequada como resenha". Leia abaixo um trecho do artigo.
CARL METZENTIN
Filósofos, de Aristóteles e Platão
a Wundt e Eduard von Hartmann, tentaram penetrar os mistérios dos sonhos. Seus esforços
coletivos pouco mais foram que
um tatear às escuras. O homem
mediano sempre se contentou
com tais clichês como "sonhos
são quimeras" ou "do mesmo
modo que se digere, se sonha". Os
processos psíquicos dos sonhos
encontraram mais pronta receptividade no período que já faz parte
de um passado remoto, em que a
filosofia dominou as cabeças mais
atiladas, e não as ciências exatas.
Nem por isso, contudo, hoje entendemos melhor afirmações como a de Schubert, que via nos sonhos a libertação do espírito humano dos poderes da natureza;
ou opiniões como a do jovem
Fichte, para quem os sonhos representavam uma ascensão da
psique a níveis superiores de existência. Tais idéias, hoje em dia,
são ouvidas somente por místicos
e santos de profissão.
Com o advento da ciência natural, senhora inconteste do pensamento moderno, ocorreu uma
profunda mudança nas formas de
pensar, inclusive quanto aos sonhos. Os médicos tendem a subestimar o significado da atividade psíquica neles envolvida. Psicólogos amadores -de filósofos
a leigos- têm maior simpatia pelas percepções instintivas da gente simples e se atêm à idéia do valor psicológico dos sonhos.
Agora um homem das ciências,
ninguém menos que um neurologista e psicopatologista, o dr. Sigmund Freud, de Viena, alega ter
descoberto uma técnica psicológica que o capacita a interpretar
os sonhos. Com a aplicação desse
método ele diz transformar todo
sonho numa estrutura psíquica
lógica, capaz de ser conciliada
com as atividades mentais de nossa vigília.
Mencione-se de saída que esse
livro denso é escrito sobretudo
para o leitor profissional. Um leigo achará nele trechos bastante
intimidativos. No entanto as principais idéias da apresentação estritamente científica de Freud merecem tornar-se acessíveis a todos.
Podemos ao menos avançar a
seguinte suposição: todos os materiais de que um sonho é composto derivam da experiência do
sonho, tais como reminiscências e
memórias. Eles não prenunciam
o futuro. Seria equivocado supor,
contudo, que o nexo entre um sonho e a vigília seja direto. O nexo
tem de ser trazido à luz com paciência e trabalho árduo. A razão
disso está em certas particularidades que caracterizam nossa capacidade de lembrar e que, embora
bem familiares, desafiaram toda
explicação até agora. O dr. Freud
sujeita tais particularidades a um
exame mais minucioso.
Primeiro, o conteúdo do sonho
contém muitas vezes materiais
que, na vigília, somos incapazes
de verificar como parte de nossa
experiência. Sonhamos com um
certo acontecimento, indivíduo
ou paisagem; lembramos claramente o conteúdo de nossos sonhos e, no entanto, somos incapazes de vinculá-lo a alguma experiência real. A fonte dos materiais
permanece obscura e somos tentados a supor que os sonhos têm
algum poder generativo próprio.
E então, depois de um longo tempo, talvez algum incidente nos recorde, de estalo, a cena ou acontecimento originais. Temos de admitir, então, que em nosso sonho
sabíamos e lembrávamos algo
que não recordávamos na vigília.
Uma fonte importante de materiais para essa reprodução surpreendente nos sonhos é a infância. Sua parte mais remota, como
todos sabem, é inacessível à nossa
recordação consciente. É exatamente dela, porém, que nascem
os momentos mais dramáticos de
nossos sonhos. Freud cita, como
exemplo, um sonho do dr. Maury.
Quando criança, ele costumava
caminhar de Meaux, sua cidade
natal, até as proximidades de Trilport, onde seu pai dirigia a construção de uma ponte. Em seu sonho ele se vê novamente brincando nas ruas de Trilport. Um homem de uniforme aproxima-se;
Maury pergunta-lhe quem é. Ele
se apresenta como C., o guarda da
ponte. Quando Maury acorda,
duvida da precisão de sua lembrança. Ele pergunta a uma velha
criada (que o acompanhou desde
a infância) se ela se lembra de alguém com esse nome. Mas claro,
ela diz, ele era o guarda da ponte
na época do seu pai.
Desse e de outros exemplos podemos ver prontamente a estranha preferência da memória do
sonho por materiais irrelevantes e
triviais. Essa preferência fez com
que alguns pesquisadores se perguntassem se há alguma relação
entre os sonhos e a vigília ou, em
havendo, se algum dia ela poderá
ser encontrada.
Hildebrandt certamente tem razão quando diz que poderíamos
explicar a gênese de todas as imagens do sonho se ao menos tivéssemos tempo e energia suficientes
para fazê-los retroceder o bastante no tempo. Fizéssemos isso, diz
ele, tal jornada nos levaria a uma
fração qualquer de refugo psíquico num recesso remoto de nosso
banco de memória. Desenterraríamos diversos acontecimentos
debaixo de outros que os soterraram, talvez horas após sua ocorrência. O dr. Freud há certamente
de lamentar que um escritor tão
perspicaz quanto Hildebrandt tenha sido dissuadido de seguir tal
caminho, por menos promissor
que ele fosse. (...)
Tradução de José Marcos Macedo.
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