São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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A primeira crítica

da Redação

A primeira resenha conhecida sobre o livro que inaugurou a psicanálise saiu num jornal literário de Viena, o "Die Gegenwart", em 16 de dezembro de 1899. Freud não gostou nada do texto, intitulado "A Interpretação Científica dos Sonhos", e escreveu uma carta a seu amigo Wilhelm Fliess em que lamentava: "É vazia como avaliação crítica e inadequada como resenha". Leia abaixo um trecho do artigo.

CARL METZENTIN

Filósofos, de Aristóteles e Platão a Wundt e Eduard von Hartmann, tentaram penetrar os mistérios dos sonhos. Seus esforços coletivos pouco mais foram que um tatear às escuras. O homem mediano sempre se contentou com tais clichês como "sonhos são quimeras" ou "do mesmo modo que se digere, se sonha". Os processos psíquicos dos sonhos encontraram mais pronta receptividade no período que já faz parte de um passado remoto, em que a filosofia dominou as cabeças mais atiladas, e não as ciências exatas.
Nem por isso, contudo, hoje entendemos melhor afirmações como a de Schubert, que via nos sonhos a libertação do espírito humano dos poderes da natureza; ou opiniões como a do jovem Fichte, para quem os sonhos representavam uma ascensão da psique a níveis superiores de existência. Tais idéias, hoje em dia, são ouvidas somente por místicos e santos de profissão.
Com o advento da ciência natural, senhora inconteste do pensamento moderno, ocorreu uma profunda mudança nas formas de pensar, inclusive quanto aos sonhos. Os médicos tendem a subestimar o significado da atividade psíquica neles envolvida. Psicólogos amadores -de filósofos a leigos- têm maior simpatia pelas percepções instintivas da gente simples e se atêm à idéia do valor psicológico dos sonhos.
Agora um homem das ciências, ninguém menos que um neurologista e psicopatologista, o dr. Sigmund Freud, de Viena, alega ter descoberto uma técnica psicológica que o capacita a interpretar os sonhos. Com a aplicação desse método ele diz transformar todo sonho numa estrutura psíquica lógica, capaz de ser conciliada com as atividades mentais de nossa vigília.
Mencione-se de saída que esse livro denso é escrito sobretudo para o leitor profissional. Um leigo achará nele trechos bastante intimidativos. No entanto as principais idéias da apresentação estritamente científica de Freud merecem tornar-se acessíveis a todos.
Podemos ao menos avançar a seguinte suposição: todos os materiais de que um sonho é composto derivam da experiência do sonho, tais como reminiscências e memórias. Eles não prenunciam o futuro. Seria equivocado supor, contudo, que o nexo entre um sonho e a vigília seja direto. O nexo tem de ser trazido à luz com paciência e trabalho árduo. A razão disso está em certas particularidades que caracterizam nossa capacidade de lembrar e que, embora bem familiares, desafiaram toda explicação até agora. O dr. Freud sujeita tais particularidades a um exame mais minucioso.
Primeiro, o conteúdo do sonho contém muitas vezes materiais que, na vigília, somos incapazes de verificar como parte de nossa experiência. Sonhamos com um certo acontecimento, indivíduo ou paisagem; lembramos claramente o conteúdo de nossos sonhos e, no entanto, somos incapazes de vinculá-lo a alguma experiência real. A fonte dos materiais permanece obscura e somos tentados a supor que os sonhos têm algum poder generativo próprio. E então, depois de um longo tempo, talvez algum incidente nos recorde, de estalo, a cena ou acontecimento originais. Temos de admitir, então, que em nosso sonho sabíamos e lembrávamos algo que não recordávamos na vigília.
Uma fonte importante de materiais para essa reprodução surpreendente nos sonhos é a infância. Sua parte mais remota, como todos sabem, é inacessível à nossa recordação consciente. É exatamente dela, porém, que nascem os momentos mais dramáticos de nossos sonhos. Freud cita, como exemplo, um sonho do dr. Maury. Quando criança, ele costumava caminhar de Meaux, sua cidade natal, até as proximidades de Trilport, onde seu pai dirigia a construção de uma ponte. Em seu sonho ele se vê novamente brincando nas ruas de Trilport. Um homem de uniforme aproxima-se; Maury pergunta-lhe quem é. Ele se apresenta como C., o guarda da ponte. Quando Maury acorda, duvida da precisão de sua lembrança. Ele pergunta a uma velha criada (que o acompanhou desde a infância) se ela se lembra de alguém com esse nome. Mas claro, ela diz, ele era o guarda da ponte na época do seu pai.
Desse e de outros exemplos podemos ver prontamente a estranha preferência da memória do sonho por materiais irrelevantes e triviais. Essa preferência fez com que alguns pesquisadores se perguntassem se há alguma relação entre os sonhos e a vigília ou, em havendo, se algum dia ela poderá ser encontrada.
Hildebrandt certamente tem razão quando diz que poderíamos explicar a gênese de todas as imagens do sonho se ao menos tivéssemos tempo e energia suficientes para fazê-los retroceder o bastante no tempo. Fizéssemos isso, diz ele, tal jornada nos levaria a uma fração qualquer de refugo psíquico num recesso remoto de nosso banco de memória. Desenterraríamos diversos acontecimentos debaixo de outros que os soterraram, talvez horas após sua ocorrência. O dr. Freud há certamente de lamentar que um escritor tão perspicaz quanto Hildebrandt tenha sido dissuadido de seguir tal caminho, por menos promissor que ele fosse. (...)


Tradução de José Marcos Macedo.


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