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O sentido dos sonhos
MARIA RITA KEHL
especial para a Folha
Se Freud não podia prever a extensão dos efeitos de "A Interpretação dos Sonhos" sobre o mundo
ocidental, certamente intuía a dimensão desestabilizadora do que
estava fazendo. Tanto que escreveu a seu amigo Fliess, dizendo
que, algum dia, na porta de sua
casa, haveria uma placa dizendo:
"Nesta casa, no ano de 1899, o segredo dos sonhos foi revelado ao
dr. Sigmund Freud".
Hoje qualquer criança sabe resumir o essencial da "Interpretação" freudiana: os sonhos são realizações de desejos. A frase soa tão
familiar que já não nos lembramos de refazer algumas perguntas fundamentais. Primeiro: por
que um desejo precisaria de um
sonho para se realizar? Segundo:
por que um desejo haveria de realizar-se justamente durante o sono, quando estamos impossibilitados de realizá-lo em ato? Terceiro: como acreditar que um desejo
se realize por meio de imagens/idéias tão absurdas e desconexas,
nas quais o sonhador dificilmente
se reconhece?
Vou fazer um esforço para dispensar toda a releitura lacaniana
da obra de Freud e remeter essas
questões ao texto de 1899, convidando o leitor a imaginar com
que espanto, com que excitação,
com quanto medo e esperança
Freud teria escrito e publicado sua
teoria, novinha em folha, cem
anos atrás.
Primeiro, vale lembrar que a
"Traumdeutung" não propõe
uma interpretação para os sonhos, mas um método investigativo. Esse método deu origem ao
tratamento psicanalítico, que, por
sua vez, também consiste numa
investigação. Interpretar, escreveu Freud no segundo capítulo de
seu livro, é traduzir em linguagem
comum a linguagem do inconsciente. A associação livre, que
busca fazer com que o sujeito fale
na linguagem mais parecida com
a dos processos primários que organizam o sonho, é a regra fundamental de todo o processo analítico -um processo, como se sabe,
que cura pela palavra. Não a palavra do analista -conselho, sugestão, orientação-, e sim a do próprio sujeito que vem se indagar
sobre o enigma do seu desejo.
Segundo: o desejo que o sonho
realiza não se parece com nenhuma das vontades que reconhecemos como sendo "nossas"; é um
desejo inconsciente, recalcado,
infantil. Essa observação faz toda
a diferença. Desejos recalcados
são desejos cuja representação está barrada de nossa consciência.
"Sabemos que a atitude do sujeito
com respeito a seus desejos é uma
atitude muito particular, pois os
rechaça, os censura e não quer saber nada deles", escreveu Freud
(cap. 7, item d, pág. 698 das
"Obras Completas", Biblioteca
Nueva, Madri).
Inútil tentativa, a de calar o desejo inconsciente. Ele permanece
vivo, indestrutível, atemporal e
ativo, produzindo efeitos não
apenas sobre essa atividade aparentemente desimportante, essa
espécie de rebotalho da mente
que são os sonhos. O recalque que
produz a necessidade do sonho
produz também o sintoma neurótico, solução de compromisso
entre instâncias psíquicas que
permite ao neurótico obter, sem
que ele tenha que se responsabilizar por isso, modalidades substitutivas daqueles prazeres dos
quais sua consciência (que é sempre, também, consciência moral)
nada quer saber.
Finalmente o desejo interfere
também no pensamento, na forma de ilusões, delírios, fantasias.
O ato de pensar, escreve Freud,
não é senão um substituto, mais
adaptado ao princípio da realidade, do desejo alucinatório. E prossegue: "Só um desejo é capaz de
suscitar trabalho ao aparelho psíquico".
O sonho, realização de desejos
recalcados, vem nos dar então a
incômoda notícia da existência
desse sujeito que habita em nós e
que tem o poder não só de nos fazer pensar coisas estranhas, mas
também de alterar o rumo de nossas vidas: o sujeito do desejo inconsciente. É do inconsciente que
a verdade do sujeito age, fala e
produz efeitos estranhos à "razão", faculdade sobre a qual o homem ocidental, desde o Iluminismo, pensava estarem fundadas as
bases do seu ser.
Até aqui, explicamos por que o
desejo precisa dos sonhos para se
realizar. Mas não explica absolutamente como é que um desejo se
realiza durante o sono, sem que
nem uma ação motora tenha se
produzido na direção do prazer
que ele parecia pedir. É que o desejo não aponta para o prazer, e
sim para uma realização impossível: podemos chamá-la, com
Freud, de incesto, desde que lembremos que é um incesto irrealizável, fusão mortífera com o corpo imaginário de uma mãe completa que nunca existiu e da qual o
sujeito precisou se separar para se
constituir. O desejo nos angustia e
não pode ser jamais realizado em
ato. Mas é possível fazê-lo falar
-por exemplo, ele se "realiza" ao
encontrar uma representação
onírica-, para que não tenha que
agir, enigmaticamente, sobre nós.
Ora, o sujeito habitado por um
desejo irrealizável, motor de todo
o trabalho psíquico, é o sujeito
marcado por uma falta. Por outro
lado, se esse desejo pede para ser
falado, o sujeito da psicanálise é
essencialmente um habitante da
linguagem.
Assim Freud desbancou o homem da razão ocidental para instalar em seu lugar o sujeito do desejo. Não sem um certo pesar,
aliás; sua esperança sempre foi a
de que a razão pudesse voltar a
colonizar o território bravio do
desejo inconsciente. Desbancou o
homem moral, mostrando que
nossas fantasias mais imorais acabam sempre por se impor, de
uma forma ou de outra -pela via
do sonho ou do sintoma-, e que
portanto é melhor, pelo menos,
desistir de tentar ignorá-las. E
desbancou sobretudo o homem
reificado do mundo capitalista, o
homem que tenta afirmar sua humanidade pelo domínio positivo
sobre as coisas, sobre o corpo e
sobre o outro, ao lhe dizer: meu
caro, você não é senhor nem de
sua própria casa.
Dessa maneira, desbancou a
ciência psiquiátrica de seu tempo,
que trabalhava para fazer calar as
manifestações incompreensíveis
do inconsciente e separar os normais dos anormais, isolando os
últimos nos manicômios. É melhor escutar o que dizem essas
histéricas aparentemente malucas, sugeriu Freud. Elas podem ter
alguma coisa a nos revelar... a
nosso próprio respeito.
Diante da psicofarmacologia
atual, a cura psicanalítica oferece-se como uma opção ética, mais do
que como opção médica. O que
queremos: permanecer alheios ao
estranhamente familiar que nos
habita ou nos indagar sobre ele?
Deixar nossos sintomas por conta
do saber de um outro -a medicina, a bioquímica- ou nos responsabilizar por eles? Fazer calar
os efeitos do desejo inconsciente
ou fazê-lo falar -a escolha é do
freguês. O psicanalista, de sua
parte, ainda faz o que Freud sempre fez: escuta o que parece sem
sentido, até que algum sentido
possa se produzir.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta,
autora de, entre outros, "Deslocamentos do
Feminino" (Imago).
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