São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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O sentido dos sonhos

MARIA RITA KEHL
especial para a Folha

Se Freud não podia prever a extensão dos efeitos de "A Interpretação dos Sonhos" sobre o mundo ocidental, certamente intuía a dimensão desestabilizadora do que estava fazendo. Tanto que escreveu a seu amigo Fliess, dizendo que, algum dia, na porta de sua casa, haveria uma placa dizendo: "Nesta casa, no ano de 1899, o segredo dos sonhos foi revelado ao dr. Sigmund Freud".
Hoje qualquer criança sabe resumir o essencial da "Interpretação" freudiana: os sonhos são realizações de desejos. A frase soa tão familiar que já não nos lembramos de refazer algumas perguntas fundamentais. Primeiro: por que um desejo precisaria de um sonho para se realizar? Segundo: por que um desejo haveria de realizar-se justamente durante o sono, quando estamos impossibilitados de realizá-lo em ato? Terceiro: como acreditar que um desejo se realize por meio de imagens/idéias tão absurdas e desconexas, nas quais o sonhador dificilmente se reconhece?
Vou fazer um esforço para dispensar toda a releitura lacaniana da obra de Freud e remeter essas questões ao texto de 1899, convidando o leitor a imaginar com que espanto, com que excitação, com quanto medo e esperança Freud teria escrito e publicado sua teoria, novinha em folha, cem anos atrás.
Primeiro, vale lembrar que a "Traumdeutung" não propõe uma interpretação para os sonhos, mas um método investigativo. Esse método deu origem ao tratamento psicanalítico, que, por sua vez, também consiste numa investigação. Interpretar, escreveu Freud no segundo capítulo de seu livro, é traduzir em linguagem comum a linguagem do inconsciente. A associação livre, que busca fazer com que o sujeito fale na linguagem mais parecida com a dos processos primários que organizam o sonho, é a regra fundamental de todo o processo analítico -um processo, como se sabe, que cura pela palavra. Não a palavra do analista -conselho, sugestão, orientação-, e sim a do próprio sujeito que vem se indagar sobre o enigma do seu desejo.
Segundo: o desejo que o sonho realiza não se parece com nenhuma das vontades que reconhecemos como sendo "nossas"; é um desejo inconsciente, recalcado, infantil. Essa observação faz toda a diferença. Desejos recalcados são desejos cuja representação está barrada de nossa consciência. "Sabemos que a atitude do sujeito com respeito a seus desejos é uma atitude muito particular, pois os rechaça, os censura e não quer saber nada deles", escreveu Freud (cap. 7, item d, pág. 698 das "Obras Completas", Biblioteca Nueva, Madri).
Inútil tentativa, a de calar o desejo inconsciente. Ele permanece vivo, indestrutível, atemporal e ativo, produzindo efeitos não apenas sobre essa atividade aparentemente desimportante, essa espécie de rebotalho da mente que são os sonhos. O recalque que produz a necessidade do sonho produz também o sintoma neurótico, solução de compromisso entre instâncias psíquicas que permite ao neurótico obter, sem que ele tenha que se responsabilizar por isso, modalidades substitutivas daqueles prazeres dos quais sua consciência (que é sempre, também, consciência moral) nada quer saber.
Finalmente o desejo interfere também no pensamento, na forma de ilusões, delírios, fantasias. O ato de pensar, escreve Freud, não é senão um substituto, mais adaptado ao princípio da realidade, do desejo alucinatório. E prossegue: "Só um desejo é capaz de suscitar trabalho ao aparelho psíquico".
O sonho, realização de desejos recalcados, vem nos dar então a incômoda notícia da existência desse sujeito que habita em nós e que tem o poder não só de nos fazer pensar coisas estranhas, mas também de alterar o rumo de nossas vidas: o sujeito do desejo inconsciente. É do inconsciente que a verdade do sujeito age, fala e produz efeitos estranhos à "razão", faculdade sobre a qual o homem ocidental, desde o Iluminismo, pensava estarem fundadas as bases do seu ser.
Até aqui, explicamos por que o desejo precisa dos sonhos para se realizar. Mas não explica absolutamente como é que um desejo se realiza durante o sono, sem que nem uma ação motora tenha se produzido na direção do prazer que ele parecia pedir. É que o desejo não aponta para o prazer, e sim para uma realização impossível: podemos chamá-la, com Freud, de incesto, desde que lembremos que é um incesto irrealizável, fusão mortífera com o corpo imaginário de uma mãe completa que nunca existiu e da qual o sujeito precisou se separar para se constituir. O desejo nos angustia e não pode ser jamais realizado em ato. Mas é possível fazê-lo falar -por exemplo, ele se "realiza" ao encontrar uma representação onírica-, para que não tenha que agir, enigmaticamente, sobre nós.
Ora, o sujeito habitado por um desejo irrealizável, motor de todo o trabalho psíquico, é o sujeito marcado por uma falta. Por outro lado, se esse desejo pede para ser falado, o sujeito da psicanálise é essencialmente um habitante da linguagem.
Assim Freud desbancou o homem da razão ocidental para instalar em seu lugar o sujeito do desejo. Não sem um certo pesar, aliás; sua esperança sempre foi a de que a razão pudesse voltar a colonizar o território bravio do desejo inconsciente. Desbancou o homem moral, mostrando que nossas fantasias mais imorais acabam sempre por se impor, de uma forma ou de outra -pela via do sonho ou do sintoma-, e que portanto é melhor, pelo menos, desistir de tentar ignorá-las. E desbancou sobretudo o homem reificado do mundo capitalista, o homem que tenta afirmar sua humanidade pelo domínio positivo sobre as coisas, sobre o corpo e sobre o outro, ao lhe dizer: meu caro, você não é senhor nem de sua própria casa.
Dessa maneira, desbancou a ciência psiquiátrica de seu tempo, que trabalhava para fazer calar as manifestações incompreensíveis do inconsciente e separar os normais dos anormais, isolando os últimos nos manicômios. É melhor escutar o que dizem essas histéricas aparentemente malucas, sugeriu Freud. Elas podem ter alguma coisa a nos revelar... a nosso próprio respeito.
Diante da psicofarmacologia atual, a cura psicanalítica oferece-se como uma opção ética, mais do que como opção médica. O que queremos: permanecer alheios ao estranhamente familiar que nos habita ou nos indagar sobre ele? Deixar nossos sintomas por conta do saber de um outro -a medicina, a bioquímica- ou nos responsabilizar por eles? Fazer calar os efeitos do desejo inconsciente ou fazê-lo falar -a escolha é do freguês. O psicanalista, de sua parte, ainda faz o que Freud sempre fez: escuta o que parece sem sentido, até que algum sentido possa se produzir.


Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de, entre outros, "Deslocamentos do Feminino" (Imago).


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