São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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A ambição impossível de Freud

HAROLD BLOOM
especial para a Folha

Para elucidar o uso da palavra "inocência" no título de seu livro "A Inocência dos Sonhos", o psicanalista Charles Rycroft se refere à "idéia de que os sonhos ficam por trás do conhecimento, exibindo indiferença às categorias estabelecidas, e são portadores de um núcleo que não pode senão ser sincero e não contaminado pela vontade consciente". A explicação, em si, é inocente e não chega a dar conta da força polêmica do título, que é uma interpretação implícita da teoria freudiana. Rycroft nos faz repensar o nome do livro de Freud como "A Culpa dos Sonhos".
Divergir a tal ponto da teoria freudiana de interpretação dos sonhos, tantos anos depois da publicação de "Die Traumdeutung", representa um ato de audácia admirável para um psicanalista da experiência de Rycroft. Mas, ao contrário de Richard Wollheim, leitor minucioso e formidável de Freud, ou de um intérprete americano como Philip Rieff, o que Rycroft nos dá pode ser visto, em meu juízo, como uma desleitura fraca.
Segundo ele, Freud vê os sonhos e sintomas neuróticos como "falhas da repressão". Mas o enunciado mais extenso de Freud sobre o assunto tem outra ênfase: "Um sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou reprimido)". Embora Rycroft não o diga, é de supor que seu distanciamento das idéias de Freud sobre os sonhos tenha origem em sua falta de interesse pelos aspectos de crise em "A Interpretação dos Sonhos", que são o que confere ao livro sua qualidade mais literária.
A crise, para Freud, era dupla, envolvendo tanto a morte de seu pai quanto o relacionamento conflituoso com Fliess. A maior obra de Freud, sem dúvida, paga um preço por essa origem na auto-análise desbravadora do autor. Pois foi para Freud que a interpretação dos sonhos se revelou a via real do inconsciente. E esse legado, agora, tem de ser usufruído à custa do domínio de Freud sobre todos nós.
Richard Wollheim enfatiza bem que o elemento de desejo nos sonhos não será expresso por eles; Freud, assim, pode propor o "trabalho onírico" como algo capaz de disfarçar o desejo. E o que isso significa é que o desejo já foi reprimido antes de entrar no sonho. Uma conclusão dessas contribui para desvalorizar os sonhos e nos lembrar que o inconsciente freudiano representa uma redução deliberada do abismo obscuro e rico do inconsciente arcaico (hoje junguiano). Mas o que dá a Freud a confiança de reduzir os sonhos dessa forma?

A autoridade do analista
Parte da resposta (e um aspecto vulnerável da teoria) é que o texto do sonho dado à interpretação é escrito nalguma medida pelo próprio Freud, já que se trata de uma versão nascida na sessão analítica. Quer dizer: sujeita à dinâmica da transferência e, portanto, uma narrativa que tem lugar no contexto da autoridade do analista.
Compreende-se, então, que Philip Rieff busque resgatar o sonho das consequências últimas da autoridade de Freud, vendo em cada sonhador um poeta, cujo esforço intelectual é precisamente o de sobrepujar seu intérprete: "A principal qualidade do sonho, quando interpretado, não é tanto o seu sentido, mas o nível de elaboração de seus significativos disfarces". Sobre isso, pode-se fazer dois comentários: em primeiro lugar, que Freud teria discordado de Rieff e, em segundo, que é exatamente esse aspecto da interpretação freudiana que justifica, em parte, Lacan.
Se há um intervalo tão grande entre as elaborações do conteúdo manifesto e a simplicidade do latente, então os sonhos (no contexto freudiano da transferência) incitam à desleitura lacaniana forte da prioridade do significante sobre o significado -ou ao contraste entre a riqueza da figuração e a pobreza do significado.
Um sonho, por mais elaborado, é só um substituto para outro texto mais verdadeiro; mas um substituto capaz de exercer a interpretação, o que o torna particularmente suspeito. Na visão freudiana, um sonho é, portanto, um texto tardio, um comentário inadequado a um poema ausente. Sua trama provavelmente não importa; o que conta é algum elemento particular, alguma imagem que nem parece pertencer ao texto. Nesse sentido, Freud é o progenitor legítimo de Lacan e Derrida, com suas desconstruções da pulsão, exceto que ele teria insistido para que os dois se voltassem aos abismos do sonho -e não aos de seus próprios escritos.

Uma paródia da poesia
Foi Philip Rieff quem disse que a psicanálise parodia as tradições da hermenêutica religiosa; e sua tirada continua válida e provocadora. Mas a psicanálise também é uma paródia redutora da poesia, o que talvez seja outra maneira de dizer que a poesia sempre foi uma espécie transcendental de psicanálise, num modo marcado pelos padrões de transferência e contra-transferência, ou da influência e suas angústias.
Freud falava a verdade ao admitir, repetidamente, que os poetas estavam lá antes dele. Lacan, com certeza, em seus raros melhores momentos, é capaz de nos dar o que os poetas nos dão mais plena e livremente. Os sonhos, como a psicanálise, parodiam e reduzem poemas, se se for tratar deles, seguindo Freud, em termos de conteúdo latente ou "sentido". Mas, em seu conteúdo manifesto, em suas imagens e suas tramas, os sonhos compartilham com a poesia elementos que desafiam qualquer redução.
As reduções de Freud lhe eram necessárias, tendo em vista que sua busca era de caráter científico e terapêutico. Enquanto adivinho terapêutico dos sonhos, ele está acima de qualquer rival, antigo ou moderno, e isso mais por conta do que a despeito de sua excessiva confiança como intérprete. Mas sonhos não são poemas, nem ao menos maus poemas; e Freud era astuto demais para gastar suas consideráveis energias reduzindo poemas. Um ensaísta como Rycroft manifesta uma nostalgia honorável ao tratar dos sonhos com respeito literário bem maior do que o do próprio Freud. Seria mais interessante aceitar a limitação voluntária do criador da psicanálise e procurar compreender que espécie de ato representava esse desrespeito pragmático pelos sonhos.
Para além de um tal entendimento, poderia surgir uma consciência nova das múltiplas formas a que convergem a poesia e a psicanálise, ainda que diferindo como modalidades de interpretação. Se Freud encontrou seus pares nos poetas, isso se deu por conta da capacidade interpretativa desses, mas seus objetivos, afinal, não eram compatíveis com as ambições mais elevadas da poesia, como ele mesmo veio a compreender.



Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone Ocidental" (Objetiva).
Tradução de Arthur Nestrovski.




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