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A ambição impossível de Freud
HAROLD BLOOM
especial para a Folha
Para elucidar o uso da palavra
"inocência" no título de seu livro
"A Inocência dos Sonhos", o psicanalista Charles Rycroft se refere
à "idéia de que os sonhos ficam
por trás do conhecimento, exibindo indiferença às categorias estabelecidas, e são portadores de um
núcleo que não pode senão ser
sincero e não contaminado pela
vontade consciente". A explicação, em si, é inocente e não chega
a dar conta da força polêmica do
título, que é uma interpretação
implícita da teoria freudiana.
Rycroft nos faz repensar o nome
do livro de Freud como "A Culpa
dos Sonhos".
Divergir a tal ponto da teoria
freudiana de interpretação dos
sonhos, tantos anos depois da publicação de "Die Traumdeutung",
representa um ato de audácia admirável para um psicanalista da
experiência de Rycroft. Mas, ao
contrário de Richard Wollheim,
leitor minucioso e formidável de
Freud, ou de um intérprete americano como Philip Rieff, o que
Rycroft nos dá pode ser visto, em
meu juízo, como uma desleitura
fraca.
Segundo ele, Freud vê os sonhos
e sintomas neuróticos como "falhas da repressão". Mas o enunciado mais extenso de Freud sobre o assunto tem outra ênfase:
"Um sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido
ou reprimido)". Embora Rycroft
não o diga, é de supor que seu distanciamento das idéias de Freud
sobre os sonhos tenha origem em
sua falta de interesse pelos aspectos de crise em "A Interpretação
dos Sonhos", que são o que confere ao livro sua qualidade mais literária.
A crise, para Freud, era dupla,
envolvendo tanto a morte de seu
pai quanto o relacionamento conflituoso com Fliess. A maior obra
de Freud, sem dúvida, paga um
preço por essa origem na auto-análise desbravadora do autor.
Pois foi para Freud que a interpretação dos sonhos se revelou a
via real do inconsciente. E esse legado, agora, tem de ser usufruído
à custa do domínio de Freud sobre todos nós.
Richard Wollheim enfatiza bem
que o elemento de desejo nos sonhos não será expresso por eles;
Freud, assim, pode propor o "trabalho onírico" como algo capaz
de disfarçar o desejo. E o que isso
significa é que o desejo já foi reprimido antes de entrar no sonho.
Uma conclusão dessas contribui
para desvalorizar os sonhos e nos
lembrar que o inconsciente freudiano representa uma redução
deliberada do abismo obscuro e
rico do inconsciente arcaico (hoje
junguiano). Mas o que dá a Freud
a confiança de reduzir os sonhos
dessa forma?
A autoridade do analista
Parte da resposta (e um aspecto
vulnerável da teoria) é que o texto
do sonho dado à interpretação é
escrito nalguma medida pelo próprio Freud, já que se trata de uma
versão nascida na sessão analítica.
Quer dizer: sujeita à dinâmica da
transferência e, portanto, uma
narrativa que tem lugar no contexto da autoridade do analista.
Compreende-se, então, que
Philip Rieff busque resgatar o sonho das consequências últimas da
autoridade de Freud, vendo em
cada sonhador um poeta, cujo esforço intelectual é precisamente o
de sobrepujar seu intérprete: "A
principal qualidade do sonho,
quando interpretado, não é tanto
o seu sentido, mas o nível de elaboração de seus significativos disfarces". Sobre isso, pode-se fazer
dois comentários: em primeiro
lugar, que Freud teria discordado
de Rieff e, em segundo, que é exatamente esse aspecto da interpretação freudiana que justifica, em
parte, Lacan.
Se há um intervalo tão grande
entre as elaborações do conteúdo
manifesto e a simplicidade do latente, então os sonhos (no contexto freudiano da transferência) incitam à desleitura lacaniana forte
da prioridade do significante sobre o significado -ou ao contraste entre a riqueza da figuração e a
pobreza do significado.
Um sonho, por mais elaborado,
é só um substituto para outro texto mais verdadeiro; mas um substituto capaz de exercer a interpretação, o que o torna particularmente suspeito. Na visão freudiana, um sonho é, portanto, um texto tardio, um comentário inadequado a um poema ausente. Sua
trama provavelmente não importa; o que conta é algum elemento
particular, alguma imagem que
nem parece pertencer ao texto.
Nesse sentido, Freud é o progenitor legítimo de Lacan e Derrida,
com suas desconstruções da pulsão, exceto que ele teria insistido
para que os dois se voltassem aos
abismos do sonho -e não aos de
seus próprios escritos.
Uma paródia da poesia
Foi Philip Rieff quem disse que a
psicanálise parodia as tradições
da hermenêutica religiosa; e sua
tirada continua válida e provocadora. Mas a psicanálise também é
uma paródia redutora da poesia,
o que talvez seja outra maneira de
dizer que a poesia sempre foi uma
espécie transcendental de psicanálise, num modo marcado pelos
padrões de transferência e contra-transferência, ou da influência e
suas angústias.
Freud falava a verdade ao admitir, repetidamente, que os poetas
estavam lá antes dele. Lacan, com
certeza, em seus raros melhores
momentos, é capaz de nos dar o
que os poetas nos dão mais plena
e livremente. Os sonhos, como a
psicanálise, parodiam e reduzem
poemas, se se for tratar deles, seguindo Freud, em termos de conteúdo latente ou "sentido". Mas,
em seu conteúdo manifesto, em
suas imagens e suas tramas, os sonhos compartilham com a poesia
elementos que desafiam qualquer
redução.
As reduções de Freud lhe eram
necessárias, tendo em vista que
sua busca era de caráter científico
e terapêutico. Enquanto adivinho
terapêutico dos sonhos, ele está
acima de qualquer rival, antigo ou
moderno, e isso mais por conta
do que a despeito de sua excessiva
confiança como intérprete. Mas
sonhos não são poemas, nem ao
menos maus poemas; e Freud era
astuto demais para gastar suas
consideráveis energias reduzindo
poemas. Um ensaísta como
Rycroft manifesta uma nostalgia
honorável ao tratar dos sonhos
com respeito literário bem maior
do que o do próprio Freud. Seria
mais interessante aceitar a limitação voluntária do criador da psicanálise e procurar compreender
que espécie de ato representava
esse desrespeito pragmático pelos
sonhos.
Para além de um tal entendimento, poderia surgir uma consciência nova das múltiplas formas
a que convergem a poesia e a psicanálise, ainda que diferindo como modalidades de interpretação. Se Freud encontrou seus pares nos poetas, isso se deu por
conta da capacidade interpretativa desses, mas seus objetivos, afinal, não eram compatíveis com as
ambições mais elevadas da poesia, como ele mesmo veio a compreender.
Harold Bloom é professor de literatura nas
universidades de Yale e Nova York; é autor,
entre outros, de "A Angústia da Influência"
(Imago) e "O Cânone Ocidental" (Objetiva).
Tradução de Arthur Nestrovski.
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