São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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LIVROS
"A Revolução dos Tipos" traz uma antologia histórica dos alfabetos
Mutações da escrita

VICENZO SCARPELLINI
Secretário-assistente de Redação

Para quem se publica um livro sobre tipografia? Para o leitor comum, para os designers, para os clientes? Essas perguntas surgem com o lançamento de "A Revolução dos Tipos", do arquiteto e designer Vicente Gil. Trata-se de uma obra muito bem acabada e impressa, que se apresenta como "transformação de um caderno de anotações de um artista", apesar de ser suntuoso e grande -incutindo mais respeito do que curiosidade desinteressada.
O livro abre com uma antologia histórica de alfabetos tipográficos (intercalada por citações de designers, entendidos ou críticos do assunto) e fecha com uma história da escrita até a Bauhaus. No meio, estão os produtos gráficos do autor. Início e fim têm o mérito de reunir, em língua portuguesa, textos não-traduzidos ou dispersos em obras diferentes. Isso mantém a promessa do título e seria a parte destinada ao leitor comum, aquele que, por interesse pessoal ou obrigação profissional, quer aprofundar o conhecimento da matéria.
Dito isso, provoca uma certa frustração que uma tese de doutorado sobre design gráfico não aborde um problema específico ou, então, não enfrente um tema mais ligado à cultura do país. Sem espírito nacionalista, mas só porque o desafio é interessante: seria possível uma "tropicália tipográfica", hoje que o computador muda o desenho e a composição das letras como a guitarra elétrica mudou o timbre e a composição das notas?
Por exemplo, o Brasil teve sua primeira oficina tipográfica, no Rio de Janeiro, só em 1808, mas possui um patrimônio de manuscritos com o qual alguém, em benefício da tipografia, deveria se confrontar: existe uma maneira de conciliar barroco e (pós) moderno? Outra mina seria a escrita manual e espontânea, aquela que se encontra em feiras e circos, nas placas dos banquinhos de rua ou nos pneus dos borracheiros. Quando Neville Brody (designer inglês muito citado no livro) deu um passeio pelo centro de São Paulo, ficou maravilhado com isso. Já existem registros fotográficos, mas falta um aprofundamento teórico, sobretudo com enfoque no design.

Leitores e designers
Em "A Revolução dos Tipos", texto e imagens são programaticamente diagramados com o objetivo de fazer o leitor pensar, sem passividade ou fáceis acomodações. Vale a pena, aqui, expressar duas dúvidas em relação à exuberante linguagem tipográfica do livro. Não se discute a competência do autor, nem se deseja entrar, por falta de distância crítica, na polêmica sobre a legitimidade do estilo escolhido, isto é, se é melhor secundar ou combater as passagens da moda e do gosto.
A primeira dúvida é: pela natureza do assunto, o livro não possui valor documentário que entra em conflito com seu valor estético? A leitura, sabemos, não é instinto natural, pede um método que necessita ser aprendido e acompanhado de muito interesse. Certamente, quem se aproxima de um livro sobre tipografia tem cultura e motivação. Mas estamos seguros de que o leitor, que já enfrenta no dia-a-dia uma massa impiedosa de informações a serem selecionadas, entendidas e digeridas, tenha realmente vontade de se conscientizar -enquanto aprende sobre alfabetos e escrita- em relação à natureza da comunicação visual?
E será que a estrutura revelada e as amostras de possibilidades do computador realmente são suficientes para fazê-lo entender a comunicação? Por exemplo, quantas pessoas dirigem carros sem ter a menor vontade de saber como funciona o motor? Se o carro fosse transparente e o motor estivesse à vista (talvez isso não demore, se se levar em conta as caixas de relógio e de computadores), seria automático o conhecimento da mecânica? E aqui está a segunda, pérfida dúvida: não será então que a linguagem visual do livro está mais dirigida aos colegas designers que aos leitores?
Há também uma curiosa contradição no texto inicial, no qual comparece a seguinte afirmação: "Se a escrita é a cópia da língua falada, a tipografia é o modo de representação". Substancialmente se assume que a escrita seja algo que tem mais a ver com a oralidade do que com o universo dos signos gráficos.
Justamente contra esse conceito se lançou Derrida, indicando incongruências na teoria de Saussure e criando as bases para a gráfica pós-estruturalista ou desconstrucionista, à qual o design do livro é devedor. Este segundo termo chegou ao grande público com a mostra "Deconstrutivist Architecture", no MoMA de Nova York, em 1988, como é contado no belo ensaio "Deconstruction and Graphic Design", em "Design, Writing Research", de Ellen Lupton e J. Abbot Miller, um dos livros presentes na bibliografia.
Não vamos incomodar Derrida. Reflita-se, porém, sobre a presença na escrita de letras itálicas, maiúsculas e minúsculas, que não têm correspondência na língua falada; assim como não existem recuos de parágrafo, asteriscos, números exponenciais. Os números, aliás, são ideográficos e não fonéticos, porque não traduzem somente um som, como faz uma letra. As aspas também não existem na fala e, quando as assinalamos com os dedos, a rigor isso seria a língua falada que copia a escrita. Há até quem tenha chegado a sugerir que veículo primário da comunicação seja -e tenha sempre sido- a escrita.
A escrita não está subordinada à fala, mas é paralela a ela. Esse é o fundamento teórico da linguagem gráfica apresentada no livro; como o é da poesia visual, que indaga a língua na sua materialidade. E, por sinal, foi o que gerou em muitos designers a idéia romântica de auto-expressão formal.

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O miolo apresenta projetos do autor, e isso não é raro em livros de design. Paul Rand tinha 32 anos, mas era já um designer influente nos EUA, quando escreveu "Thoughts on Design" (1946), no qual utilizou o próprio trabalho como exemplo para lançar um manifesto da gráfica modernista americana. Em "A Revolução dos Tipos", o trabalho do autor, oferecido com virtuosa pirotecnia tipográfica, não está analisado e não tem nenhuma relação explícita com os outros textos. Ainda assim, nada de mal nisso. Mas por que, então, dar ao livro esse título? Não seria melhor usar a palavra "port-folio" em algum lugar? Sem isso, os trabalhos se inserem entre um texto e outro quase como anúncios publicitários.



A OBRA
A Revolução dos Tipos - Vicente Gil. FAU-USP/Associação dos Designers Gráficos (r. Cônego Eugênio Leite, 920, SP, CEP 05414-001, tel. 0/xx/11/ 280-1322). 278 págs. R$ 70,00.




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