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Ponto de fuga
Pelas ruas
Jacques Villeglé procura cartazes nas ruas, colados em camadas que se estragam e rasgam de maneira aleatória; suas brechas interrompem a imagem da superfície para revelar aquela que está por trás
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Há uma bela quantidade
de exposições em Paris
neste fim de ano. Uma
talvez seja mais reveladora do
que as outras. Provoca euforia
e exalta; as obras fascinam e
não se repetem. Trata-se da
primeira retrospectiva de um
artista hoje com 82 anos. Está
no Centro Pompidou, o grande
templo das vanguardas.
Jacques Villeglé, desde 1947,
procura cartazes nas ruas. É
preciso que estejam colados
uns sobre os outros, oferecendo camadas que se estragam e
rasgam de maneira aleatória.
Formam brechas que interrompem a imagem da superfície para revelar aquela que está
por trás.
Villeglé ajuda o acaso e rasga
ele também, depois de descolar
cuidadosamente esses restos
de publicidade e levá-los para
casa. Quando, numa parede,
um acúmulo espesso de cartazes o atrai, espera que "amadureça", que fique no ponto de satisfazê-lo. Sabe distinguir as
qualidades materiais do papel,
de dureza, resistência, flexibilidade, diferentes se exposto ao
sol ou se protegido dentro do
metrô, por exemplo.
Uma atividade como essa
não parece hoje muito nova:
Mimmo Rotella [1918-2006]
adquiriu celebridade com uma
prática semelhante. Villeglé foi
descoberto de fato a partir dos
anos 1990. No entanto começou a produzir em 1947, antes
de Rotella. Suas obras são mais
vastas e mostram uma afirmação significante maior.
Esses painéis respiram com
o fôlego próprio à pintura de
história (compreendendo aqui
os grandes quadros celebrando
episódios como "O Grito do
Ipiranga"). Uma pintura de história crítica, capaz de incorporar as celebrações publicitárias
como marcas do tempo e provocar comentários surpreendentes entre as imagens que,
perturbadas pelas lacerações,
se interpenetram.
Fora
Villeglé, como Rotella, como
Hains e Dufrêne, que investiram também nesses cartazes
rasgados, sintoniza-se com tudo o que pode intervir de maneira menos ordenada e obediente no espaço público. Têm,
naturalmente, afinidades com
os grafiteiros e pichadores.
Villeglé incorpora cartazes
pichados. Assim, retratos do
candidato Mitterand à Presidência mostram um bigodinho
hitleriano desmistificador.
Dentro
Os comentários desta coluna
sobre a moça presa por pichar
parede na Bienal levaram alguns leitores a escrever para
distinguir grafiteiros e pichadores. De fato, não distinguem
apenas. Classificam, hierarquizam, valorizam e desdenham.
Retomam uma concepção
que paira na relação entre os
dois grupos. Grafite é arte. Picho, não. Grafite embeleza. Picho suja.
A visão é preconceituosa. O
grafite, elaborado, aplicado, caprichado, bem feito, seria superior. Portanto, despreza com
desdém a pichação, mais rude,
sentida como delinqüente por
razões sociais. Tudo isso ignora
a urgência interna, visceral,
profunda, dos pichos, suas forças verdadeiras.
O primeiro, de fato, parece-se melhor com o que, de hábito,
pensa-se ser arte: algo refletido,
composto, elaborado, com certas ambições expressivas,
quando não harmônicas.
O segundo, porém, afirma-se
como gesto transgressor, que
recusa ser recuperado. É capaz
de efeitos poderosos. Impõe, na
paisagem urbana, uma vibração insubordinada. Fica no
oposto, está claro, do slogan
"cidade limpa", que cheira a um
leve nazismo do cotidiano,
aquele mesmo denunciado por
Michel Foucault.
Sabonete
O grupo Cobra, o "art brut"
de Dubuffet, Basquiat, e quantos outros mais, se afinam com
a pichação de rua ou, mesmo,
derivam dela. Arte nem sempre
é limpinha.
jorgecoli@uol.com.br
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