São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2008

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Ponto de fuga

Pelas ruas


Jacques Villeglé procura cartazes nas ruas, colados em camadas que se estragam e rasgam de maneira aleatória; suas brechas interrompem a imagem da superfície para revelar aquela que está por trás

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Há uma bela quantidade de exposições em Paris neste fim de ano. Uma talvez seja mais reveladora do que as outras. Provoca euforia e exalta; as obras fascinam e não se repetem. Trata-se da primeira retrospectiva de um artista hoje com 82 anos. Está no Centro Pompidou, o grande templo das vanguardas.
Jacques Villeglé, desde 1947, procura cartazes nas ruas. É preciso que estejam colados uns sobre os outros, oferecendo camadas que se estragam e rasgam de maneira aleatória. Formam brechas que interrompem a imagem da superfície para revelar aquela que está por trás.
Villeglé ajuda o acaso e rasga ele também, depois de descolar cuidadosamente esses restos de publicidade e levá-los para casa. Quando, numa parede, um acúmulo espesso de cartazes o atrai, espera que "amadureça", que fique no ponto de satisfazê-lo. Sabe distinguir as qualidades materiais do papel, de dureza, resistência, flexibilidade, diferentes se exposto ao sol ou se protegido dentro do metrô, por exemplo.
Uma atividade como essa não parece hoje muito nova: Mimmo Rotella [1918-2006] adquiriu celebridade com uma prática semelhante. Villeglé foi descoberto de fato a partir dos anos 1990. No entanto começou a produzir em 1947, antes de Rotella. Suas obras são mais vastas e mostram uma afirmação significante maior.
Esses painéis respiram com o fôlego próprio à pintura de história (compreendendo aqui os grandes quadros celebrando episódios como "O Grito do Ipiranga"). Uma pintura de história crítica, capaz de incorporar as celebrações publicitárias como marcas do tempo e provocar comentários surpreendentes entre as imagens que, perturbadas pelas lacerações, se interpenetram.

Fora
Villeglé, como Rotella, como Hains e Dufrêne, que investiram também nesses cartazes rasgados, sintoniza-se com tudo o que pode intervir de maneira menos ordenada e obediente no espaço público. Têm, naturalmente, afinidades com os grafiteiros e pichadores.
Villeglé incorpora cartazes pichados. Assim, retratos do candidato Mitterand à Presidência mostram um bigodinho hitleriano desmistificador.

Dentro
Os comentários desta coluna sobre a moça presa por pichar parede na Bienal levaram alguns leitores a escrever para distinguir grafiteiros e pichadores. De fato, não distinguem apenas. Classificam, hierarquizam, valorizam e desdenham.
Retomam uma concepção que paira na relação entre os dois grupos. Grafite é arte. Picho, não. Grafite embeleza. Picho suja.
A visão é preconceituosa. O grafite, elaborado, aplicado, caprichado, bem feito, seria superior. Portanto, despreza com desdém a pichação, mais rude, sentida como delinqüente por razões sociais. Tudo isso ignora a urgência interna, visceral, profunda, dos pichos, suas forças verdadeiras.
O primeiro, de fato, parece-se melhor com o que, de hábito, pensa-se ser arte: algo refletido, composto, elaborado, com certas ambições expressivas, quando não harmônicas.
O segundo, porém, afirma-se como gesto transgressor, que recusa ser recuperado. É capaz de efeitos poderosos. Impõe, na paisagem urbana, uma vibração insubordinada. Fica no oposto, está claro, do slogan "cidade limpa", que cheira a um leve nazismo do cotidiano, aquele mesmo denunciado por Michel Foucault.

Sabonete
O grupo Cobra, o "art brut" de Dubuffet, Basquiat, e quantos outros mais, se afinam com a pichação de rua ou, mesmo, derivam dela. Arte nem sempre é limpinha.


jorgecoli@uol.com.br


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