|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O MEIO SEM A MENSAGEM
EM ENTREVISTA À FOLHA, VINTON CERF,
QUE IDEALIZOU A INTERNET,
DEFENDE A EFICIÊNCIA DA REDE,
MAS ALERTA QUE AS FRAUDES AMEAÇAM
ESCAPAR AO CONTROLE
EM UM FUTURO PRÓXIMO
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
Evoluir é preciso. Para Vinton
Cerf, idealizador da internet e
criador dos protocolos que
deram origem a toda a rede de
computadores tal como existe hoje,
não há sombra de falência do projeto, apesar dos atuais entraves envolvendo a Wikipedia ou o Google, empresa em que trabalha hoje.
Para ele, a internet continua sendo
um meio de comunicação capaz de
sediar modelos de compartilhamento de informações -como fora pensada originalmente.
Porém é crescente e mais importante, diz, a preocupação com segurança, confidencialidade, integridade da comunicação e outras práticas
abusivas. Ele acredita que a internet
precisa evoluir para desenvolver novas formas de tratar tais questões. "A
internet é o que o mundo faz dela.
Não podemos ditar a forma como
ela será usada em todos os lugares."
Cerf foi autor, em 1973, com Robert Cohn, dos estudos originais que
projetaram a internet. Hoje ele é
"Chief Internet Evangelist" (algo como gerente evangelista de internet)
do Google, responsável, por encorajar a expansão da rede em escala global e uma das principais faces públicas da empresa.
Na entrevista abaixo, concedida à
Folha em dois tempos, por telefone
e e-mail, ele ressalta o empenho das
pessoas envolvidas no desenvolvimento de tecnologias e usos da internet e aponta que 99% das aplicações a serem usadas no futuro ainda
não foram inventadas.
Cerf indica um certo crescimento
de alguns tipos de atividade fraudulenta, por conta da internet, mas diz
que esse é um comportamento humano, havendo ou não a rede de
computadores.
Ele admite que estamos nos tornando dependentes e cada vez mais
frágeis, graças ao desenvolvimento
da internet. "Eu tenho este cenário
de pesadelo, num futuro frágil, em
que o sistema cada vez mais complexo com milhões de softwares, interagindo uns com os outros, sempre de
formas inovadoras."
Folha - Como as recentes restrições
ao Google na China, as imposições do
governo dos EUA e a restrição às informações na Wikipedia da Alemanha
afetam a liberdade de expressão?
Vinton Cerf - A internet é o que o
mundo faz dela, e nós realmente não
podemos ditar como ela deve ser
usada em todos os lugares. Nós podemos apenas fazer o melhor para
tornar o meio tão aberto quanto os
usuários permitam que ele seja.
Folha - Chegamos ao fim da internet
como era pensada na última década,
como um universo democrático, de informações circulando livremente?
Cerf - Espero que esse não seja o caso. A internet sempre foi pensada
como um sistema capaz de sediar
uma vasta gama de modelos de
compartilhamento de informações.
Está claro que nem todos os países
e sociedades compartilham do mesmo ponto de vista, de que toda informação deveria estar disponível livremente. Há preocupação sobre a exposição de menores a material que
deveria ser apenas para adultos ou
talvez nem mesmo permitido na rede. Há preocupação de que alguns tipos de informação podem trazer
problemas políticos.
E também existe a preocupação
com softwares malignos, que violam
a privacidade de cidadãos ou os prejudicam financeiramente ou de outras formas.
Folha - A internet está passando por
uma fase de ruptura?
Cerf - A internet continua a servir
um número crescente de usuários.
Estimativas atuais dão conta de 1 bilhão de pessoas conectadas. Entretanto as aplicações da internet só
evoluíram com o tempo. Como empresas e usuários individuais entram
nesse ambiente virtual, há uma
preocupação crescente com a segurança, confidencialidade, integridade da comunicação e práticas abusivas, incluindo spam e vários tipos de
software maliciosos.
Conseqüentemente, há um grande
interesse em evoluir a internet para
satisfazer essas novas ou expandidas
demandas. Ao mesmo tempo em
que digo que a internet não está
"quebrada" ou falida, não há nenhuma dúvida de que ela precisa evoluir
e desenvolver novas funcionalidades
para satisfazer necessidades.
Folha - Como o Google trabalha para controlar a qualidade das informações que oferece em suas ferramentas
de busca?
Cerf - O Google não garante o conteúdo que descobre na internet. Seus
algoritmos, que fazem o ranking do
material que ele apresenta, são intencionalmente preparados para dar
destaque ao que parece ser mais relevante.
Usamos vários tipos de técnicas
para fazer essa identificação e essa
classificação, mas não temos meios
automáticos que garantam a confiabilidade da informação descoberta.
As ferramentas de busca do Google
permitem que os usuários restrinjam sua busca em domínios especificados (por exemplo: governo, textos
acadêmicos, livros etc.), numa tentativa de oferecer mais altos graus de
relevância nas respostas às buscas.
Folha - É possível controlar a qualidade das informações na internet,
evitando abusos?
Cerf - Bem, o conceito que uso, de
"má informação" é relativo e depende de quem a está utilizando, podendo achar útil ou não.
É difícil falar disso em termos absolutos. Algumas informações são
rejeitadas internacionalmente, como pornografia infantil, mas é mais
difícil controlar quando se trata de
informações que não são reprovadas universalmente e apontam apenas opiniões divergentes.
Nesse caso, da minha perspectiva
norte-americana, fazemos uma defesa muito forte da liberdade de expressão, originalmente criada para
proteger o livre discurso político,
mas que ganhou uma visão mais
abrangente e inclui qualquer tipo de
discurso.
Costumo lembrar, entretanto, que
o direito à expressão não garante
que ninguém deva ouvi-lo. Não posso dizer o quanto eu me importo
com fazer com que o pensamento
crítico se torne parte da formação
das crianças para que tenhamos
adultos capazes de distinguir uma
informação de qualidade da informação inútil.
Isso não apenas na internet, mas
em todas as fontes de informação,
sejam revistas, jornais, televisão, cinema, rádio, além de nossos parentes e amigos. Acho que impor controle governamental ao conteúdo
das páginas na rede seria tecnicamente muito difícil, além de moralmente condenável.
Folha - Com o crescimento da internet, pode-se dizer que estamos nos
tornando cada vez mais frágeis?
Cerf - Tenho esse cenário de pesadelo, num futuro frágil, de um sistema cada vez mais complexo com
milhões de softwares, interagindo
uns com os outros, sempre de formas inovadoras. Posso dizer que os
cientistas que estão pesquisando os
sistemas de computadores em todo
o mundo, as pesquisas acadêmicas,
precisam se dedicar muito mais de
que têm trabalhado recentemente
para construir sistemas mais confiáveis e resistentes, menos frágeis à invasão e à fraude.
Apesar de todos os ataques, nesses
quase 30 anos da internet, ainda não
houve nenhum problema de segurança que afetasse de forma grave a
sociedade, mas isso não deve evitar
que se trabalhe duro para criar sistemas mais seguros. Essa deveria ser
nossa meta para este novo século.
Folha - Além da censura, a privacidade e o anonimato na internet também podem ser um problema?
Cerf - Anonimato é muitas vezes
uma ferramenta importante, mas,
em outras vezes, apenas algo que facilita o uso abusivo da rede. A divulgação anônima de informações na
rede é muito difícil de controlar, e a
melhor forma de combatê-la é colocar sua própria informação na rede,
para ir contra o que quer que esteja
sendo dito. A solução para combater
a má informação é ter cada vez mais
informações on-line.
Por outro lado, o anonimato pode
ser muito importante, pois encoraja
pessoas a apontarem abusos e problemas, especialmente quando se
trata de questões ligadas ao governo.
Folha - O que o sr. acha da internet
como invenção?
Cerf - É muito empolgante. O que
mais me impressiona é que esse trabalho foi reaproveitado por outras
pessoas que também se empolgaram rapidamente com a idéia de conectar computadores de todo o
mundo, de compartilhar informação da forma como fazemos hoje, de
ser uma plataforma para todos os tipos de comunicação digital, não só
mensagens de texto e páginas na internet mas também voz e vídeo.
É um ambiente riquíssimo, e provavelmente 99% das aplicações que
serão usadas na rede no futuro ainda
nem foram inventadas. Estamos
ainda nos estágios iniciais da compreensão sobre o que podemos fazer
com esse tipo de recurso.
Folha - Nos anos 70, quando a tecnologia foi inventada, o sr. imaginava
tais desdobramentos?
Cerf - (Rindo) Eu gostaria de poder
dizer que "claro que sim, e tudo que
você vê hoje eu já tinha em mente",
mas estaria mentindo. Acho que
nosso entendimento coletivo do poder da web apareceu enquanto ele
crescia, enquanto se tornava capaz
de assumir novas funções, aumentar
a velocidade. Quando começamos,
fazíamos conexões a 50 mil bits por
segundo, hoje não é incomum ver
conexões de 10 bilhões de bits por
segundo e já houve demonstrações
de conexões de 40 bilhões de bits por
segundo.
Dá para ver que as coisas mudaram em vários sentidos. Similarmente, quando o sistema começou a
operar, em 1º de janeiro de 1983, havia 400 computadores conectados.
Hoje acho que podemos encontrar
cerca de 1 bilhão de usuários. No intervalo de 20 anos, o sistema cresceu
numa proporção inimaginável.
Folha - Nesses diferentes desenvolvimentos da tecnologia, o que mais o
surpreendeu?
Cerf - Com o tempo, ainda virão
muitos outros dispositivos de uso
dessa tecnologia. Hoje em dia, uma
das tecnologias que têm se desenvolvido mais é a de telefonia móvel. O
sistema de telefonia mais de que duplicou nos últimos cinco ou seis
anos por causa da telefonia sem fio e
por celular, e todos esse telefones,
com o tempo, vão estar ligados também por meio de conexões de internet. Então veremos um aumento exponencial no número de pessoas
que têm acesso à internet.
Folha - E o que o desapontou?
Cerf - Muitas coisas, de fato. Uma
delas é quase inescapável. Quando
se entra na www (World Wide
Web), se encontra uma quantidade
enorme de informações -que não
poderiam ser encontradas sem que
companhias como o Google ajudassem- e se descobre que há muita
informação ruim na rede, seja material sem valor ou mesmo divulgação
de informações que representam
mal o tema em questão, o que pode
confundir ainda mais quem está navegando.
De qualquer forma, isso é um resultado paralelo ao fato de a população em geral ter acesso à rede e ter a
possibilidade de divulgar o que quiser por meio dela. Não sei, portanto,
se se trata de um desapontamento
com a internet ou de uma decepção
com a sociedade global e sua pouca
habilidade em compreender e divulgar as coisas.
Começamos a ver fraudes e outras
formas de abuso como o spam, e-mail comercial não-solicitado, coisas desse tipo. E essas coisas me parecem quase um aspecto inescapável
do desenvolvimento da civilização
moderna. Acho que teria que dizer
que fraudes já existiam 10 mil anos
atrás, em sociedades mais primitivas, não são um fenômeno novo,
embora tenham se tornado globais
com a internet.
Folha - Qual é a principal questão relacionada à segurança na internet?
Cerf - Acho que o maior problema
hoje é a fraqueza dos sistemas operacionais de segurança em uso na rede
-com base no Windows, Linux,
Macintosh ou qualquer outro. Todos têm muitas falhas que podem
ser exploradas e não apenas por especialistas. Há ferramentas que facilitam o acesso a essas falhas mesmo
a pessoas que não entendem tanto
do sistema operacional dos computadores na rede.
Temos também problemas de autenticação. É difícil identificar as
partes numa transação comercial.
São necessárias melhores ferramentas de autenticação para evitar esse
tipo de abuso.
O spam é hoje um fenômeno econômico. Como o envio de mensagens eletrônicas é gratuito, as pessoas podem enviar quantidades
imensas de anúncios por meio de
spam, e, se apenas uma parcela ínfima responder, já vale o trabalho e
cobre o custo. Não tenho uma solução simples para esse problema,
apesar de achar que identificar as
fontes das mensagens ajudaria.
Folha - Dificulta o fato de não haver
uma regulamentação internacional
para um fenômeno tão global?
Cerf - É um ponto importante. Precisamos de um padrão internacional
de legislação que ajude na aplicação
da lei em base internacional. Temos
a Interpol, mas, além desses corpos
internacionais de coordenação e
aplicação da lei, também é preciso
haver alguma compatibilidade de lei
em países diferentes. O spam é um
problema internacional.
Por exemplo, se todos os países tomassem uma posição semelhante,
proibindo-o, as pessoas que enviassem mensagens por spam de um
país para outro poderiam ser processadas. O mesmo poderia ser válido para outros tipos de atividades
ilegais pela internet.
Folha - O sr. acredita que esse tipo
de regulamentação seja possível?
Cerf - Acho que não. É mais provável que vejamos acordos multilaterais ou bilaterais de que um padrão
mundial de regras como o que mencionei. Aponto, entretanto, que temos uma necessidade igualmente
importante de padronizar internacionalmente o comércio eletrônico;
isto é, o que é um contrato legal, como assiná-lo digitalmente, como resolver disputas internacionais de negociações feitas pela internet.
Precisamos de acordos internacionais indo além da busca por criminosos, o que acho difícil de criar em
uma rede global tão abrangente.
Texto Anterior: Curto-circuito na rede Próximo Texto: Breve história da internet Índice
|