São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 2006

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O MEIO SEM A MENSAGEM

EM ENTREVISTA À FOLHA, VINTON CERF, QUE IDEALIZOU A INTERNET, DEFENDE A EFICIÊNCIA DA REDE, MAS ALERTA QUE AS FRAUDES AMEAÇAM ESCAPAR AO CONTROLE EM UM FUTURO PRÓXIMO

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

Evoluir é preciso. Para Vinton Cerf, idealizador da internet e criador dos protocolos que deram origem a toda a rede de computadores tal como existe hoje, não há sombra de falência do projeto, apesar dos atuais entraves envolvendo a Wikipedia ou o Google, empresa em que trabalha hoje.
Para ele, a internet continua sendo um meio de comunicação capaz de sediar modelos de compartilhamento de informações -como fora pensada originalmente.
Porém é crescente e mais importante, diz, a preocupação com segurança, confidencialidade, integridade da comunicação e outras práticas abusivas. Ele acredita que a internet precisa evoluir para desenvolver novas formas de tratar tais questões. "A internet é o que o mundo faz dela. Não podemos ditar a forma como ela será usada em todos os lugares."
Cerf foi autor, em 1973, com Robert Cohn, dos estudos originais que projetaram a internet. Hoje ele é "Chief Internet Evangelist" (algo como gerente evangelista de internet) do Google, responsável, por encorajar a expansão da rede em escala global e uma das principais faces públicas da empresa.
Na entrevista abaixo, concedida à Folha em dois tempos, por telefone e e-mail, ele ressalta o empenho das pessoas envolvidas no desenvolvimento de tecnologias e usos da internet e aponta que 99% das aplicações a serem usadas no futuro ainda não foram inventadas.
Cerf indica um certo crescimento de alguns tipos de atividade fraudulenta, por conta da internet, mas diz que esse é um comportamento humano, havendo ou não a rede de computadores.
Ele admite que estamos nos tornando dependentes e cada vez mais frágeis, graças ao desenvolvimento da internet. "Eu tenho este cenário de pesadelo, num futuro frágil, em que o sistema cada vez mais complexo com milhões de softwares, interagindo uns com os outros, sempre de formas inovadoras."
 

Folha - Como as recentes restrições ao Google na China, as imposições do governo dos EUA e a restrição às informações na Wikipedia da Alemanha afetam a liberdade de expressão?
Vinton Cerf -
A internet é o que o mundo faz dela, e nós realmente não podemos ditar como ela deve ser usada em todos os lugares. Nós podemos apenas fazer o melhor para tornar o meio tão aberto quanto os usuários permitam que ele seja.

Folha - Chegamos ao fim da internet como era pensada na última década, como um universo democrático, de informações circulando livremente?
Cerf -
Espero que esse não seja o caso. A internet sempre foi pensada como um sistema capaz de sediar uma vasta gama de modelos de compartilhamento de informações.
Está claro que nem todos os países e sociedades compartilham do mesmo ponto de vista, de que toda informação deveria estar disponível livremente. Há preocupação sobre a exposição de menores a material que deveria ser apenas para adultos ou talvez nem mesmo permitido na rede. Há preocupação de que alguns tipos de informação podem trazer problemas políticos.
E também existe a preocupação com softwares malignos, que violam a privacidade de cidadãos ou os prejudicam financeiramente ou de outras formas.

Folha - A internet está passando por uma fase de ruptura?
Cerf -
A internet continua a servir um número crescente de usuários. Estimativas atuais dão conta de 1 bilhão de pessoas conectadas. Entretanto as aplicações da internet só evoluíram com o tempo. Como empresas e usuários individuais entram nesse ambiente virtual, há uma preocupação crescente com a segurança, confidencialidade, integridade da comunicação e práticas abusivas, incluindo spam e vários tipos de software maliciosos.
Conseqüentemente, há um grande interesse em evoluir a internet para satisfazer essas novas ou expandidas demandas. Ao mesmo tempo em que digo que a internet não está "quebrada" ou falida, não há nenhuma dúvida de que ela precisa evoluir e desenvolver novas funcionalidades para satisfazer necessidades.

Folha - Como o Google trabalha para controlar a qualidade das informações que oferece em suas ferramentas de busca?
Cerf -
O Google não garante o conteúdo que descobre na internet. Seus algoritmos, que fazem o ranking do material que ele apresenta, são intencionalmente preparados para dar destaque ao que parece ser mais relevante.
Usamos vários tipos de técnicas para fazer essa identificação e essa classificação, mas não temos meios automáticos que garantam a confiabilidade da informação descoberta. As ferramentas de busca do Google permitem que os usuários restrinjam sua busca em domínios especificados (por exemplo: governo, textos acadêmicos, livros etc.), numa tentativa de oferecer mais altos graus de relevância nas respostas às buscas.

Folha - É possível controlar a qualidade das informações na internet, evitando abusos?
Cerf -
Bem, o conceito que uso, de "má informação" é relativo e depende de quem a está utilizando, podendo achar útil ou não.
É difícil falar disso em termos absolutos. Algumas informações são rejeitadas internacionalmente, como pornografia infantil, mas é mais difícil controlar quando se trata de informações que não são reprovadas universalmente e apontam apenas opiniões divergentes.
Nesse caso, da minha perspectiva norte-americana, fazemos uma defesa muito forte da liberdade de expressão, originalmente criada para proteger o livre discurso político, mas que ganhou uma visão mais abrangente e inclui qualquer tipo de discurso.
Costumo lembrar, entretanto, que o direito à expressão não garante que ninguém deva ouvi-lo. Não posso dizer o quanto eu me importo com fazer com que o pensamento crítico se torne parte da formação das crianças para que tenhamos adultos capazes de distinguir uma informação de qualidade da informação inútil.
Isso não apenas na internet, mas em todas as fontes de informação, sejam revistas, jornais, televisão, cinema, rádio, além de nossos parentes e amigos. Acho que impor controle governamental ao conteúdo das páginas na rede seria tecnicamente muito difícil, além de moralmente condenável.

Folha - Com o crescimento da internet, pode-se dizer que estamos nos tornando cada vez mais frágeis?
Cerf -
Tenho esse cenário de pesadelo, num futuro frágil, de um sistema cada vez mais complexo com milhões de softwares, interagindo uns com os outros, sempre de formas inovadoras. Posso dizer que os cientistas que estão pesquisando os sistemas de computadores em todo o mundo, as pesquisas acadêmicas, precisam se dedicar muito mais de que têm trabalhado recentemente para construir sistemas mais confiáveis e resistentes, menos frágeis à invasão e à fraude.
Apesar de todos os ataques, nesses quase 30 anos da internet, ainda não houve nenhum problema de segurança que afetasse de forma grave a sociedade, mas isso não deve evitar que se trabalhe duro para criar sistemas mais seguros. Essa deveria ser nossa meta para este novo século.

Folha - Além da censura, a privacidade e o anonimato na internet também podem ser um problema?
Cerf -
Anonimato é muitas vezes uma ferramenta importante, mas, em outras vezes, apenas algo que facilita o uso abusivo da rede. A divulgação anônima de informações na rede é muito difícil de controlar, e a melhor forma de combatê-la é colocar sua própria informação na rede, para ir contra o que quer que esteja sendo dito. A solução para combater a má informação é ter cada vez mais informações on-line.
Por outro lado, o anonimato pode ser muito importante, pois encoraja pessoas a apontarem abusos e problemas, especialmente quando se trata de questões ligadas ao governo.

Folha - O que o sr. acha da internet como invenção?
Cerf -
É muito empolgante. O que mais me impressiona é que esse trabalho foi reaproveitado por outras pessoas que também se empolgaram rapidamente com a idéia de conectar computadores de todo o mundo, de compartilhar informação da forma como fazemos hoje, de ser uma plataforma para todos os tipos de comunicação digital, não só mensagens de texto e páginas na internet mas também voz e vídeo.
É um ambiente riquíssimo, e provavelmente 99% das aplicações que serão usadas na rede no futuro ainda nem foram inventadas. Estamos ainda nos estágios iniciais da compreensão sobre o que podemos fazer com esse tipo de recurso.

Folha - Nos anos 70, quando a tecnologia foi inventada, o sr. imaginava tais desdobramentos?
Cerf -
(Rindo) Eu gostaria de poder dizer que "claro que sim, e tudo que você vê hoje eu já tinha em mente", mas estaria mentindo. Acho que nosso entendimento coletivo do poder da web apareceu enquanto ele crescia, enquanto se tornava capaz de assumir novas funções, aumentar a velocidade. Quando começamos, fazíamos conexões a 50 mil bits por segundo, hoje não é incomum ver conexões de 10 bilhões de bits por segundo e já houve demonstrações de conexões de 40 bilhões de bits por segundo.
Dá para ver que as coisas mudaram em vários sentidos. Similarmente, quando o sistema começou a operar, em 1º de janeiro de 1983, havia 400 computadores conectados. Hoje acho que podemos encontrar cerca de 1 bilhão de usuários. No intervalo de 20 anos, o sistema cresceu numa proporção inimaginável.

Folha - Nesses diferentes desenvolvimentos da tecnologia, o que mais o surpreendeu?
Cerf -
Com o tempo, ainda virão muitos outros dispositivos de uso dessa tecnologia. Hoje em dia, uma das tecnologias que têm se desenvolvido mais é a de telefonia móvel. O sistema de telefonia mais de que duplicou nos últimos cinco ou seis anos por causa da telefonia sem fio e por celular, e todos esse telefones, com o tempo, vão estar ligados também por meio de conexões de internet. Então veremos um aumento exponencial no número de pessoas que têm acesso à internet.

Folha - E o que o desapontou?
Cerf -
Muitas coisas, de fato. Uma delas é quase inescapável. Quando se entra na www (World Wide Web), se encontra uma quantidade enorme de informações -que não poderiam ser encontradas sem que companhias como o Google ajudassem- e se descobre que há muita informação ruim na rede, seja material sem valor ou mesmo divulgação de informações que representam mal o tema em questão, o que pode confundir ainda mais quem está navegando.
De qualquer forma, isso é um resultado paralelo ao fato de a população em geral ter acesso à rede e ter a possibilidade de divulgar o que quiser por meio dela. Não sei, portanto, se se trata de um desapontamento com a internet ou de uma decepção com a sociedade global e sua pouca habilidade em compreender e divulgar as coisas.
Começamos a ver fraudes e outras formas de abuso como o spam, e-mail comercial não-solicitado, coisas desse tipo. E essas coisas me parecem quase um aspecto inescapável do desenvolvimento da civilização moderna. Acho que teria que dizer que fraudes já existiam 10 mil anos atrás, em sociedades mais primitivas, não são um fenômeno novo, embora tenham se tornado globais com a internet.

Folha - Qual é a principal questão relacionada à segurança na internet?
Cerf -
Acho que o maior problema hoje é a fraqueza dos sistemas operacionais de segurança em uso na rede -com base no Windows, Linux, Macintosh ou qualquer outro. Todos têm muitas falhas que podem ser exploradas e não apenas por especialistas. Há ferramentas que facilitam o acesso a essas falhas mesmo a pessoas que não entendem tanto do sistema operacional dos computadores na rede.
Temos também problemas de autenticação. É difícil identificar as partes numa transação comercial. São necessárias melhores ferramentas de autenticação para evitar esse tipo de abuso.
O spam é hoje um fenômeno econômico. Como o envio de mensagens eletrônicas é gratuito, as pessoas podem enviar quantidades imensas de anúncios por meio de spam, e, se apenas uma parcela ínfima responder, já vale o trabalho e cobre o custo. Não tenho uma solução simples para esse problema, apesar de achar que identificar as fontes das mensagens ajudaria.

Folha - Dificulta o fato de não haver uma regulamentação internacional para um fenômeno tão global?
Cerf -
É um ponto importante. Precisamos de um padrão internacional de legislação que ajude na aplicação da lei em base internacional. Temos a Interpol, mas, além desses corpos internacionais de coordenação e aplicação da lei, também é preciso haver alguma compatibilidade de lei em países diferentes. O spam é um problema internacional.
Por exemplo, se todos os países tomassem uma posição semelhante, proibindo-o, as pessoas que enviassem mensagens por spam de um país para outro poderiam ser processadas. O mesmo poderia ser válido para outros tipos de atividades ilegais pela internet.

Folha - O sr. acredita que esse tipo de regulamentação seja possível?
Cerf -
Acho que não. É mais provável que vejamos acordos multilaterais ou bilaterais de que um padrão mundial de regras como o que mencionei. Aponto, entretanto, que temos uma necessidade igualmente importante de padronizar internacionalmente o comércio eletrônico; isto é, o que é um contrato legal, como assiná-lo digitalmente, como resolver disputas internacionais de negociações feitas pela internet.
Precisamos de acordos internacionais indo além da busca por criminosos, o que acho difícil de criar em uma rede global tão abrangente.


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