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A vida como reality show
DOCUMENTÁRIO "33", QUE ESTRÉIA EM SÃO PAULO NO DIA 12 DE MARÇO, DESCREVE
A BUSCA DE SEU DIRETOR, KIKO GOIFMAN, POR SUA MÃE BIOLÓGICA
Vladimir Safatle
especial para a Folha
A história é relativamente simples. Um documentarista, filho adotivo, resolve filmar sua
procura pela mãe biológica desconhecida.
Tal procura deverá durar um período determinado: 33 dias. Número que guarda relações com
sua idade e com a data de nascimento de sua mãe
adotiva (1933). Durante esse espaço de tempo, serão
feitas pesquisas em arquivos de hospital e entrevistas
com personagens envolvidos no enredo, como a
mãe adotiva, a empregada da infância e o médico
que intermediou a adoção. Detetives particulares
que anunciam seus serviços em classificados de jornais também serão consultados a fim de fornecerem
algumas "sugestões". Uma boa assessoria de imprensa divulgará o projeto na mídia durante sua execução, permitindo, com isso, que pistas sejam levantadas por meio da participação do público. Um diário será escrito na internet contando as experiências
cotidianas da procura.
Essa é a estrutura geral de "33": documentário de
Kiko Goifman que estréia no dia 12 de março em cinemas de São Paulo. O documentário, com sua forma e estrutura particulares, não deixa de levantar algumas questões relevantes a respeito das configurações contemporâneas dos processos de autodeterminação. Pois o ato de filmar a própria procura pela mãe biológica não participa apenas desse movimento geral de hiperexposição espetacular da intimidade tão característico de uma certa lógica da arte contemporânea, presente em trabalhos distintos como
"Untitled Still Movies", de Cindy Sherman, "Made in
Heaven", de Jeff Koons, e os milhares de diários íntimos
fotográficos que invadem as galerias de arte.
Filmar a própria procura pela mãe biológica é também uma maneira de tentar inscrever simbolicamente
algo de si mesmo que ficou para trás, uma história apagada na origem. Tentativa de inscrição que indica estratégias de autodeterminação por meio da abertura de
uma nova constelação familiar com todo o peso de reconfiguração simbólica e de encontro traumático que
tal abertura implica. Daí porque o documentarista fale
de uma "autoviolência" própria ao projeto de seu filme.
Mas, se o documentário tem um interesse, ele não está
nessa temática relativamente trivial da procura de si
com seus fantasmas de origem. Sua peculiaridade vem
das estruturas narrativas que ele mobiliza. Ao contrário
do que poderíamos esperar, apesar das entrevistas com
familiares e de certos momentos de "descrição" de estados psicológicos do documentarista-narrador, o filme
não tem nada de intimista ou de pessoal. Sua decisão de
utilizar formas gastas da linguagem cinematográfica
impede esse tom.
O documentário se serve basicamente de clichês da
estética "noir" e de romances policiais do gênero Raymond Chandler e Dashiell Hammett. Narrador em
"off", cenas em preto e branco, a procura da identidade
como inquérito policial, tomadas da metrópole em sua
fria indiferença, sombras, detetives não muito inteligentes, diálogos estereotipados, o fantasma da mãe como mulher rica, bela e infeliz. Todas estas ruínas da linguagem cinematográfica estão presentes. Para não deixar dúvidas, em um momento final o próprio documentarista não teme se comparar a um personagem de
romance policial.
Gramática do espetáculo
Que a história da procura de si tenha que ser contada por meio de uma linguagem em ruínas fornecida pelos setores mais inertes
da cultura de massa, como são os romances e filmes policiais: eis uma característica do documentário que merece reflexão. Ela nos lembra como a questão da produção da identidade e dos processos de autodeterminação
na contemporaneidade passa pela compreensão de que
as estruturas narrativas disponíveis ao eu são feitas, em
sua grande parte, de materiais gastos e fetichizados. O
eu só consegue adquirir consistência ao se configurar
como persona em uma história montada com materiais
advindos do universo da cultura de massa.
Um dos resultados mais interessantes de tal situação é
a possibilidade de a procura de si ser facilmente conjugada na gramática do espetáculo.
Em uma das cenas mais significativas do documentário, o documentarista e sua mãe adotiva assistem a um
programa de entrevistas em que o próprio documentarista está sendo entrevistado a respeito de seu projeto,
em curso, de filmar a procura da mãe biológica.
Em outra, ouvimos um apresentador da TV Globo
narrar, em um programa do tipo "Porta da Esperança",
que o tempo está se esgotando para o documentarista e
que ele acaba de receber um cartão com o nome de alguém que pode fornecer a pista que faltava para a solução do mistério.
Assim, a história, com sua carga de ansiedade subjetiva, entra no espaço público pela porta do espetáculo,
com suas codificações discursivas e suas neutralizações.
Valeria a pena lembrar que, no documentário, tal entrada não impõe estranhamento algum, já que a procura de si foi desde o início organizada como um jogo,
com regras arbitrárias, atualização dos resultados e possibilidades de acompanhamento do público como em
qualquer jogo de auditório.
Mas só uma vida pensada como um "reality show"
pode entrar pela porta do entretenimento sem opor resistência. E é essa vida que, cada vez mais, aparece como
nosso padrão de socialização.
Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso
- Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).
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