São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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Oscilando entre realismo e caricatura, "Vista do Rio", de Rodrigo Lacerda, afirma o autor como um dos mais instigantes talentos da jovem literatura brasileira

A simetria imperfeita

Wander Melo Miranda
especial para a Folha

O novo romance de Rodrigo Lacerda é desconcertante desde a capa: a imagem de um "vírus HIV brotando de um linfócito" confunde-se com o título "Vista do Rio". A relação surpreendente, apresentada de chofre ao leitor, desfaz visões estereotipadas, que comprometem a abordagem ficcional da cidade ou da doença em grande parte de textos recentes da literatura brasileira. Nem alegoria nem representação hiperrealista, a superposição de ambas as perspectivas é responsável pela originalidade da narrativa, que gira em torno do edifício Estrela de Ipanema. O desenho de sua portaria, reproduzido no início do relato, serve-lhe de pórtico e entrada; uma foto do que poderia ser a fachada, na última página do livro, encerra, como uma muralha intransponível, a narração. Representante emblemático do "poder afirmativo" -e desagregador- da vida moderna, a arquitetura do edifício, a de sua entrada principalmente, merece descrições e análises detalhadas do narrador. A distribuição racional e disciplinar do espaço arquitetônico e, por inversão irônica, da arquitetura narrativa pretende ser um "triunfo do otimismo, da técnica, da nova sociedade". Para Marco Aurélio, o narrador, a simetria espacial do Estrela de Ipanema exige, no entanto, um "segundo olhar", a que se segue de imediato um "estranhamento" diante da promessa de felicidade do edifício, simultâneo a uma perspectiva textual diferenciada e, daí, a uma outra e inevitável "vista" do Rio.

"Água podre"
A natureza da visão submete-se ao que o Estrela de Ipanema representa para Marco Aurélio e Virgílio, o amigo que vem a adoecer -"todo o bairro de Ipanema nasceu à luz do prédio onde morávamos. (...) A cidade e o mundo vieram depois". A história de ambos os jovens, matéria do narrado, não se diferencia da história da alta burguesia carioca de que fazem parte seus vizinhos -"Ipanema, em Tupi, quer dizer água podre", diz Virgílio na cama do hospital. O mesmo Virgílio que se distraía antes torturando pequenos animais e, no primeiro capítulo do livro, junto com Marco Aurélio, diverte-se ao triturar um beija-flor vivo num liquidificador, cena que é narrada com um prazer sádico incomum. Ou então que se espanta ao ver o motorista da casa tendo relações sexuais com o próprio filho, Miguel, e depois se torna amante do adolescente violentado. A violência perpassa as relações pessoais e sociais, com uma carga de indiferença e cinismo que a linguagem narrativa expressa à sua maneira, apesar de o narrador tentar juízos e argumentações dos quais ele mesmo não se sente muito seguro. Para quem contar ou como contar, já que a "modernidade viabilizava o fim da comunhão de sentimentos" como sua tarefa primordial para tornar o homem "livre"? O narrador debate-se entre ser "caricaturista" ou "realista suave", segundo suas palavras. Num caso, a deformação hiperbólica, que o episódio do beija-flor sugere; no outro, um certo distanciamento, como exprime a cena do vôo de asa-delta. O fim de Virgílio coincide, no texto, com a decadência do Estrela de Ipanema -""apodreceu tudo lá dentro", explicou o porteiro, com a maior naturalidade". A narrativa reabre-se com uma nova imagem visual, que deixa ver a natureza exuberante de praias e morros, estes últimos comparados ambiguamente pela epígrafe a um "farto seio de pedra". Narra-se, então, o primeiro vôo de asa-delta feito por Virgílio, no verão de 1987. O acesso difícil ao lugar do salto proporciona, em virtude da beleza de cartão-postal da cidade vista de cima, uma compreensão mais próxima do que ela representa.

A doença e a cidade
Nas palavras de Virgílio, em conversa com Marco Aurélio: "Toda a cidade tem buracos negros, onde a violência e a criminalidade barram a entrada da lei. O Rio tem isso, claro, mas é uma das poucas cidades onde também a revolta pacífica é capaz de criar áreas e códigos alternativos. A beleza natural cria nuanças inesperadas na divisão do espaço social". Virgílio, enfim, salta e desliza tranqüilo no ar, como a arrematar de outra maneira a história de sua vida. Marco Aurélio permanece na plataforma de decolagem, acometido pela náusea e pela angústia de se saber à beira de um outro abismo, onde a arte, a vida e a felicidade se confundem, sem um ponto em comum, como as pequenas figuras vistas do alto.
Terminado o livro, o realista suave se encontra com o caricaturista, "fura túneis insuspeitados" e "pula sobre montanhas", como adianta a epígrafe inicial do romance. Novos ângulos, outras superfícies: doença e cidade se abrem como linguagem, como fala de um saber até então insuspeitado.
Dessa forma, após a estréia auspiciosa de "O Mistério do Leão Rampante" (1995) e da experiência bem-sucedida de "A Dinâmica das Larvas" (1996), Rodrigo Lacerda alcança o nível dos realizadores que efetivamente contam e se afirma como um dos mais instigantes talentos da jovem literatura feita no Brasil.


Wander Melo Miranda é professor titular de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e editor-assistente da revista "Margens/ Márgenes".

Vista do Rio
195 págs., R$ 34,80 de Rodrigo Lacerda. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/ 11/3218-1444).



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