São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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+Sociedade

A dor de amar

Respeitada crítica de arte, Catherine Millet fala de "Dia de Sofrimento", livro em que retrata a crise de ciúme por que passou em sua relação aberta com o marido

LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS

No seu livro anterior, "A Vida Sexual de Catherine M.", Catherine Millet quis dar, como ela mesma conta, um testemunho pessoal de que a vida sexual pode ser dissociada dos sentimentos. O livro se transformou num fenômeno literário mundial, traduzido para 45 línguas, vendeu mais de 1,2 milhão de exemplares e transformou sua autora numa celebridade.
Nele, uma mulher de 50 anos conta como se entregava a homens que nunca vira antes, nos locais mais inesperados, como um bosque de Paris, um estacionamento subterrâneo, um cemitério, uma estação de trem e mesmo no escritório da revista "Art Press", fundada e dirigida pela própria Millet, crítica de arte e especialista em Salvador Dalí.
A vida real colocou Millet diante de um problema que consistia em conciliar a vida de mulher totalmente livre com um casamento duradouro. Ela é casada há muitos anos com o escritor e fotógrafo Jacques Henric, autor de "Légendes de Catherine M." [Lendas de Catherine M.], e vivem um casamento totalmente aberto.
Em seu novo livro, "Dia de Sofrimento" (a ser lançado no Brasil em junho, pela ed. Agir), dá uma espécie de resposta aos leitores que se perguntavam se é possível driblar o ciúme quando a vida a dois pressupõe total liberdade de ambas as partes.
Millet responde: o ciúme não pode ser driblado, e ela o viveu como uma obsessão: "Comecei a sofrer terrivelmente, imaginando Jacques em companhia de outras mulheres", conta Millet em entrevista exclusiva à Folha.
"Penso que o ciúme é uma pulsão que pode escapar a todo controle e que pode varrer toda a inteligência, a cultura, a moral que possuímos. Mas não me arrependo. É essa pulsão que se deve dominar para continuar fiel a sua cultura e a sua moral."
Assumir uma sexualidade totalmente livre, resume Millet, "não impede de cair na armadilha assustadora do ciúme e nem vacina contra a dor que o acompanha".

 

FOLHA - "A Vida sexual de Catherine M." transformou-se em um fenômeno de sociedade. Como isso afetou sua vida?
CATHERINE MILLET
- Fora uma sobrecarga de trabalho, minha vida cotidiana não foi praticamente modificada. Durante algumas semanas, tornei-me "Madame Sexo" na França e, se tivesse aceito esse epíteto, teria passado todo meu tempo nos estúdios de TV, participando de programas sobre sexualidade.
Tentei limitar essas participações. Para mim, é muito importante continuar a dirigir a "Art Press". Ganhei um pouco mais de dinheiro, mas também não fiquei milionária.

FOLHA - "A Vida Sexual..." foi criticada por ser "sem sentimento". "Dia de Sofrimento" é seu oposto implacável?
MILLET
- É ao mesmo tempo o anúncio e o prolongamento do outro. Anúncio porque a crise de ciúme narrada em "Dia de Sofrimento" é um dos "acidentes" na minha vida que me levaram a escrever uma coisa diferente de um livro de história da arte -isto é, "A Vida Sexual de Catherine M.". De fato, "Dia de Sofrimento" mistura a narração dessa crise e a aproximação com a escrita, a realização de um desejo de ser escritora. Também é o prolongamento de "A Vida Sexual..." na medida em que a ideia do segundo livro me ocorreu logo após a publicação do primeiro. Muitos leitores e jornalistas me perguntavam -e a Jacques também- sobre o ciúme. Como tínhamos podido viver a liberdade sexual sem ter ciúme? E eu respondia que não tinha escapado a ele. Por honestidade, pensei que deveria me explicar num segundo livro. Quanto à ausência de sentimento em "A Vida Sexual...", isso é o resultado de um "parti pris". Eu não queria nenhuma forma de psicologia no livro, quis deixar tudo focalizado nos atos sexuais.

FOLHA - Um crítico ressaltou um paradoxo em "Dia de Sofrimento": a sra. vigia e espiona seu marido como se fosse uma mulher fiel. Ora, no seu texto pode-se ler: "Jacques me colocava diante do fato de que nunca deixei de fazer sexo grupal e que por longos períodos meu desejo me levara a outros homens".
MILLET
- Um dos objetivos do livro é, creio, expor a que ponto podemos estar em contradição com nossas próprias ideias. A liberdade sexual era a filosofia de vida que eu tinha escolhido. Eu tinha essa liberdade. De vez em quando descobria que Jacques também dispunha dessa liberdade, mas comecei a sofrer terrivelmente imaginando-o em companhia de outras mulheres.

FOLHA - "A Vida Sexual..." foi escrito durante uma crise grave com seu marido. Como a sra. conseguiu trabalhar vivendo um turbilhão de emoções causadas pelo ciúme?
MILLET
- Na realidade, quando comecei a escrever esse livro, tinha me distanciado da minha vida de libertinagem. Como escritora e contrariamente a autores que fazem o que se chama "autoficção", somente posso ter um olhar retrospectivo. Durante essa crise, fui dominada por fantasias em que imaginava Jacques em companhia de outras mulheres. De certa forma, a escrita desse livro foi uma maneira de me recolocar no centro das cenas de sexo.

FOLHA - O livro quer mostrar que uma intelectual libertina não está protegida do mais banal ciúme?
MILLET
- Esta é uma das razões por que sofri tanto: é claro que não podia fazer nenhuma crítica a Jacques; ao contrário, só podia me criticar pela falta de lógica de meu comportamento.

FOLHA - A sra. conta que saiu da periferia de Paris com 18 anos com suas leituras como única bagagem. Que leituras eram essas ?
MILLET
- Tudo um pouco misturado. Muito jovem, eu lia relatos de aventura para crianças, mas também lia os clássicos que encontrava na biblioteca de minha mãe. Uma das primeiras leituras que me impressionaram foi "O Lírio do Vale", de Balzac. Adorava ler Lamartine e também Stendhal. Somente histórias de amores impossíveis! E castos!

FOLHA - A sra. foi feminista? Os movimentos pela liberação da mulher dos anos 70 de alguma forma lhe interessaram?
MILLET
- Como digo em "A Vida Sexual", eu me sentia "do lado dos homens", logo não podia me sentir próxima das feministas. E depois, dispunha de minha liberdade de fato, não tinha de conquistá-la. Por outro lado, hoje me sinto muito próxima do que se chama "neofeminismo" ou "feminismo pró-sexo".

FOLHA - Seu livro fala de suas fantasias masturbatórias incestuosas. Qual é a importância da masturbação na vida sexual?
MILLET
- Acho que muito grande, mas é um assunto que ainda é tabu. Acho que uma mulher aprende a conhecer melhor os caminhos de seu prazer graças à masturbação.

FOLHA - Como a sra. vê a arte contemporânea? Acompanhou os debates em torno da última Bienal de São Paulo, em 2008?
MILLET
- Acho que os que consideram a arte como uma atividade do espírito realizaram uma resistência "do interior", em um mundo da arte governado pelo mercado.
E infelizmente as instituições públicas, que poderiam ser uma alternativa ao mercado, se tornam cúmplices dele.
Não acompanhei muito de perto os acontecimentos em torno da última Bienal de São Paulo, mas me parece que um protesto contra essa situação se fez presente por meio das ações de alguns artistas.


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