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+Sociedade
A dor de amar
Respeitada crítica de arte, Catherine Millet fala de "Dia de Sofrimento", livro em que retrata a crise de ciúme por que passou em sua relação aberta com o marido
LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
No seu livro anterior, "A Vida Sexual de Catherine
M.", Catherine Millet quis dar, como
ela mesma conta, um testemunho pessoal de que a vida sexual pode ser dissociada dos
sentimentos.
O livro se transformou num
fenômeno literário mundial,
traduzido para 45 línguas, vendeu mais de 1,2 milhão de
exemplares e transformou sua
autora numa celebridade.
Nele, uma mulher de 50 anos
conta como se entregava a homens que nunca vira antes, nos
locais mais inesperados, como
um bosque de Paris, um estacionamento subterrâneo, um
cemitério, uma estação de trem
e mesmo no escritório da revista "Art Press", fundada e dirigida pela própria Millet, crítica
de arte e especialista em Salvador Dalí.
A vida real colocou Millet
diante de um problema que
consistia em conciliar a vida de
mulher totalmente livre com
um casamento duradouro.
Ela é casada há muitos anos
com o escritor e fotógrafo Jacques Henric, autor de "Légendes de Catherine M." [Lendas
de Catherine M.], e vivem um
casamento totalmente aberto.
Em seu novo livro, "Dia de
Sofrimento" (a ser lançado no
Brasil em junho, pela ed. Agir),
dá uma espécie de resposta aos
leitores que se perguntavam se
é possível driblar o ciúme
quando a vida a dois pressupõe
total liberdade de ambas as
partes.
Millet responde: o ciúme não
pode ser driblado, e ela o viveu
como uma obsessão: "Comecei
a sofrer terrivelmente, imaginando Jacques em companhia
de outras mulheres", conta Millet em entrevista exclusiva à
Folha.
"Penso que o ciúme é uma
pulsão que pode escapar a todo
controle e que pode varrer toda
a inteligência, a cultura, a moral que possuímos. Mas não me
arrependo. É essa pulsão que se
deve dominar para continuar
fiel a sua cultura e a sua moral."
Assumir uma sexualidade totalmente livre, resume Millet,
"não impede de cair na armadilha assustadora do ciúme e
nem vacina contra a dor que o
acompanha".
FOLHA - "A Vida sexual de Catherine M." transformou-se em um fenômeno de sociedade. Como isso afetou sua vida?
CATHERINE MILLET - Fora uma sobrecarga de trabalho, minha vida cotidiana não foi praticamente modificada.
Durante algumas semanas,
tornei-me "Madame Sexo" na
França e, se tivesse aceito esse
epíteto, teria passado todo meu
tempo nos estúdios de TV, participando de programas sobre
sexualidade.
Tentei limitar essas participações. Para mim, é muito importante continuar a dirigir a
"Art Press". Ganhei um pouco
mais de dinheiro, mas também
não fiquei milionária.
FOLHA - "A Vida Sexual..." foi criticada por ser "sem sentimento".
"Dia de Sofrimento" é seu oposto
implacável?
MILLET - É ao mesmo tempo o
anúncio e o prolongamento do
outro. Anúncio porque a crise
de ciúme narrada em "Dia de
Sofrimento" é um dos "acidentes" na minha vida que me levaram a escrever uma coisa diferente de um livro de história da
arte -isto é, "A Vida Sexual de
Catherine M.".
De fato, "Dia de Sofrimento"
mistura a narração dessa crise e
a aproximação com a escrita, a
realização de um desejo de ser
escritora.
Também é o prolongamento
de "A Vida Sexual..." na medida
em que a ideia do segundo livro
me ocorreu logo após a publicação do primeiro.
Muitos leitores e jornalistas
me perguntavam -e a Jacques
também- sobre o ciúme. Como tínhamos podido viver a liberdade sexual sem ter ciúme?
E eu respondia que não tinha
escapado a ele. Por honestidade, pensei que deveria me explicar num segundo livro.
Quanto à ausência de sentimento em "A Vida Sexual...", isso é o resultado de um "parti
pris". Eu não queria nenhuma
forma de psicologia no livro,
quis deixar tudo focalizado nos
atos sexuais.
FOLHA - Um crítico ressaltou um
paradoxo em "Dia de Sofrimento":
a sra. vigia e espiona seu marido como se fosse uma mulher fiel. Ora, no
seu texto pode-se ler: "Jacques me
colocava diante do fato de que nunca deixei de fazer sexo grupal e que
por longos períodos meu desejo me
levara a outros homens".
MILLET - Um dos objetivos do livro é, creio, expor a que ponto
podemos estar em contradição
com nossas próprias ideias. A
liberdade sexual era a filosofia
de vida que eu tinha escolhido.
Eu tinha essa liberdade.
De vez em quando descobria
que Jacques também dispunha
dessa liberdade, mas comecei a
sofrer terrivelmente imaginando-o em companhia de outras
mulheres.
FOLHA - "A Vida Sexual..." foi escrito durante uma crise grave com seu
marido. Como a sra. conseguiu trabalhar vivendo um turbilhão de
emoções causadas pelo ciúme?
MILLET - Na realidade, quando
comecei a escrever esse livro,
tinha me distanciado da minha
vida de libertinagem. Como escritora e contrariamente a autores que fazem o que se chama
"autoficção", somente posso
ter um olhar retrospectivo.
Durante essa crise, fui dominada por fantasias em que imaginava Jacques em companhia
de outras mulheres.
De certa forma, a escrita desse livro foi uma maneira de me
recolocar no centro das cenas
de sexo.
FOLHA - O livro quer mostrar que
uma intelectual libertina não está
protegida do mais banal ciúme?
MILLET - Esta é uma das razões
por que sofri tanto: é claro que
não podia fazer nenhuma crítica a Jacques; ao contrário, só
podia me criticar pela falta de
lógica de meu comportamento.
FOLHA - A sra. conta que saiu da
periferia de Paris com 18 anos com
suas leituras como única bagagem.
Que leituras eram essas ?
MILLET - Tudo um pouco misturado. Muito jovem, eu lia relatos de aventura para crianças,
mas também lia os clássicos
que encontrava na biblioteca
de minha mãe.
Uma das primeiras leituras
que me impressionaram foi "O
Lírio do Vale", de Balzac. Adorava ler Lamartine e também
Stendhal. Somente histórias de
amores impossíveis! E castos!
FOLHA - A sra. foi feminista? Os
movimentos pela liberação da mulher dos anos 70 de alguma forma
lhe interessaram?
MILLET - Como digo em "A Vida
Sexual", eu me sentia "do lado
dos homens", logo não podia
me sentir próxima das feministas. E depois, dispunha de minha liberdade de fato, não tinha
de conquistá-la.
Por outro lado, hoje me sinto
muito próxima do que se chama "neofeminismo" ou "feminismo pró-sexo".
FOLHA - Seu livro fala de suas fantasias masturbatórias incestuosas.
Qual é a importância da masturbação na vida sexual?
MILLET - Acho que muito grande, mas é um assunto que ainda
é tabu. Acho que uma mulher
aprende a conhecer melhor os
caminhos de seu prazer graças
à masturbação.
FOLHA - Como a sra. vê a arte contemporânea? Acompanhou os debates em torno da última Bienal de
São Paulo, em 2008?
MILLET - Acho que os que consideram a arte como uma atividade do espírito realizaram uma
resistência "do interior", em
um mundo da arte governado
pelo mercado.
E infelizmente as instituições públicas, que poderiam
ser uma alternativa ao mercado, se tornam cúmplices dele.
Não acompanhei muito de
perto os acontecimentos em
torno da última Bienal de São
Paulo, mas me parece que um
protesto contra essa situação se
fez presente por meio das ações
de alguns artistas.
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