São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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Clichês de luxo

O crítico de arte e curador do Masp Teixeira Coelho discute o estatuto da cultura na sociedade atual

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Com fluência intempestiva e luminosa, os cinco ensaios de "A Cultura e Seu Contrário", do crítico Teixeira Coelho, dedicam-se a desarmar alguns dos mais arraigados clichês do discurso politicamente correto, quando se aplicam ao universo da cultura. Por exemplo, o de que a cultura tem um "papel positivo" a desempenhar na sociedade. "Espera-se", diz o autor, "que a cultura mantenha o tecido social (...), a cultura combateria a violência no interior da sociedade e promoveria o desenvolvimento econômico".
Contra esse processo de "domesticação da cultura", Teixeira Coelho insiste em lembrar que a cultura só faz sentido se for expressão da negatividade, do que traz mudança e -até mesmo- destruição.
Impondo a seus raciocínios uma sintaxe quase sem fôlego (que redundou em grande efeito estético em seu livro "História Natural da Ditadura", Iluminuras, 2006), Teixeira Coelho chega a interpretar de modo favorável uma das frases mais escandalosas do século 21: a do compositor alemão Karlheinz Stockhausen [1928-2007], que considerou o atentado ao World Trade Center uma obra de arte insuperável.
Não é preciso forçar tanto a nota do radicalismo, entretanto, para reconhecer a pertinência das preocupações do autor. Sua irritação diante dos clichês bem-pensantes, no que diz respeito à política cultural, não exclui uma atitude que, no fundo, é mais sensata e equilibrada do que faz sugerir o passo acelerado, quase furioso, da argumentação.
Tomem-se, por exemplo, suas críticas à ideia de "identidade cultural". Nenhuma identidade, afirma Teixeira Coelho, "é fixa, estável e perene (...). Toda identidade, como toda cultura, foge de si mesma". O autor refere-se, nesse ponto, às ideias do iluminista francês Montesquieu (1689-1755), em seu ensaio sobre o conceito de gosto.

Identidade fixa
"A primeira obrigação de cada um de nós para consigo próprio", explica Teixeira Coelho, "é a ampliação da esfera de presença de seu ser, o que se consegue mudando de lugar (viajando), mudando as fontes de nossas sensações (ver uma catedral que não conhecemos, uma pintura que ainda não visitamos, um autor que ainda não lemos)...". Bem diferente, com certeza, da concepção corrente de cultura nacional, em que o importante é "perseverar no ser", manter uma identidade fixa.
Sem nenhum ufanismo, seria então o caso de reconhecer na famosa instabilidade da cultura brasileira (classicamente qualificada como "fora do lugar" pelo crítico Roberto Schwarz) uma condição ao mesmo tempo "confortável" e "desconfortável" no cenário globalizado.

Cultura flutuante
A cultura brasileira é "flutuante" -cabendo reconhecer o que há nisso de cinismo, de um lado, e de potencial para a mudança, de outro.
Não se considere, entretanto, "cultura" como um conceito autônomo, capaz de ser esmiuçado somente em suas ambiguidades internas. Numa reviravolta até certo ponto surpreendente, o último ensaio de "A Cultura e Seu Contrário" inspira-se numa ideia do cineasta Jean-Luc Godard, para quem "a cultura é a regra, a arte, a exceção".
Todo o potencial negativo do conceito de cultura, que Teixeira Coelho invocava contra os defensores da identidade e da fixidez, passa agora a ser atribuído ao conceito de obra de arte: nesta é que se concentraria, segundo o autor, todo o poder de hostilidade ao mundo, de "ampliação da presença do ser", de ruptura, de fugacidade... O que tornaria, em última análise, possível pensar numa "política cultural", mas não numa "política artística", se se quiser respeitar o projeto próprio a cada obra de arte em particular.
"A Cultura e Seu Contrário" não desenvolve muito as consequências práticas, em termos de política pública, de suas formulações. As questões mais específicas da política cultural, no âmbito estratégico dos centros urbanos, são objeto de outro volume da coleção "Observatório Itaú Cultural".

Cidade-espetáculo,/b>
Organizado pelo mesmo Teixeira Coelho, "A Cultura pela Cidade" reúne relatos de especialistas a respeito de experiências administrativas em Bilbao, Ibiza, São Paulo e Cidade do México, além de ensaios mais abrangentes, como o do argentino Néstor García Canclini sobre as "cidades-espetáculo" na cultura global.
Certo "culturalês" bastante repetitivo reduz o público deste livro aos especialistas em "gestão" e "governança" -embora não deixe de ser curioso notar, até pela distância entre pensamento e prática, a opinião de um especialista britânico sobre a realidade cultural paulistana.
O Mube (Museu Brasileiro da Escultura, em SP) seria, nas palavras de Richard Williams, "um espaço público extremamente bem-sucedido". Quem conhece as vicissitudes do local haverá de sorrir diante de tal otimismo, que felizmente Teixeira Coelho, ao menos nas páginas de "A Cultura e Seu Contrário", parece longe de compartilhar.


A CULTURA E SEU CONTRÁRIO
Autor: Teixeira Coelho
Editora: Iluminuras (tel. 0/xx/11/3031-6161)
Quanto: R$ 38 (160 págs.)

A CULTURA PELA CIDADE
Autor: Teixeira Coelho (org.)
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 38 (192 págs.)



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