São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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Terminados os trabalhos, despedimo-nos das pessoas. Era o cair da tarde. A equipe estava reduzida a 20 e poucos integrantes. Entramos nos carros e caminhões e, quando estávamos prontos para partir, algumas pessoas começaram a deixar suas casas e a se aproximarem de nós.
De repente, uma voz à capela começou a cantar uma música em homenagem a Nossa Senhora das Candeias, que protege os romeiros que pegam a estrada. A partir daquele momento, nós éramos os romeiros.
Em pouco tempo, outras pessoas também começaram a cantar e, em breve, dentro de alguns minutos, 700 pessoas, na praça, em volta dos carros, estavam cantando. Saímos todos e, num processo catártico, começamos a chorar. Puseram o Vinícios nos ombros de outras crianças e a confraternização seguiu durante um longo tempo. Talvez tenha sido o mais belo dia de toda filmagem e acho difícil que isto tivesse acontecido em Copacabana (risos).
É provável que exista algum grau de idealização nisto. Talvez tenha feito daquela região um espelho da minha esperança, do meu desejo de que seja assim. Mas depois de um certo momento ficamos cansados de viver em meio à indiferença, à impunidade e desejamos que em algum lugar ou em algumas pessoas continue existindo o desejo de mudança, de resistência a este estado de coisa que nos ofende.
Folha - De fato, a cena dispensa comentários. Para finalizar, o que alguém que "pensa em imagens" sente quando é solicitado a "pensar em palavras"?
Salles -
Outro dia, respondendo a uma pergunta de Pedro Butcher sobre "Gosto de Cereja", Kiarostami citou Cioran: "Se não houvesse a possibilidade do suicídio, já teria me suicidado". Kiarostami e Cioran falam sobre a morte, o desencanto e o sem-sentido, mas falam de tal maneira que o possível tom desesperançado transforma-se em celebração da vida. Quero dizer que o contraste entre aquilo que é dito e a maneira como é dito é o que torna aquele paradoxo interessantíssimo.
Fazemos coisas que, ao serem ditas, e dependendo da maneira como são ditas, podem ganhar um sentido totalmente novo. Comentar o que faço quando filmo é uma experiência próxima da qual acabei de citar. Procuro fazer da dificuldade alento, mas sabendo que muito do que fazemos é da ordem do inexplicável, para citar novamente Kiarostami.
Em certos momentos, você aborda áreas da experiência humana de forma intuitiva, sem saber exatamente como chegou até lá e por que chegou. É possível que aquilo que pensamos tenha a ver com algo que lemos, escutamos ou observamos em outros momentos. Mas isto não faz parte de um raciocínio apriorístico, do contrário o filme não seria o que é e sim a ilustração de uma tese de caráter acadêmico. Falar retrospectivamente de um filme é ordenar o que de início foi apenas uma soma de acasos e necessidades.
Desde o simples texto inicial até a maneira aleatória pela qual o garoto Vinícius de Oliveira foi encontrado, tudo isto faz parte do trabalho da memória que procura reunir a pluralidade que deu forma a um todo não completamente previsível em seu começo e em seu resultado final.
Sobretudo em se tratando de um "filme de estrada", que é uma matéria viva, pronta a renovar-se e a remodelar-se, em função das surpresas que encontramos e da inventividade de todos os que colaboram em sua realização.

Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro; é autor de "Inocência e Vício - Estudos sobre o Homoerotismo" e "A Ética e o Espelho da Cultura".
E-mail jfreirecosta@ax.ibase.org.br



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