|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NOVOS AUTORES
Lúcidas clarividências
Personagens em
situações-limite dão o tom
em "Dalma na Rede" e
"Sutilezas do Grito"
|
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
Ampliou-se desde o início do século o empréstimo de conceitos de
uma determinada expressão artística para definir aspectos de outra.
Nessa linha, a novela "Dalma na
Rede", estréia de Luigi Augusto de
Oliveira, mineiro radicalizado em
São Paulo, é uma clara composição cubista.
O livro todo é a tentativa de um
homem (o narrador) de descrever
um episódio marcante assistido na
adolescência, no qual uma prima
(Dalma) se "diverte" com a irmã
dele numa rede, ambas igualmente em púbere agitação.
Tal narrador está internado para
tratamento psiquiátrico, redigindo na clínica a sua história, e sua
escrita não é outra coisa senão a
expressão de uma mente incapaz
de desfazer os novelos que cria internamente.
Seu objetivo é escrever, como
afirma, de modo "claroevidente",
"o mais claroevidente possível", e
desse duelo com a linguagem nasce uma tensão rara em livro de estréia. O tal episódio (Dalma na rede) ressurge de diversos modos e
ângulos (daí o cubismo), mas não
como mero exercício estilístico e
sim como resultado de um funcionamento mental particular.
Um dos trechos, por exemplo,
afirma:
"... Pois ao em minha perturbada
memória recompor o quadro recomponho a cada vez um pouco
mais precária sua nitidez, de modo que já não sei se é a forma das
lisas costas de Dalma ou a forma
de uma de suas coxas que interiormente vejo a espelhar seu rosado
trêmulo sobre quase toda a extensão alaranjado-borrada, que é da
rede, mas que agora compõe o
fundo da cena como se um chão
fosse ou uma parede".
Na fronteira entre a lucidez e a
inconsciência, o autor forja um
linguajar dotado de pulso, em ritmo envolvente, mantendo o leitor
curioso a respeito do desenlace do
tal episódio marcante e ao mesmo
tempo enredado, como se ele mesmo se sentisse convidado a definir
melhor aquela cena - a qual, afinal, jamais se desvendará integralmente.
O livro foi premiado na categoria "novela" do Primeiro Festival
Universitário, organizado no ano
passado pela Xerox e pela revista
"Livro Aberto". Tem a ousadia de
arriscar-se no trato de linguagem,
com personagens expostos em situações-limite.
Em outro compasso, mas igualmente ancorada em tipos encaixados em situações-limite, está a coletânea de contos "Sutilezas do
Grito", segundo livro em prosa da
carioca Carmen Moreno.
Aqui está mais claro, porém, o
viés poético do estilo, a variedade
de focos narrativos, a composição
eclética de tipos -do adolescente
levado pela primeira vez a um
prostíbulo a uma mulher que troca o marido por outra mulher,
passando pela experiência de alguém que recebeu um resultado
positivo de exame de Aids e depois
soube que o laboratório trocara o
seu lado pelo de outra pessoa.
Carmen Moreno é, visivelmente,
apaixonado pelo trato da linguagem. Um pequeno trecho do conto "Ladrão de Palavras" é explícito
a esse respeito: "O medo: só a caneta me salva do seu pulsar insano. Só a escrita esquiva-se, sábia,
de sua supremacia bélica".
Comete, porém, um sutil deslize, que vale registrar. É o de transportar essa paixão para a sua relação, enquanto autora, com seus
próprios personagens. Parece que
se deslumbra com eles, o que a leva a construí-los, por vezes, sem a
crueldade que no entanto lhes é
subjacente.
Não parece bom deixar transparecer para o leitor, ainda mais
quando o foco é em terceira pessoa, o quanto gosta deste ou daquele personagem. Melhor, muitas vezes, é distanciar-se. Caso
contrário, o risco é ensombrecer o
personagem e iluminar, mesmo
sem intenção, as emoções do autor.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|