São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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Sobre pesquisadores e andorinhas

Estudiosos da área de humanas devem ir à luta e provar a consistência de suas disciplinas em comparação com as outras ciências

RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

Se o Senhor se candidatasse hoje a uma bolsa de pesquisa, com certeza não a conseguiria: publicou apenas um trabalho -que não é em inglês, não apareceu em revista indexada nem foi avaliado por pares; o texto fala de experimentos com seres humanos não submetidos a nenhum comitê de ética (entre outros, extrair costelas sem o consentimento informado do paciente); irritado ao verificar que seus sujeitos não se comportavam como previra, afogou todos sem a menor cerimônia...
Eis o que me veio à mente ao ler, no Mais! de 15/4, o artigo de Marcelo Leite "O Fim da Era Einstein".
Diz o jornalista, em síntese, que dos anos 1950 para cá mudou drasticamente o modo de produzir ciência: no lugar do intelectual trabalhando isoladamente, surgiram os "grupos de pesquisa", o que se traduz no fato de a maioria dos artigos ser assinada por vários autores.
Nas ciências experimentais, essa é a regra; nas sociais, o trabalho de autor único, que antes predominava, hoje responde por apenas metade da produção.
Artigos coletivos tendem a ser mais citados por outros pesquisadores que os de autoria individual, o que sugeriria que seu interesse para o campo é maior.
Conclusão: "Já não se fazem mais einsteins como antigamente" -ou seja, o pesquisador isolado está em via de entrar para o museu.

Nem tudo que reluz é ouro
Que pensar desses dados? Em primeiro lugar, que supõem uma unidade de método entre as várias ciências que simplesmente não existe. Método aqui alude tanto aos procedimentos de seleção e coleta dos elementos de uma pesquisa quanto ao modo de os analisar.
Ora, os vários tipos de ciência não operam com os mesmos métodos, pela boa e simples razão de que seus objetos diferem profundamente uns dos outros.
É impossível trabalhar experimentalmente com idealidades matemáticas, com populações na casa dos milhões ou com um documento medieval -e nem por isso a geometria, a sociologia ou a história deixam de ser disciplinas rigorosas.
Entre as diferenças pertinentes nesse plano, quero deter-me em uma cujas conseqüências tanto epistemológicas quanto acadêmicas são de vulto: nas ciências naturais, a singularidade da amostra não tem importância nenhuma -a taxa de colesterol ou o fator RH são idênticos em todas as gotas de sangue de um indivíduo- enquanto nas humanas tal singularidade é precisamente aquilo que define o objeto.
Como então chegar a conclusões de caráter geral? É que no objeto das ciências humanas convivem, inextricavelmente conjugados, traços únicos e traços comuns ao gênero. Dissecá-lo em sua individualidade traz conhecimento sobre ele, é claro, mas também sobre a categoria ou categorias a que pertence.
O "Homem dos Ratos" é esse indivíduo, e o estudo de Freud utiliza fatos de sua biografia para esclarecer por que sua obsessão se refere a ratos, e não a aranhas.
Mas o que se aprende investigando o inconsciente de Ernst Lanzer concerne também à neurose obsessiva (nível do gênero).
Mais ainda: um fato psíquico como a onipotência do pensamento, colocado em evidência por esse estudo, se encontra presente em muitas outras situações, inclusive coletivas (superstição, magia).
Devido a tais características, esse tipo de objeto é perfeitamente abordável por um único pesquisador, que pode passar anos estudando-o a fundo e publicar seus achados numa obra individual.
Numerosos estudos que marcaram época em ciências humanas tinham como base um domínio muito estreito de fatos -mas a forma com que seus autores os trabalharam e as teorias que formularam a partir deles determinaram conseqüências de grande alcance.
Outro fator a ser lembrado é que, se em qualquer disciplina descobertas pontuais podem ser realizadas por pesquisadores trabalhando em conjunto, a história das ciências mostra que as idéias seminais e as grandes sínteses costumam surgir na cabeça de uma única pessoa.
Os motivos disso têm a ver com a psicologia da descoberta e da invenção, o que extrapola os limites deste artigo.
A verdade é que o impacto de um trabalho nada -repito, nada- tem a ver com o fato de ter sido gestado por um ou por vários pesquisadores: é função do seu conteúdo e das condições do campo (por exemplo, se confirma ou contradiz as teorias aceitas no momento).
Aliás, o pesquisador "isolado" trabalha mesmo isolado? Certamente não: gerar conhecimento é um empreendimento coletivo, e mesmo quem não faz parte de grupo algum está sempre dialogando com seus pares e pensando a partir do que produzem.
Por outro lado, é fato que os avanços decisivos no saber tendem a ser fruto dos labores de gente que passou anos debatendo-se com um conjunto de problemas e meditando sobre os modos de o resolver -os "einsteins" de Marcelo Leite.

Artigos x livros
Os exemplos não faltam: "Curso de Lingüística Geral" (Saussure), "As Estruturas Elementares do Parentesco" (Lévy-Strauss), "O Capital", "Casa Grande e Senzala", "A Psicanálise da Criança" (Melanie Klein) e dúzias de outros nas mais variadas esferas das humanidades.
A relação acima sugere que, em ciências humanas, as obras marcantes são freqüentemente livros que sintetizam anos de trabalho paciente.
Por que então essa adoração fetichista pelo "artigo em revista indexada"? A avaliação dos pares é decerto importante -mas não precisa ser realizada antes da divulgação de um texto.
O fato de um trabalho vir à luz neste ou naquele formato nada tira do seu valor -nem o aumenta. Ele será avaliado pelos pares quando estes o citarem, quando o comentarem em resenhas, quando o adotarem em seus cursos, quando debaterem com o autor nos periódicos científicos ou em congressos e de mil outras formas. O que não presta acaba sendo relegado ao que Marx chamava, sarcasticamente, "a crítica roedora das ratazanas"; a seleção natural dos bons trabalhos culmina com sua transformação em clássicos, referência obrigatória na área.
Os cientistas experimentais se espantam com o fato de um doutorado na área das humanidades levar quatro ou cinco anos para ser escrito.
Isso, porém, nada tem de extraordinário. O essencial da pesquisa em ciências naturais não se dá no texto, mas no laboratório, e portanto ele pode ser sucinto sem prejudicar a compreensão.
Já nas ciências humanas temos que construir o objeto diante dos olhos do leitor: recortar o problema, montá-lo com cuidado, dar conta de leituras anteriores etc. O contexto no qual a questão faz sentido precisa ser apresentado com algum detalhe, para que possa ser avaliada a pertinência da leitura proposta.
Tudo isso exige um processo de reflexão mais lento e mais tortuoso do que no artigo-padrão de ciências naturais -e é por isso que as teses têm várias centenas de páginas e levam anos para ser elaboradas.
Uma última observação. É freqüente ouvirmos pesquisadores em ciências humanas se queixarem de que os colegas das "hard sciences" não consideram as áreas humanísticas como "científicas", o que acarreta conseqüências dramáticas no momento de atribuir verbas e bolsas.
Mas o que nós fazemos para modificar tal situação?
Se me é permitida uma sugestão, deveríamos deixar de lado essa atitude lamentosa e ir à luta: debater no terreno epistemológico, demonstrar de forma inequívoca que nossas disciplinas têm consistência, independentemente de os trabalhos saírem em forma de artigo, de capítulo ou de tratado ou do número de autores que os assinam.
Somente com firmeza no combate ao monismo epistemológico poderemos provar que, se uma andorinha só não faz verão, um bando delas tampouco faz a chuva e o bom tempo.

RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais!.


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