São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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No final era o caos

Em edição esmerada, 2ª parte de "Fausto", de Goethe, retrata inovações tecnológicas e astúcias da corrupção

KATHRIN ROSENFIELD
ESPECIAL PARA A FOLHA

A editora 34 coloca nas mãos dos leitores brasileiros de Goethe [1749-1832] um monumento literário. A segunda parte de "Fausto", lançada agora em edição bilíngüe, constitui um livro de mais de mil páginas, ilustrado com a famosa série de 145 ilustrações que Max Beckmann [1884-1950] desenhou para a obra entre 1943-4.
A introdução, as notas e correções de Marcus Vinícius Mazzari valorizam a versão original da tradutora Jenny Klabin Segall, honrando o seu esforço de recuperar a graça e o sentido das numerosas cenas e figuras dessa tragédia.
Com acertos surpreendentes a tradutora reconstituiu em português boa parte dos múltiplos metros, rimas e ritmos que intensificam o humor jovial-e-sério do original.
Mais de meio século depois da edição da primeira parte (1943) e depois da edição das duas partes em 1970, a reedição da versão de Jenny Klabin Segall é mais do que "respeitável e meritória".
Ela é um documento da riqueza e da profundidade do original -apesar das imensas dificuldades de tradução.
Os comentários de Mazzari apresentam uma série de chaves de leitura que ressaltam a polissemia grandiosa dessa tragédia híbrida.
Os resumos que antecedem cada cena facilitam o acesso à genialidade com a qual Goethe funde os imaginários moderno, medieval e clássico, cristão, pagão e "libertino".
Dirigem o olhar para a generosa visão goethiana da vida, do vazio e da sabedoria, do humor e do sofrimento que brotam das grandes aspirações ideais.
O pequeno mundo dos quartos de Fausto e Margarida (da primeira parte) abre-se, no segundo "Fausto", para o império no qual Mefistófeles semeia o caos econômico. Na alegria de uma riqueza corrupta que desemboca no "vulcanismo" da guerra civil, ele faz progredir seu discípulo.
Com ardis "diabólicos", truques e jeitinhos, o "demônio" de múltiplas faces (bobo da corte, Forquias) satisfaz o desejo de beleza, fazendo surgir, no lugar da ingênua Margarida, a clássica Helena e tornando reais as aspirações de Fausto pelo saber e o poder.
Põe em suas mãos inovações tecnológicas, novas estratégias bélicas e astúcias da corrupção que asseguram a vitória do imperador e viabilizam ações grandiosas (empreendimentos coloniais) por parte de Fausto.
Além de muitas alusões saborosas às conquistas -verdadeiras ou falsas- da humanidade e a orgulhos científicos, tecnológicos e financeiros que correspondem a ideais contemporâneos, Goethe (e sua tradutora) mostram imensa verve no humor acre-doce da transfiguração poética da realidade prosaica.
Evoquemos apenas um exemplo no último ato. Fausto, já centenário e cego, acredita ainda comandar grandes obras de drenagem, numa alusão aos sonhos do colonialismo.
Mas os "operários" que ele imagina comandar são os lêmures que cavam a cova do herói, cumprindo a tarefa ordenada pelo cínico Mefistófeles.

Guinada goethiana
No seu derradeiro afã, Fausto confunde ironicamente o vazio da cova com os canais e os diques que significam para ele (e para o leitor) a conquista de novos territórios. Na última cena, porém, a ironia amarga se inverte numa guinada bem goethiana, e a alma do ludibriado pactário, já nas garras dos demônios, é sugada para cima, em direção ao eterno feminino que a guarda e lhe dedica seus cuidados nas esferas celestiais. É inigualável a mistura de lucidez e de simpatia com que Goethe mostra a fronteira imponderável que separa verdade e engodo, erro e acerto.
Goethe teve boas razões para negar até a morte a publicação do "Fausto". Não somente por cautela para com o príncipe de Weimar, cujos traços estão presentes no imperador.
Idealização
Desde "As Afinidades Eletivas" [editora Nova Alexandria], romance no qual o poeta espelhou alguns dos seus segredos mais pessoais, conhecia a mistura de hipocrisia e de idealização moral do público intolerante com as liberdades estéticas da sua imaginação.
O crítico Wolfgang Menzel, por exemplo, fustigará o eterno feminino, considerando-o pura lascívia efeminada.
Para católicos, luteranos e livres-pensadores era pouco palatável a imagem da Virgem como rainha em meio a uma "corte e aos pajens, [assistida por] uma jovem dama da corte que intercede por Fausto". "Onde [pergunta irado o crítico Menzel] está Deus? Será que não há mais homem nenhum no céu?"
As gravuras de Max Beckmann captam bem a irreverente atmosfera goethiana. Em uma delas, vemos a Virgem voando com o menino Jesus nos braços -imagem que lembra os amantes de Chagall-, sendo adorada por inúmeros anjos que são vistos, como nos afrescos barrocos, em perspectivas que ressaltam insinuantes nádegas redondas, cabelos esvoaçantes e deleites (meta)físicos.
A grandeza, a graça e o charme de Fausto estão precisamente na híbrida associação de imagens pagãs e cristãs, de idéias livres (para não dizer "libertinas") e modernas derivadas da contemplação generosa da espiritualidade sensual da Grécia Antiga, da fluida associação dessas imagens, com as poderosas representações bíblicas fornecendo o lastro atemporal para observações contemporâneas.
Entre os muitos méritos desta edição está a valorização dessa dimensão aberta, rica e polissêmica da obra goethiana.

Peso do livro
Com rápidas pinceladas, Mazzari rastreia as grandes tendências exegéticas, contrapondo a visão aberta do autor (que salientava sempre a sugestão poética, os elos inconclusos e os "non sequiturs" da vida e da poesia) contra as leituras-dogmas que vêem a trajetória de Fausto como um programa ideológico -por exemplo, como a progressiva perfeição do herói levado pela sua aspiração a uma transcendência de si e do mundo limitado.
Se tivesse alguma crítica a fazer, ela recairia talvez sobre o peso do livro, que poderia ter sido dividido em dois volumes.

KATHRIN ROSENFIELD é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Desenveredando Rosa" (Topbooks) e "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. LPM).


Fausto - Segunda Parte da Tragédia
Autor:
Johann Wolfgang von Goethe
Tradução: Jenny Klabin Segall
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/3816-6777)
Quanto: R$ 96 (1.088 págs.)



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