São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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+ Música

O 5º elemento

Produtor que descobriu os Beatles,George Martin, 81, fala do espetáculo que compôs para o Cirque du Soleil e diz que a separação do grupo, em 1970, foi "um alívio"

ROB BLACKHURST

Um prédio que abrigava uma igreja, em Hampstead, em Londres, foi convertido por sir George Martin em estúdio de gravação, conhecido como AIR Lyndhurst, mas o espírito do rock não parece predominar no local.
Do lado de dentro do sombrio edifício da era vitoriana há cestas decorativas e uma placa comemorando uma visita pelo príncipe de Gales.
Os músicos de rock que suspenderam as gravações para almoçar não estão bebendo uísque e fumando em uma sala suja.
Acomodam-se em bancos de igreja, em um refeitório brilhantemente iluminado, e comem salada acompanhada por um vinho shiraz, ao som de um discreto CD de Louis Armstrong.
O ambiente é claramente fiel ao espírito de sir George, famoso pela civilidade. Fotos dos Beatles em sessões de gravação nos anos 1960 sempre mostram o produtor bem vestido, com o cabelo repartido por uma risca precisa e arranjado com brilhantina, não importava quais fossem os trajes psicodélicos que os "meninos", como ele ainda os chama, estivessem usando.
Ele me recebe em um elegante estúdio de mixagem, no piso superior, e se torna claro que o quinto Beatle, aos 81 anos, decidiu substituir a elegância pelo conforto, no vestir.
Veste-se como um aposentado -com calças cinzentas bem acima da cintura e uma camisa azul bem simples, ainda que um paletó de tweed esteja visível, pendurado em uma cadeira.
Mais de 50 anos trabalhando na indústria da música tiveram efeito sobre a audição de sir George, e por isso ele se acomoda ao meu lado no sofá para ouvir melhor as perguntas.
"Continuo com o juízo perfeito, mas minha audição não presta mais. Está cada vez pior." Há sombras do menino que cresceu em Islington [subúrbio no norte de Londres], filho de um marceneiro, perceptíveis na bela modulação de sua voz e pronúncia.
Até o Natal passado, Martin trabalhou três anos ininterruptos em um último projeto para a mais famosa das bandas que produziu. Com a ajuda do filho Giles, também produtor, ele ajudou a desenvolver "Love", o espetáculo do Cirque du Soleil vagamente baseado em letras de canções dos Beatles, que estreou em novembro passado, em Las Vegas.
Juntos, pai e filho vasculharam os arquivos do estúdio de Abbey Road para criar a trilha sonora do espetáculo, formada por trechos remixados de gravações dos Beatles.

Curador do legado dos Beatles
Mas, ainda que ele tenha anunciado mais aposentadorias do que a banda Status Quo, desta vez ele parece decidido.
"Esse tem de ser o meu último disco", ele diz. "Tenho sorte de estar vivo; é melhor encarar os fatos." E, ainda que goste de Coldplay e Radiohead, sir George parece mais interessado em seu jardim e em seus quatro filhos (e na crescente safra de netos) do que nas paradas de sucesso.
Desde que os Beatles se separaram, há 37 anos, Martin vem levando uma vida confortável e sem riscos.
Produziu discos para Jeff Beck, America e Paul McCartney, compôs trilhas sonoras para filmes como "Com 007 Viva e Deixe Morrer" (1973) e trabalha como uma espécie de curador do legado dos Beatles, o que inclui supervisionar as coleções de gravações não-aproveitadas que foram lançadas com o título "Anthology", nos anos 1990.
Ele também é visto como uma espécie de mestre-de-cerimônias extra-oficial da indústria da música britânica e puxou o coro de vivas na celebração musical do jubileu da rainha Elizabeth 2ª, cinco anos atrás.
Cansado da mesquinharia que a gravadora EMI praticava com seus produtores assalariados, Martin foi um dos primeiros produtores a trabalhar como free-lancer e, a partir dos anos 1960, passou a trabalhar para os Beatles nessa modalidade (em 1963, seus chefes lhe haviam concedido uma bonificação equivalente a quatro dias de salário, ainda que discos produzidos por ele tivessem liderado as paradas britânicas por 37 semanas do ano).
A empresa que ele criou, Associated Independent Recording (AIR), construiu uma série de estúdios, entre os quais um instalado na pequena ilha caribenha de Montserrat, em 1979.
Essa unidade se tornou um dos mais prolíficos estúdios de gravação dos anos 1980, abrigando projetos de Stevie Wonder, Elton John e dos Rolling Stones.
Mas o edifício foi destruído em uma erupção vulcânica em 1995, e desde então Martin vem se dedicando a arrecadar dinheiro para os 8.000 moradores da ilha que perderam suas casas e empregos devido à tragédia.
Em maio, depois de 12 anos e US$ 3 milhões [R$ 6.115.000], ele estará presente à inauguração do fruto de seu esforço -um centro comunitário no qual a população vai poder "se encontrar, jogar bingo e celebrar bar-mitzvás".
Ao produzir o álbum "Love", o entusiasta da tecnologia que existe nele se divertiu muito explorando as possibilidades da tecnologia digital, pela qual "eu teria dado um braço nos anos 1960". Sons que lhe custavam horas de complicado improviso técnico com os Beatles agora estão disponíveis ao simples apertar de um botão.
Tendo em vista as críticas quase unanimemente positivas ao novo álbum, pergunto se ele não ficou decepcionado pelo fato de o disco ter ocupado brevemente o terceiro posto nas paradas britânicas e depois despencado.
"Fiquei decepcionado. Mas as pessoas não precisam comprá-lo. Podem copiá-lo em qualquer lugar. A indústria da música está enfrentando a extinção, praticamente, com o download que existe agora. A tecnologia, que sempre foi nossa maior amiga, subitamente se tornou inimiga. Criou um mundo de pessoas que acreditam firmemente que toda música deveria ser gratuita."

Starbucks e iTunes
O que ele pensa, nesse contexto, da decisão de Paul McCartney de deixar a EMI, depois de 40 anos, e lançar seu próximo álbum pelo selo Starbucks?
"Foi muito inteligente, creio. A Starbucks é um lugar a que todo mundo vai -ninguém vai a uma loja HMV comprar um café. Soa radical -mas seus discos novos vendiam pouco em relação ao velho catálogo, de qualquer maneira", avalia.
Ainda que pareça provável, dada a cessação das hostilidades entre as duas Apples do mundo corporativo, que faixas dos Beatles devam em breve estar disponíveis no iTunes, Martin se preocupa com a possibilidade de os downloads estarem destruindo o conceito de álbum, que os Beatles tanto fizeram para criar, com "Sgt. Pepper".
"Uma das coisas tristes sobre o iTunes é que não é preciso comprar um álbum inteiro. Temos agora uma espécie de fragmentação de canções individuais que não se encaixam."
Martin começou sua carreira como músico profissional aos 15 anos de idade, durante a Segunda Guerra Mundial, tocando canções de Jerome Kern e Cole Porter com sua banda de música para dançar, George Martin and His Four Tune Tellers.
Em 1950, foi convidado a trabalhar na EMI como assistente do diretor da divisão Parlophone.
Aos 29 anos, quando assumiu o comando da Parlophone, ele se tornou o mais jovem dirigente de uma gravadora no país. Martin relembra um mundo que se assemelha mais à Inglaterra eduardiana [relativa ao reinado de Eduardo 7ø, 1901-1910] do que ao espírito modernizador que caracterizou a década de 1950.
"A EMI era bem parecida com a BBC. Uma instituição respeitada. E por isso havia um rígido sistema de classes."

"Fissão nuclear"
Martin produziu uma variedade estonteante de discos -de gravações originais de peças como "The Caretaker" ["O Zelador", 1960], de Harold Pinter, a música de gaitas de fole escocesas, passando pela banda de jazz de Humphrey Lyttelton.
Mas foi ao improvisar efeitos sonoros para discos de comédia -com Flanders e Swann, Peter Sellers e Spike Milligan- que descobriu como aplicar a espantosa inventividade que mais tarde caracterizaria os discos dos Beatles.
"No som, as imagens são muito importantes. Com Sellers, experimentei com a "musique concrète". Foi um ótimo preparo para quando os Beatles surgiram."
Desesperado por encontrar alguém capaz de competir com o sucesso de Cliff Richard, "o Elvis inglês", Martin assinou com os Beatles, sem grande entusiasmo, após todas as outras grandes gravadoras londrinas os recusarem.
E a decisão trouxe à tona um dos grandes imponderáveis na história da música pop: se Martin não tivesse decidido apostar neles em 1962, será que teriam voltado a Liverpool e desistido antes mesmo de começar a compor seu catálogo de canções clássicas?
Responde com a modéstia que o caracteriza: "Não importa o que acontecesse, eles teriam se saído bem, de um jeito ou de outro. Talvez demorasse um pouco mais, e tivessem se tornado artistas solo, mas eram talentosos. Teriam obtido sucesso".
Ele suspira e, pela milésima vez, soa quase incrédulo ao tentar definir como os adolescentes carismáticos, mas, aos seus olhos, não muito distintos em termos musicais, conseguiram chegar ao ponto a que chegaram.
"Juntos, eles tinham essa fissão nuclear, quase mágica. Eram como os quatro cantos de uma torre -e eram inexpugnáveis."
Ao longo dos anos 1960, Martin tinha de estar disponível no estúdio a qualquer momento do dia ou da noite, sempre que os Beatles chamassem -muitas vezes, até às quatro ou cinco da manhã. Era exaustivo, em termos físicos e de criatividade.
"Era preciso usar extremos de imaginação para aquilo que você supunha que eles quisessem ouvir. E isso me desgastava."
"Lembro que eu caía dormindo no meio das sessões, porque estava fisicamente esgotado. Muitos anos depois, conversando com George, ele me disse que costumava colocar uma pílula no meu chá para me manter acordado", conta Martin.
Quando os Beatles enfim se separaram, em 1970, Martin se sentiu emancipado. "No período em que trabalhei com eles, minha maior preocupação era conseguir o melhor som possível para a banda e mantê-los juntos.Quando se separaram, foi um grande alívio para mim, porque eu não tinha mais responsabilidade em relação a eles."
Martin funcionou, para os Beatles, como o perfeito professor excêntrico. Mesmo que jamais tenha dado uma tragada em um cigarro de maconha, ele compartilhava da excentricidade britânica da banda e de seu amor por fantasias verbais à maneira de Lewis Carroll -o que influenciou as notáveis partituras que escreveu para "Strawberry Fields Forever" e "I Am the Walrus".
Outro fator importante era sua capacidade de manter os egos imensos e competitivos da banda sob controle e temperar os excessos dos improvisos "livres", que, diz, "entediariam qualquer um".
Pergunto o que ele, de sua parte, aprendeu com seus quatro mais famosos pupilos. Martin responde sem pensar duas vezes: "Eles me deram a coragem de ultrapassar os limites. Sem eles, acho que não teria conseguido".

A íntegra deste artigo foi publicada no "Financial Times". Tradução de Paulo Migliacci.


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