São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997.



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A guerra contra o pessoal que usava óculos

NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha

Andy Warhol produziu em 1972 uma sequência de serigrafias denominada "Mao". Eram telas enormes, de cerca de 4 metros de comprimento por 4,5 metros de altura, preenchidas pela efígie gigantesca do líder do Partido Comunista chinês. As cores da imagem eram chapadas e totalmente antinaturais. Elas variavam em cada tela, mas, na que mais me agrada, o rosto era azul-escuro, os lábios verdes, a clássica jaqueta de recorte militar era verde, no mesmo tom dos lábios, com uma fina gola de camiseta vermelha aparecendo por baixo do colarinho. O fundo era de um tom azulado diluído, muito claro e esmaecido como em matiz pastel. Contra esse fundo, onde deveria haver a projeção da sombra da imagem, ele acrescentou um rabisco com uma pincelada única, nervosa, que serpenteia num longo arabesco caótico, feito de curvas, traços longos e quebrados.
A obra era uma imensa provocação, mas para quem? Em primeiro lugar, naturalmente, para o governo, as autoridades e o establishment norte-americano. A guerra do Vietnã atingia o clímax, com a queda das capitais provinciais Quang Tri, Hue, Kontum e Pleiku prenunciando a iminente derrota norte-americana, e ninguém podia ignorar a decisiva ajuda chinesa aos vietnamitas. Naquele ano, o próprio presidente Nixon foi até Pequim saudar pessoalmente e tentar conquistar a aliança do tão odiado quanto superpoderoso líder chinês. Os americanos pressentiam a humilhação e reconheciam, muito contra a vontade, que Mao Tse-tung, "o César asiático", era o homem do momento.
Para os ativistas de esquerda, porém, ele já era o centro das atenções há muito mais tempo. Desde meados dos anos 60, com a maré crescente dos protestos contra a guerra do Vietnã, os jovens denunciam o esclerosamento, a burocratização e o stalinismo dos partidos comunistas ligados a Moscou. Para as novas gerações, os líderes inspiradores não estavam mais na Europa, mas no Terceiro Mundo: Patrice Lumumba na África, Che Guevara na América Latina, Ho Chi Min na Ásia. Mas, acima de todos, pairava a lenda viva de Mao Tse-tung, o último e mais genial dos mestres tutelares do marxismo, "o guia iluminado", o "grande timoneiro".
Afinal, desde a "grande marcha", ele havia retirado um quarto da humanidade da fome e do colonialismo para a mais bem-sucedida revolução comunista. Ele havia provado que era possível implantar o socialismo num país sem base industrial e sem operariado organizado, como era o caso dos países do Terceiro Mundo. Ele refizera o marxismo para ser divulgado, entendido e aplicado por gente simples e analfabeta. Ele havia ensinado que a força da vontade revolucionária era capaz de mudar a realidade objetiva, "a mente submete a matéria". O casal símbolo da intelectualidade sofisticada e politicamente engajada, Jean-Paul Sartre/Simone de Beauvoir, estava em estado de graça com o maoísmo. Ele distribuía panfletos nas ruas e bulevares, enquanto ela escrevia na grande imprensa seu testemunho pessoal: "A vida na China hoje (1966) é excepcionalmente feliz".
A essa altura, a Revolução Cultural, iniciada por Mao Tse-tung no ano anterior, já estava a pleno vapor. Uma de suas bases era o pequeno livro editado por seu aliado político do momento e ministro da Defesa, Li Piao, contendo excertos dos pensamentos de Mao na forma de aforismos práticos e morais, conforme a velha tradição confucionista, e conhecido, por causa de sua capa, como o "livrinho vermelho". As TVs, revistas ilustradas e jornais exibiam diariamente imagens, fornecidas pela agência estatal chinesa, de centenas de milhares de jovens brandindo o tal livrinho em frente a palanques políticos em praças públicas.
Era gente muito jovem, de várias faixas de idade, inclusive muitos pré-adolescentes como eu. Eles gritavam, agitavam o livrinho, os olhos inchados, lágrimas abundantes correndo pelo rosto vermelho, sorrisos de êxtase e o punho de uma das mãos apertado contra o peito, como para conter uma súbita convulsão nervosa. Aquilo tudo me parecia tão extraordinário e tão familiar. Eu já conhecia aquele comportamento pela reação típica do público dos Beatles. Era tão parecido que só podia ser a mesma coisa: era a Revolução Cultural!
Houve vários motivos para que Mao Tse-tung desencadeasse esse fenômeno político e social. Um dos mais evidentes era seu empenho em resgatar o espaço que havia perdido no sistema de poder. Ele foi sendo marginalizado do centro das decisões por conta das sucessivas e catastróficas crises políticas e econômicas, desencadeadas pelo seu anseio de gerar mudanças profundas o mais rápido possível e a qualquer preço.
Elas começaram com o seu projeto de reforma agrária e punição de "contra-revolucionários", entre 1951 e 1953, que resultou num surto de execuções sumárias, envolvendo alguns milhões de vítimas. Veio depois o movimento pela "reforma do pensamento", para acabar com a tradição dos valores familiares da sociedade chinesa, estabelecendo o culto do Estado e do líder, ele mesmo, como "pai da nação", que deu origem ao sistema dos gulags chineses para a reeducação dos recalcitrantes. Em seguida, veio a política de "deixar brotar cem flores", em 1956, estimulando as críticas ao governo e seus mandatários, logo acompanhada da perseguição e poda de todas as flores que ousaram brotar.
Mas o pior de tudo, de longe, foi sua política do "Grande Salto para a Frente". Seu fundamento era a crítica que Mao fazia ao "grande erro histórico de Stálin", que teria desenvolvido um sistema desequilibrado. Segundo ele, Stálin impulsionou separadamente a agricultura, de um lado, e, do outro, a indústria, sem estabelecer um vínculo vital entre os dois. Seu projeto era fazer a China "andar sobre os dois pés", criando comunas auto-suficientes, dotadas, ao mesmo tempo, de setores agrícolas, industriais, de serviços e com seu próprio sistema de defesa militar.
Mao lançou toda a população chinesa nesse projeto megalomaníaco, num único ato, no ano de 1958. O resultado foi uma hecatombe. Toda a estrutura agrícola do país foi desmantelada, a indústria de base colapsou por completo, os russos retiraram seu apoio técnico e o país mergulhou numa escassez crônica de alimentos, fome e desnutrição, agravada pela superexploração dos recursos naturais e a devastação do meio ambiente. O "Grande Salto" foi suspenso em 1959, mas seus efeitos mais dramáticos se fizeram sentir pelo menos até 1962. Uma vez mais, não há estatísticas seguras para avaliar a massa de seres humanos que morreram de fome e exaustão.
Foi depois dessa última crise que a direção do partido afastou Mao das decisões nas áreas política, social e econômica. Como compensação, lhe deram a área de educação e cultura. Ele nunca ocultou seu ressentimento pelos "mandarins" do partido, em especial do homem que controlava a máquina partidária, Liu Shao-chi. Foi nesse ponto que ele articulou a sua Revolução Cultural, concebida como uma reforma de base no ensino. "Eu não aprovo que se leiam tantos livros... Não podemos seguir os velhos rumos do desenvolvimento de outros países e nos arrastar passo a passo atrás deles. Temos que esmagar as convenções... Precisamos de gente jovem, de pouca educação, mas com uma atitude firme e experiência política para executar essa tarefa."
Chiang Chin, a mulher de Mao, assumiu a cena pública para orquestrar o movimento. "O camarada Mao sempre diz que não há construção sem destruição. Destruição significa crítica e repúdio -significa revolução... De martelo na mão, eu os convoco para atacar todas as velhas convenções." Lin Piao jogou ainda mais fogo: "O poder político é o poder de oprimir os outros. A retenção do poder depende do barril dos revólveres e das latas de tinta".
No início da primavera de 66 surgiram as primeiras brigadas dos Guardas Vermelhos. Eram jovens da escola secundária, de 12 a 14 anos. Logo as escolas primárias, as de acesso e as universidades começaram a aderir em massa. Bastava amarrar um pano vermelho no braço esquerdo com a inscrição em amarelo "Hung Wei Ping", "Guarda Vermelho", e brandir o livrinho. Com as latas de tinta, escreviam slogans e nomes dos "reacionários", "ocidentalizados" e "contra-revolucionários". Uma sessão pública de adoração das imagens de Mao, das flâmulas e insígnias do partido e do livrinho e a massa enfurecida ia caçar suas vítimas: professores, médicos, técnicos, cientistas, escritores, intelectuais, artistas, poetas, arquitetos, gente de teatro, dançarinos, cantores, músicos, compositores, maestros, tanta gente e tão variada, que, para facilitar, era chamada de "o pessoal que usa óculos".
De passagem, saqueavam e pilhavam as livrarias, lojas de música e de artigos importados, amontoados em pilhas que viravam fogueiras gigantescas. Moças de cabelos compridos tinham a cabeça raspada em público, jovens vestindo jeans eram espancados e suas roupas rasgadas, pianistas tinham os dedos quebrados a martelo. Daí para a pilhagem generalizada foi um passo, casas, templos, laboratórios, lojas, galerias, bibliotecas, onde quer que houvesse valores apropriáveis ou símbolos a serem destruídos. Essas imagens, as TVs e revistas não mostravam. Ao contrário do que parecia, a Revolução Cultural foi um movimento contra a cultura, um ato político de vandalismo e terror.
No verão de 67, quando a violência já degenerava em guerras de gangues, Mao admitiu seu erro e lançou o exército contra os guardas vermelhos. Os confrontos duraram até 68. Quanto disso tudo Warhol sabia quando pintou sua obra de 72 é impossível dizer. Mas a ironia salta aos olhos na composição. A imagem gigantesca era, na realidade, a reprodução ampliada da efígie do líder que aparecia no frontispício do livrinho vermelho. O título, simplesmente "Mao", produz uma imediata associação fonética, para quem fala inglês, com o verbo "to maul" (surrar, estropiar) e com o substantivo "maw" (bocarra, sugerindo um monstro devorador), o que é reforçado pelo destaque dado à boca pintada de verde, mesma cor do uniforme. Mas o detalhe mais perverso é que os únicos pontos não coloridos da imagem são as áreas brancas dos ossos, o que transmite a estranha sensação de que há um rosto real atrás da máscara, uma vontade que avalia o efeito da mágica visual sobre o observador. Nos anos 90, a imagem irônica por excelência de Mao é sua efígie tatuada no bíceps de Mike Tyson. O que tem tudo a ver, afinal ele não usa óculos.


Nicolau Sevcenko é historiador e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras).





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