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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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MARCOS SISCAR

VOCÊS REZAM A NOITE INTEIRA NA CAPELA DO COLÉGIO (3)
Enquanto eterna e adorável profundeza ametista
Gira sem fim a flamejante glória de Cristo
É o belo lírio que cada um de nós carrega
É a tocha de cabelos ruivos que o vento não encerra
É o filho da dolorosa mãe pálido e rubente (4)
É a árvore sempre densa de orações constantes
É a duplo esteio de honra e eternidade
É a estrela de seis pontas
É Deus que morre na sexta e no domingo ressuscita
É Cristo que sobe onde aviador nenhum se aventura
Ele é o recordista do mundo em altura
Menina Cristo dos olhos (5)
Vigésima pupila dos séculos disso ele entende
E mudado em pássaro este século como Jesus ascende
Os diabos em seus abismos levantam os olhos para vê-lo
Dizem que ele imita Simão o Mago na Judéia (6)
Gritam que se sabe decolar que seja degolado (7)
O belo volteador pelos anjos é volteado
Ícaro Enoque Elias Apolônio de Tiana
Flutuam em torno do primeiro aeroplano
Afastam-se às vezes para deixar passar aqueles que a Santa Eucaristia transporta
Esses padres que sobem eternamente elevando a hóstia
Finalmente o avião pousa sem fechar as asas
E então as andorinhas enchem o céu aos milhões
Num piscar de olhos vêm os corvos os mochos os falcões
Da África chegam os íbis os flamingos os marabus
O pássaro Roca celebrado em verso e prosa passa
Levando nas garras o crânio de Adão a primeira cabeça
A águia mergulha do horizonte largando um fundo grito
E da América vem o pequeno colibri
Da China vieram os longos e macios piís
Que têm uma só asa e voam em pares
E eis então a pomba espírito imaculado
Escortada pelo pássaro-lira e o pavão ocelado

NOTAS
3. Comparado frequentemente com o poema "Les Pâques à New York", de Blaise Cendrars, o poema "Zone" apresenta-se como uma longa litania da vida moderna. Nos versos de 28 a 64, essa propriedade aparece mais claramente. As anáforas, as enumerações, as rimas emparelhadas, a falta de pontuação acentuam uma cadência de prece. A ausência de padrão métrico reconhecível permite uma grande liberdade de expressão, e as rimas, nem sempre regulares ("éternité" e "oeil" não rimam), nem sempre perfeitas ("cachette"/"collège", "améthiste"/ "Christ", "cultivons"/"vent"), funcionam antes de mais nada como reforço do tom oratório. Por essa razão, não considerei essencial recuperar o jogo de rimas do francês.

4. "Vermeil" não é uma palavra comum para se referir à cor vermelha, ou avermelhada ("rouge", em francês). Por isso, o uso da palavra "rubente", que lembra também o rubor, a pele corada. Os versos exploram um vocabulário híbrido, misturando palavras raras ou de valor simbólico-místico ("améthiste", "lys", "éternité") com palavras e situações cotidianas ("record du monde", "il sait y faire"). Esse hibridismo inclui a convivência, nesses versos, de pássaros exóticos ("ibis", "flamants", "marabouts") e fabulosos ("oiseau Roc"), cultura helênica (Ícaro, Apolônio de Tiana) e nomes do judeo-cristianismo (Enoque, Elias, Cristo).

5. Nesse verso, semanticamente complexo, está embutida a expressão "pupile de l'oeil", ou seja, a "menina dos olhos" (a coisa preferida, que merece atenção particular). Por um feliz acaso, "menina dos olhos" comunica-se, em português, com a expressão "menina do olho" (a pupila). Esse preferido, o século 20, é comparado a Cristo, à medida que este é capaz de voar (como o avião), de ascender aos céus, transformado em pássaro. O cristianismo é tratado, aqui, como um símile da modernidade, embora de maneira irreverente e, por vezes, irônica. As lembranças da infância, ligadas à religião, aparecem mescladas com os elementos da modernidade técnica, como que se explicando mutuamente. O ponto de vista "panorâmico" dos versos enumerativos não deixa de ter ligação com o interesse despertado pela técnica aeronáutica que tornou possível a perspectiva de cima para baixo.

6. "Simão, o Mago", segundo o livro dos "Atos dos Apóstolos", era uma espécie de mágico que, ao se converter ao cristianismo, tentou comprar o poder de distribuir o dom do Espírito Santo. A ingênua aproximação entre mágica e religião lhe valeu a maldição dos apóstolos. No caso do poema, são os diabos que denunciam o suposto impostor, cuja técnica de vôo pretende se aproximar da elevação do Cristo. Outras figuras bíblicas comparecem no poema. "Enoque" aparece no "Gênesis". Segundo a tradição, desapareceu misteriosamente "arrebatado por Deus". "Elias" é um profeta judeu do século 9º a.C., do qual se esperava o retorno. Na época de Jesus, este é chamado de Elias. Com "Ícaro" e "Apolônio de Tiana" (filósofo neopitagórico do século 1º), esses elementos da cultura greco-judaica, em geral ligados à idéia da levitação, atuam como os anjos guardiães do século 20 cujo vôo é comparado a uma espécie de equilibrismo (do "volteador").

7. A coloquialidade é um aspecto bastante explorado pela poesia do início do século 20. Em "Zona", essa coloquialidade aparece, também, como acontece nesse verso e no posterior, sob a forma de jogos de palavras quase infantis. O jogo de palavras "voler" (voar)/"voleur" (ladrão), por exemplo, é uma imprecação lançada pelos diabos, baseada no duplo sentido do verbo "voler" (voar/ roubar). Optei pela aproximação de "decolar" e "degolar", que, embora não se baseie numa homonímia, tem ao menos a vantagem de remeter à decapitação simbólica da expressão "cou coupé", no final do poema.(MARCOS SISCAR)


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