São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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Ponto de fuga

Debussy em Minas

Ópera singular, um "monumento solitário e incomparável", como escreveu Mário de Andrade, "Pelléas e Mélisande" nunca foi montada em São Paulo

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Seria possível começar com críticas. Vamos lá: a montagem de Marcio Aurélio tem muitas falsas boas idéias, os figurinos são inexpressivos, a Mélisande de Rosana Lamosa não possui as notas médias e graves do papel.
Agora é melhor esquecer as críticas. "Pelléas e Mélisande", de Claude Debussy, montada no Palácio das Artes de Belo Horizonte, terminou subjugando o público pela emoção. Abel Rocha dirigiu a excelente Sinfônica de Minas extraindo as nuanças mais inspiradas, mais envolventes. Fernando Portari impôs um Pelléas interior e perturbado. Magnífico, por ele só valendo a viagem, o barítono francês Jean-Philippe Lafont (para descobri-lo: a gravação de um "Falstaff" cheio de verve e de insolência vocal, sob a regência renovadora de John Eliot Gardiner). Encarnou um formidável Golaud.
Pensar que "Pelléas", essa estupenda obra-prima, nunca foi montada em São Paulo!
Ópera singular, um "monumento solitário e incomparável", como escrevia Mário de Andrade neste mesmo jornal há 65 anos. Tece como que uma poesia do inconsciente, feita de vôos e de mergulhos nas almas humanas, tão dolorosas. "Se eu fosse Deus, teria piedade dos corações dos homens", diz um de seus personagens, o velho rei Arkel.

Velhos hábitos
O parque -ou, antes, o imenso jardim- é magnífico. A altura da grama parece medida à régua; as palmeiras, as orquídeas, os guambés, a infinidade de plantas, com muita arte, multiplicam os verdes, pinçam alguns vermelhos, insinuam amarelos. Os percursos são sinuosos e labirínticos, cheios de estratégias.
Há também pavilhões. Nada de arquitetura neonacional, eloqüente, impositiva. São brancos, discretos, elegantes.
Às vezes se abrem em grandes vidraças para lagos tranqüilos, cheios de cisnes, de aves exóticas, de carpas coloridas. Nesses abrigos foram dispostas obras contemporâneas. Uma delas, "True Rouge" [de Tunga], incendeia de vermelho a ponta de um dos lagos.
Inhotim [em Brumadinho, MG] tem uma beleza espantosa e possui também certamente um batalhão de jardineiros para conter a exuberância natural dos trópicos. Fica a 60 km de Belo Horizonte. Chega-se a esse Éden perfeito por uma estrada de terra. Faz pensar nas maluquices do barão de Catas Altas, do contratador João Fernandes, dos poderosos ricaços do ouro e dos diamantes naquelas Minas de outrora.

Frufru
A conjugação tão feliz entre a arte e a natureza em Inhotim expõe a mais essencial característica da produção contemporânea. De hábito, ela permanece ocultada pela circunspeção dos propósitos, sempre profundos, solenes e "críticos", pelos textos, obscuros e pretensiosos, que a rodeiam.
Esse ponto crucial é a frivolidade. Inhotim não deixa dúvida: a arte contemporânea é, antes de tudo, frívola.

Rendas
Frivolidade deve ser levada a sério. Eram frívolos os jardins aristocráticos do século 18, os que a margravina de Bayreuth mandou traçar para seu Hermitage; os de Sanssouci, em Potsdam; o "deserto" de Retz ou o parque de Rambouillet na França.
Caminhos que serpenteiam, cheios de surpresas. Natureza domada para que pareça "natural", sem os inconvenientes da selvagem. Pagodes, falsas ruínas, pequenos templos, jatos de água com efeitos que maravilham e pasmam. Arte destinada a divertir finamente.
Nas bienais, nos museus, as instalações contemporâneas vêm enfileiradas, sem graça.
Em Inhotim, elas viraram o que são: surpreendentes, agradáveis, espirituosas.


jorgecoli@uol.com.br


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