São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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Sociedade

Mito de chuteiras

Historiador explica como a Copa de 58 consagrou a idéia do Brasil mestiço, formulada por José Lins do Rego e Nelson Rodrigues desde os anos 30

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Há 50 anos, quando Brasil e Suécia entraram em campo para decidir a Copa do Mundo de 1958, um debate ideológico também começava a tomar corpo. Para o especialista em história do esporte Victor Andrade de Melo, tratava-se da sedimentação de uma idéia de Brasil em que se apostava desde os anos 1930.
O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro vê naquela Copa o triunfo da construção de identidade nacional engendrada por autores como José Lins do Rego e Nelson Rodrigues: o brasileiro é como seu futebol.
Para Melo, autor de "Cinema e Esporte" (editora Aeroplano), 1958 também foi o ano em que dois projetos concorrentes colaboraram para o triunfo nacional: o paulista -diligente e apolíneo, personificado em Pelé- e o fluminense -malandro, dionisíaco, à moda de Garrincha-, que explica na entrevista abaixo.

FOLHA - O Brasil só passou a ser o país do futebol em 1958?
VICTOR ANDRADE DE MELO
- A importância de 1958 é que finalmente ratificou uma construção dos anos 1930. Há a construção de uma identidade nacional, uma elegia da mestiçagem como "jeito brasileiro".
Isso tem repercussão direta no futebol: o caráter mestiço dá a genialidade ao futebol brasileiro. É uma construção discursiva, a partir das idéias de Gilberto Freyre, que tem, num primeiro momento, dois grandes tradutores: Mário Filho e José Lins do Rego. Eles utilizam os meios de comunicação para difundir essas idéias.

FOLHA - Qual foi o papel da imprensa nessa construção?
MELO
- É fundamental. José Lins do Rego, Mário Filho, Nelson Rodrigues; Ary Barroso, no rádio -todos constroem a idéia de que o futebol brasileiro é peculiar, representa a malandragem do brasileiro, idéias que hoje são naturalizadas.
Essa idéia fracassou em 1950 -perdemos a final e "perdemos porque o caráter do brasileiro é fraco". Nelson traduz essa idéia como "complexo de vira-lata".
Em 1954 perdemos de novo.
Em 1958 é ratificada essa idéia, e alguns dizem que o Brasil é respeitado pela primeira vez.

FOLHA - Elementos como a criatividade, o individualismo e a desorganização fazem do futebol brasileiro uma boa metáfora do Brasil?
MELO
- O futebol é uma chave para compreender a cultura brasileira. Mas não é melhor que qualquer outra. Há, diversas vezes, uma ligação muito linear entre futebol e cultura brasileira: "O futebol é desorganizado, mas dá certo; a política é desorganizada, mas pode dar certo". Não dá para dizer que o futebol é um espelho do país.
Mas essa idéia tem a ver com aquela construção discursiva.

FOLHA - Portanto não é uma boa interpretação do Brasil?
MELO
- Ela carrega muito de ideal, pois havia a preocupação de construir uma idéia de nação. Não é pior nem melhor, mas deve ser situada em seu momento histórico. "Brasileiro ginga bem e tem jogo de cintura." É verdade para todos? Não.

FOLHA - Mas o discurso persiste.
MELO
- Muito desse discurso, sim, mas hoje não há uma leitura tão direta. Alguns meios de comunicação irão repetir esses debates nos Jogos Olímpicos.
Isso lembra Sydney [em 2000], em que o Brasil não ganhou medalha de ouro -"isso demonstra como a nação não vai bem...". Não necessariamente.

FOLHA - Que jogador da seleção de 1958 representa melhor a idéia que se consolidou de futebol brasileiro?
MELO
- Dois grandes jogadores de certa forma representam os projetos de nação. A imagem que se construiu do Pelé, notadamente pela imprensa paulista, é a do atleta disciplinado, dedicado, rigoroso. E Garricha, "flâneur", malandro, elogiado pela imprensa carioca.
Esse embate tem relação com a idéia de quem deve ser o homem brasileiro. Nelson Rodrigues busca a síntese: o brasileiro não é nem um nem outro, o Brasil precisa dos dois.
Além disso, os jogadores não eram tão opostos.

FOLHA - Como a imagem do Brasil como país do futebol contamina outras áreas, como as artes?
MELO
- Uma manifestação artística historicamente ligada ao futebol é o samba, uma outra chave para mostrar como somos: o jogo de cintura.

FOLHA - O samba, as artes ganham com a influência do futebol?
MELO
- Há uma enorme presença do futebol no cinema, mas isso não potencializou uma forma brasileira de fazer cinema. O futebol foi incorporado e pronto. Nas artes plásticas há Rubens Gerchman, mas esse diálogo não foi necessariamente intenso. O futebol tem penetração, por isso é usado para ter alcance popular.

FOLHA - Há excesso de futebol na cultura brasileira?
MELO
- O futebol é o esporte mais popular no mundo e tem importância na construção da identidade nacional. Por exemplo, quando Angola se classificou para a Copa da Alemanha [2006], uma festa impressionante tomou conta de Luanda.
Não diria que há exagero.

FOLHA - Essa centralização do futebol tem como decorrência uma falta de opções, uma pobreza cultural?
MELO
- Durante muitos anos negligenciamos uma política esportiva que fizesse outros esportes chegarem à população.
Quando houve investimento no vôlei, esse esporte se tornou uma febre. O problema não é o futebol, mas a falta de investimento nos outros esportes.

FOLHA - Como compara o esporte, na condição de espetáculo, à arte?
MELO
- Vemos os planos cinematográficos introduzidos na cobertura, desde o "Canal 100" [cinejornal criado nos anos 50], a narração épica. No início a torcida era o povo; agora vemos celebridades. E os jogadores são celebridades. Certamente a exposição é muito maior hoje do que em 1958.

FOLHA - Isso é bom para o esporte?
MELO
- A lógica esportiva extrapolou os gramados. Há futebol no videogame, há olimpíadas de matemática. Práticas que não eram esportivas estão se tornando esportivas, como danças de salão. O esporte tem uma sensibilidade muito adequada à modernidade capitalista: o mais rápido, o mais forte, o que produz melhor.


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