São Paulo, domingo, 29 de julho de 2007

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A era do design

A socióloga Virginia Postrel defende que qualquer objeto de consumo pode ser hoje uma experiência estética

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Depois da "era da produção em massa", inaugurada pela Ford no início do século 20, da "era da conveniência", criada pelo McDonald"s nos anos 1970, o homem vive agora a "era do design", em que virtualmente tudo pode e deve ser apreendido como experiência estética.
Isso inclui carros, prédios, roupas, móveis, lojas e até escovas de dentes e luminárias.
Essa é a tese defendida pela socióloga e jornalista norte-americana Virginia Postrel em "The Substance of Style" [A Substância do Estilo, HarperCollins, 272 págs., US$ 13,95, R$ 27].
Para ela, o ícone dessa nova fase da relação com o consumo é representado pela rede de cafeterias americana Starbucks.
Cores sedutoras, música ambiente soft, aroma de café borrifado no interior das lojas fizeram do ato de tomar uma simples xícara de café -não importa se bom ou ruim- uma experiência "multissensorial", diz.
Postrel afirma que esse conceito tem sido imitado à exaustão por shoppings, hotéis, bibliotecas, lojas e até serviços religiosos.
Leitora do empirista escocês David Hume (leia texto nesta pág.), Postrel vê a era do design como uma exacerbada "extensão do individualismo liberal".
A partir dessa premissa, rebate o conceito de "indústria cultural" formulado por Theodor Adorno (leia texto nesta pág.), o qual seria incapaz de dar conta da relação complexa que o homem contemporâneo estabeleceu com os bens de consumo.
Na entrevista abaixo concedida à Folha, ela aponta que o grande erro do filósofo alemão foi ver os processos do mercado como "muito mais estáticos, homogêneos e racionais do que realmente eram".
 

FOLHA - Qual é o símbolo mais representativo da "era do design"?
VIRGINIA POSTREL - A rede Starbucks é o exemplo modelar, em parte porque promoveu uma mudança em cadeia no ambiente estético dos lugares públicos, tanto comerciais quanto não-comerciais -algo ainda mais impactante do que as mudanças no design dos produtos.
Ela percebeu cedo que não estava vendendo apenas café -ainda que fosse café "gourmet"-, mas, sim, uma experiência estética, multissensorial.
Seu design também se tornou algo próximo de um padrão -ou talvez um clichê. Shopping centers, lobbies de hotel, bibliotecas e mesmo saguões de igrejas tentam "ser como a Starbucks".
O que costumava ser um ponto de inflexão se tornou um padrão mínimo de qualidade.
Outras pedras-de-toque da era do design são os telefones celulares, ao combinarem estilo e função.
FOLHA - A sra. vê a era do design como algo sobretudo positivo. Como situar, sob esse pano de fundo, a noção de "indústria cultural"?
POSTREL - Adorno, ao criar esse conceito, estava escrevendo em uma época em que a produção em massa era a grande inovação econômica, e tanto os executivos de grandes empresas como os críticos sociais tendiam a ver a massificação como inevitável e permanente.
A crença de que as necessidades econômicas precisavam ser facilmente identificadas, massificadas e definidas foi essencial à noção de planejamento econômico central, fosse ele fascista ou socialista.
Ao conceber seu conceito de "indústria cultural", Adorno partiu então dessa mesma suposição de uniformidade e a aplicou à mídia, inclusive ao cinema e ao rádio.
Olhando essa época em retrospectiva, podemos dizer que o viés anticomercial provocou uma cegueira em relação a importantes desenvolvimentos culturais -dos filmes clássicos da era dourada de Hollywood à dinâmica complexa e altamente inovadora da música popular.
A indústria cultural do século 20 de fato criou uma série de produtos de massa e pouco dignos de nota mas também criou obras de arte duradouras.
O grande erro que o filósofo frankfurtiano cometeu -e ele certamente não estava sozinho nisso- foi ver os processos do mercado como muito mais estáticos, homogêneos e "racionais" do que realmente o eram.
Ele esqueceu dos desejos dos consumidores e da criatividade dos novos empreendedores.
FOLHA - Em seu livro, a sra. defende que duas das principais razões da abundância estética de hoje são "a renda crescente e os preços em declínio". Isso também vale para o Terceiro Mundo?
POSTREL - O valor da estética é universal para os seres humanos. A questão toda se resume a: em que você gastará sua "próxima" reserva de tempo e dinheiro? Também nas economias menos desenvolvidas as pessoas devotam uma parte relativamente grande de seus recursos à estética -com produtos para uso próprio, embelezando suas casas, comprando móveis etc.
Elas podem não ter acesso a certos bens industriais, como geladeiras ou automóveis (ou a bens no sentido mais amplo, como privacidade, higiene ou transporte), mas embelezam onde vivem a preços relativamente baixos.
Com o incremento da industrialização, caíram os custos relativos de diferentes bens, e produtos que estavam ao alcance apenas dos mais ricos -para não mencionar alguns produtos a que mesmo os mais abastados não tinham acesso- se tornaram disponíveis a preços relativamente baixos.
Hoje, os países em desenvolvimento se aproveitam dos benefícios de um século ou mais de eficiência crescente na produção. Os preços dos bens em geral -e dos bens estéticos em particular- são muito mais baixos em termos reais do que o eram um século atrás.
Assim, alguém em alguma cidade do Terceiro Mundo provavelmente tem mais acesso à estética do que, por exemplo, alguém que viveu nos EUA dos anos 1920. As companhias que buscam vantagens, mais do que simplesmente oferecer o preço mais baixo, procuram meios para adicionar valor, incluindo aí o valor estético.
FOLHA - Ainda há sentido em falar em dicotomias como rebelião/conformidade, função/prazer?
POSTREL - Essas dicotomias podem ser úteis em alguns contextos mas também podem esconder o que está realmente acontecendo. Estéticas "rebeldes" freqüentemente se ajustam às convenções de algum tipo específico de subcultura.
A estética punk, por exemplo, apresentou uma postura rebelde, mas tinha a ver mais com unir pessoas que partilhavam das mesmas idéias do que rebelar-se contra as convenções.
FOLHA - Há alguma relação entre a ascensão do "valor estético" e o surgimento de categorias socioculturais como "bubos" [burgueses boêmios] e metrossexuais?
POSTREL - Certamente. Em termos históricos, não são fenômenos novos, mas o são especialmente nos países anglo-saxões.
Desde que a Revolução Industrial separou as duas esferas -o lar, feminino, e o local de trabalho, masculino-, os homens anglo-americanos tenderam a considerar o ato de prestar atenção a sua aparência como algo feminino ou vão.
Hoje, porém, isso se tornou uma questão de boas maneiras e de realização pessoal.
FOLHA - Qual a relação entre a ascensão da "era estética" e o colapso do modernismo?
POSTREL - A idéia de que há "uma melhor maneira" para o design e de que esse "bom" design pode ser definido dedutivamente -mais do que pela experiência- já passou há muito tempo. Hoje, os indivíduos desejam mais liberdade para encontrar seu próprio prazer e seu próprio significado no design.
E os designers, por outro lado, têm mais liberdade para experimentar. O modernismo entrou em colapso como ideologia, mas ainda é muito popular para muitas pessoas, embora apenas como estilo.
FOLHA - A sra. poderia explicar como a "exposição" -e não a "manipulação"- cria demandas para os produtos?
POSTREL - Quando digo que "exposição, e não manipulação, cria demanda", estou me referindo a produtos -como, por exemplo, escovas de cabelo- que falam por si mesmos, sem nenhuma campanha de marketing.
As pessoas os vêem e decidem se gostam ou não deles.
De modo mais geral, entretanto, eu diria que os críticos sociais freqüentemente confundem imitação estética e competição por status.
É comum para uma mulher, por exemplo, admirar a camisa ou a bolsa de uma amiga e talvez comprar algo similar -mas não porque ela esteja competindo, mas, sim, porque tem a oportunidade de ver algo de que gosta.
FOLHA - Vivemos em uma cultura material ou é de forma material que vivemos hoje nossa espiritualidade?
POSTREL - Os seres humanos são criaturas físicas, sensórias e tendem a dar expressão física, sensória a suas crenças espirituais -embora isso também possa acontecer por meio da música ou da dança, por exemplo. Mas não criamos nossa identidade por meio de bens materiais.
FOLHA - Qual será a próxima era?
POSTREL - Não sei. Mas um prognóstico óbvio seria de algo que emerja de uma maior compreensão da biologia humana.
Entretanto que forma tomará -e como irá interagir com nosso desejo por meio da estética- permanece uma incógnita.
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