São Paulo, domingo, 29 de julho de 2007

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Emmanuelle não morre jamais

Atriz que interpretou o pornô ícone dos anos 70, a holandesa Sylvia Kristel, 55, lança biografia e fala do sucesso do filme, que ficou em cartaz em Paris por 13 anos

DEBORAH ROSS

Será que me decepciono por ela não estar, em vez disso, numa cadeira de vime, usando apenas um colar de pérolas e -num toque esdrúxulo- meias três-quartos com botinas? Não. Isso seria embaraçoso. Eu me apresento.
Sylvia está com 55 anos, é bonita e tem pele linda. "É genético. Os cremes que uso não são caros. Nivea é tão bom quanto. Para que gastar uma fortuna à toa?"
Descubro que ela vive acima do bar, num pequeno apartamento alugado no qual pinta ("meu último quadro foi uma tela imensa cheia de rosas azuis"), assiste a novelas americanas e cozinha às segundas-feiras.
"Preparo um panelão de macarrão com legumes e o faço durar uma semana." Pedimos café.
Estamos aqui para falar de sua biografia, "Undressing Emmanuelle" [Desnudando Emmanuelle, Fourth Estate, 304 págs., ú 14,99, R$ 57], que abrange desde sua infância estranha até "Emmanuelle" e aqueles anos movidos a álcool e cocaína durante os quais ela viveu com o ator Ian McShane em Hollywood.
De qualquer modo, mesmo que o título de sua autobiografia seja o que é -afinal, uma garota tem que ganhar a vida!-, eu imagino que Sylvia já deve estar bem entediada com Emmanuelle. Meu Deus, foi 33 anos atrás! O que mais ainda resta a ser dito?
Falo que assisti a "Emmanuelle" no cine Odeon de Golders Green [em Londres] quando o primeiro filme saiu, em 1974, quando eu tinha 13 anos.
Digo a ela que foi o primeiro filme erótico -a primeira qualquer coisa erótica- que minhas amigas e eu vimos na vida e nos deixou totalmente estarrecidas.
Nunca antes tínhamos visto aquilo; nem sequer fazíamos idéia de que havia mais de uma maneira de fazer. Saímos do cinema tão instigadas que, se tivéssemos esbarrado em qualquer coisa, mesmo que fosse um poste de luz, provavelmente teríamos começado a esguichar como hidrantes antiincêndio.
Ela responde: "Isso me espanta, esse interesse todo. Quando é que isso vai terminar?". O que você acha que "Emmanuelle" tem que faz com que as pessoas não percam o interesse?
Sylvia acha que foi tudo uma questão de timing perfeito. Ela diz que, devido às mudanças nas regras de censura da época, "Emmanuelle" foi o primeiro filme de sexo a ser exibido em cinemas "normais", em lugar de cineminhas decadentes que só exibiam filmes pornô.
"A luz se acendeu em muitos países, e isso contribuiu muito para o sucesso." Falo que talvez possa ser alguma outra coisa, também.
Conto a ela que revi o filme antes de vir aqui, pela primeira vez desde que tinha 13 anos, e que o que mais chamou minha atenção não foi apenas sua inocência desajeitada -bigodes suspeitos, dublagens atrozes e todas aquelas maratonas de transas maravilhosamente "ad hoc" ("me passe o açúcar, e, já que estamos aqui, vamos dar uma rapidinha")- mas também seu maravilhoso frescor e pureza.

Atriz inocente
Acho que o filme não teria chegado a lugar nenhum se a protagonista tivesse sido alguma atriz pornô experiente, com seios enormes. Sylvia pensa que pode haver alguma verdade nisso, sim.
Ela reviu o filme há um ano, mais ou menos, porque a [TV britânica] Channel 4 estava fazendo um documentário sobre ele. E?
"Achei muito encantador. Muito inocente, como você diz. Fiquei espantada porque minha aparência era tão jovem na época, mas eu me achava tão adulta, pensava que sabia de tudo e que ia conquistar o mundo. Espantoso. De onde veio tudo isso?"
Sylvia tem um filho, Arthur, que está na casa dos 30 anos. Ele já viu o filme? "Ele cochilou. Achou muito maçante."
E sua mãe? "Ela viu o filme quando foi mostrado na televisão. Falou: "Se estão mostrando na televisão, não pode ser tão ruim assim". E então ela viu e disse: "É só isso?". Eu falei: "Mãe, quer dizer que há 20 anos você vem imaginando o pior?"."
Embora muitos imaginem que Sylvia seja francesa, ela na realidade é holandesa.
Nasceu em Utrecht, onde seus pais eram proprietários e gerentes do hotel The Commerce, na Station Square. Sylvia e sua irmã, Marianne, viviam no quarto 21, a não ser quando o hotel estava lotado, quando então eram transferidas, muitas vezes no meio da noite, para o quarto 22, "que não passava de um cubículo".
Conta que freqüentemente pensava: "E se minha mãe alugar o quarto 22? Para onde vamos?". Seus pais eram praticamente alcoólatras. Sylvia lembra que uma vez contou quantos copos de cerveja seu pai, John, tomava em um dia, e parou ao chegar aos 40.

No internato
Enquanto isso, sua mãe, Pete, era uma mulher emocionalmente distante, que vivia tomando xerez. Pete? "Ela vem de uma zona rural em que existe esse hábito de dar às crianças o nome de um parente, não importa se homem ou mulher."
Sylvia não fazia idéia de que a bebida não fosse uma parte normal da vida de todo mundo, que o álcool não era igual a comida ou bebida. Foi apenas quando foi passar algum tempo num colégio interno, aos 11 anos, que se deu conta disso.
"Na primeira noite no internato eu não conseguia dormir, então pedi um conhaque à irmã Assassia. Ela respondeu: "Você só pode estar brincando. Três ave-marias e um pai-nosso farão você dormir igualmente bem." Foi a primeira vez em que alguém me recusou bebida. No hotel, quando não conseguia dormir, sempre me servia de um conhaque."
É desnecessário dizer que Sylvia acabaria por sofrer seus próprios problemas ligados à bebida.
Um momento que definiu sua infância possivelmente tenha sido quando tinha 16 anos e algo espantoso aconteceu: seu pai voltou ao hotel um dia carregando a tiracolo uma mulher que apresentou como sendo sua nova mulher. Ele então, literalmente, despejou Pete e as crianças do hotel.
"Foi como se fôssemos empregadas do hotel e ele nos tivesse demitido."
Eu me pergunto quando ela se deu conta de que era bela. Ela não sabe, responde. Por outro lado, vivia se olhando no espelho.
Sua mãe a achava terrivelmente vaidosa, e o mesmo acontecia com sua avó, que passou a cobrir os espelhos com jornais.
Sua saúde não tem sido boa nos últimos anos. Ela teve dois entreveros com o câncer (garganta e pulmão). O tratamento de radiação queimou seu pescoço -é a razão da echarpe. "Tenho certeza de que ninguém mais me chamará para atuar num filme por causa de meu corpo."
Ela diz isso em tom realista, sem nenhuma autopiedade.
Quando concluiu o colégio ela se tornou secretária, depois garçonete e então posou para um fotógrafo em Utrecht e se tornou modelo.
Ganhou dois concursos de beleza: foi a primeira miss TV Holanda e depois miss TV Europa.
Ela escreve no livro que, quando foi coroada miss TV Europa -por Katie Boyle [apresentadora de TV], numa cerimônia em Londres-, a primeira coisa que pensou foi: "Quero que meu pai me veja, que ele veja esse pássaro belo que deixou escapar".

Homens da vida
É triste, penso. Sugiro a ela que talvez ela venha procurando seu pai em seus relacionamentos com homens, desde então.
É um clichê, eu sei, mas isso não significa que não possa ser verdade. Afinal, seu primeiro namorado de fato, Hugo Claus (pai de Arthur), foi um escritor holandês 24 anos mais velho do que ela.
Sylvia diz: "Será que eu estava procurando um pai? Talvez estivesse em meu subconsciente, mas Hugo não era uma figura paterna -era um grande amante. Ele era mais velho, é verdade, mas era muito juvenil e atlético, praticava caratê todos os dias".
Hugo a incentivou a virar atriz e a fazer um teste para "Emmanuelle". No livro, ela descreve o teste nas seguintes palavras: "Estou usando um vestido tipo lingerie, com alças delicadas; ele chega até a metade de minhas coxas. Sento e sorrio. Tenho 20 anos de idade, com toda a coragem dessa idade e todo seu desejo de conquistar. Aproveito uma pergunta enfadonha sobre meus estudos para levar um ombro para a frente, bem devagar, até uma alça cair, e depois a outra. Continuo a falar. O ar um pouco frio endurece meus seios. Minha descontração aparente dá a impressão de que meu corpo ainda está vestido, embora esteja ali mesmo, diante deles, exposto, nu. O comitê de seleção fica atônito; alguns deles têm a ponta da língua para fora da boca...".
Ela imaginou que "Emmanuelle" jamais seria aprovado pela censura, que nunca chegaria a ser lançado, mas que, já que seria rodado na Tailândia, ela e Hugo poderiam aproveitar para conseguir férias gratuitas.

Sucesso, drogas e falência
Diz que, quando o filme estreou em Paris e viu a fila enorme diante do cinema La Triumph, na avenida Champs-Élysées, ficou totalmente estarrecida.
Além disso, o filme "continuou em cartaz naquele mesmo cinema por 13 anos". Sylvia virou uma grande estrela. Enorme! Era champanhe, gente à sua volta, automóveis Mercedes... Tudo isso virou sua cabeça? Sem dúvida.
Seu maior erro foi deixar Hugo para ficar com Ian McShane, que conhecera no set de "The Fifth Musketeer" [O Quinto Mosqueteiro]. "Essa foi a maior burrice que fiz na vida", diz ela.
Ian se ofereceu para levá-la a Hollywood, e ela gostou da idéia. "Pensei que Hollywood estivesse esperando por mim. Mas não estava." Os filmes que ela fez lá foram sem brilho, "e eu tinha que brigar para ficar vestida".
Seu relacionamento com Ian era explosivo. Eles brigavam muito, atiravam objetos. Bebiam e cheiravam cocaína.
Ela foi a muitas festas de celebridades de primeira linha "onde eu cheirava, bebia, vestia minhas roupas Chanel com forro de seda e caía". Ela engravidou, mas caiu e perdeu o bebê.
Seu chamado de despertar aconteceu quando um médico lhe disse que seu fígado estava estragado e seu contador lhe disse que teria que optar entre ficar com sua casa ou continuar cheirando cocaína.
Ela não podia pagar as duas coisas. Sylvia optou pela casa. Conta que levou seis anos para parar de pensar em cocaína. Infelizmente, porém, a casa ainda não estava segura.
Em 1986 Sylvia se casou com Philippe Blot, um sonhador que se achava um Orson Welles. Ele a convenceu a financiar seus filmes. Um deles foi tão ruim que ficou em cartaz apenas seis dias e foi descrito por um crítico como "o pior filme jamais feito".
Blot a deixou totalmente falida, e Sylvia teve cobradores em seu encalço durante anos.
"Hoje em dia os astros de primeira linha ganham zilhões, mas meu maior honorário foi algo como US$ 300 mil [cerca de R$ 553 mil]... Se eu tivesse sido mais prudente e não tivesse farreado tanto, acho que teria durado um pouco mais."
"Mas foi Philippe quem realmente me levou à falência."
Como ela sobrevive hoje? Sylvia diz que vende alguns quadros. E talvez o livro venda bem. Pergunto se ela às vezes se sente só.
"Bem, às vezes acho que seria agradável...", diz ela, mas então muda de assunto. Então ela fala que tem sua pintura, suas novelas, sua grande panela de macarrão e Arthur, que a visita regularmente. Não é tão ruim.
Mas tem sido uma vida e tanto, comento. É verdade, diz ela.
Nós nos despedimos na rua diante do bar. Eu a observo indo embora e penso que parece cansada, mesmo vista de costas. É isso o que eu acho de Sylvia: acho que está cansada. Deve ser isso que eu vinha tentando identificar desde o início.

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A íntegra deste texto saiu no "Independent". Tradução de Clara Allain.

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