São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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+ sociedade

Assassinatos de moradores de rua em SP apontam a falência da explicação economicista e sublinham o alcance da paixão destrutiva, que se materializa no prazer de matar

O espaço público como ódio

Alba Zaluar
especial para a Folha

No século passado, vários pensadores brasileiros apontavam a rua como abrigo dos miseráveis, impressionados com a facilidade com que pessoas dormiam e viviam nas ruas de nossas cidades tropicais e subtropicais, onde raramente poderiam morrer de frio. Hoje, horrorizados, assistimos ao massacre dos que procuraram a acolhida na rua. O que essa série de assassinatos tem de especial e de aterrorizador? Ao contrário dos homicídios cometidos por motivos diversos e sentimentos variados, esses se movem exclusivamente pelo ódio. Um ódio que não deriva da inveja ou da frustração ou do ressentimento gerado pela vítima, mas de uma categoria de pessoa que é apontada pela ideologia adotada como a razão dos males sociais diagnosticados com a lógica do bode expiatório. Os alvos podem ser muitos. Nos EUA, durante décadas dirigia-se aos negros, mas evoluiu para incluir outros grupos aos quais os perpetradores são hostis, grupos esses baseados no gênero, na orientação sexual, na religião, na incapacidade física ou mental e na condição social de imigrante ou de miserável. Por isso mesmo são chamados de crimes do ódio. Alguns consideram essa classificação redundante, pois as ações feitas, sejam elas agressões verbais ou físicas, vandalismos, assassinatos, já constituem crimes. O que estaria em foco, então, seria o pensamento que presidiu as ações. Na verdade, crimes impelidos pelo ódio criado em idéia preconceituosa são mensagens dirigidas aos demais membros do mesmo grupo para dizer que sumam ou que não são bem-vindos. Daí o seu terror, pois pretendem intimidar, coagir e apavorar os que escaparam dos ataques.

Terrorismo
Seus efeitos são similares aos do terrorismo, que também cria o imprevisível e a incerteza do ataque, que também surpreende as vítimas, impedindo-as de ter meios de defesa ou dificultando a fuga. Por isso mesmo, os crimes do ódio, assim como os do terrorismo, têm efeitos psicológicos mais sérios do que os crimes não motivados pelo preconceito, na medida em que não é mais possível prever o comportamento alheio, portanto deixando de funcionar os parâmetros do perigo e da ordem assim como os fundamentos da confiança, sem a qual não existe vínculo social positivo. Nessas situações é o medo sem direção, isto é, o pânico que prevalece. Mas, diferentemente do terrorismo, seus alvos são sempre determinadas categorias de pessoas e suas ações são pouco planejadas por pequenos grupos de jovens que escolhem afirmar a ideologia pela ação "direta" da violência. No estado atual da arte, as séries de assassinatos de mendigos e meninos de rua destroem o argumento economicista que não deixa enxergar a dimensão do poder, do simbólico e da paixão destrutivos: o triunfo sobre o outro, o orgulho pela destruição do outro, o prazer de ser o senhor da vida e da morte, o gozo no excesso da liberdade dos massacres arbitrários. Wolfgang Sofsky, sociólogo alemão que estudou o terror e escreveu um tratado sobre a violência, narra com crueza o que vem a ser a paixão dos que adquirem o gosto de matar por matar. "Matei e tive prazer nisso" é uma declaração comum aos jovens de orientação neonazista que vêm matando mexicanos, negros, brancos, homossexuais, judeus, muçulmanos, bêbados e mendigos nas cidades localizadas nos mais diversos Estados americanos. De acordo com uma organização não-lucrativa que traça os crimes do ódio, havia mais de 500 grupos operando nos Estados Unidos em 1998. O Centro Simon Wiesenthal, de Los Angeles, monitora ainda mais: há cerca de 2.100 portais do ódio na internet que atacam principalmente os judeus, ficando os muçulmanos em segundo lugar. Mais uma ironia da história que irrompe no país que tem legislação própria para esse crime: o Hate Prevention Act [Ato de Prevenção contra o Ódio], de 1999, que permite a ação penal contra os que cometeram crimes motivados por raça ou cor, religião, orientação sexual, origem nacional ou étnica da vítima e cometidos com a intenção de impedi-la de exercer um direito federal. E quem são os criminosos movidos apenas pelo ódio a uma categoria de pessoa? Não são de grupos políticos que participam do jogo parlamentar, mas de pequenos grupos e organizações secretas divididas em células, às vezes lobos solitários que agem sozinhos ou em pares para afirmar em ação concreta a recusa absoluta a incluir as possíveis vítimas no mundo dos que devem ser preservados ou respeitados. Mesmo estes vêm geralmente de organizações neonazistas que propagam idéias de intolerância e discriminação, espalhando o ódio nas mentes mais jovens. Porque são jovens os que procuram afirmar-se junto de seus pares, tomando iniciativas não programadas pelas organizações a que pertencem, aplicando diligentemente e violentamente suas idéias discriminatórias. Buscam a aprovação dos dirigentes para subir na hierarquia da organização. Buscam o prazer de matar e a glória de ser um guerreiro em uma guerra imaginária. Um jovem americano, Mieske, cuja alcunha é Ken Morte, está encarcerado pela morte de um mendigo. Glorificado por sua organização como prisioneiro de guerra, Mieske escreveu um poema chamado "Violência sem Sentido", uma reflexão sobre suas experiências: "Alinhe-os contra uma parede,/ Fuzile-os e observe-os morrendo./ Adoro ouvir sua agonia:/ Eles vomitam, gritam e choram".

Crime hediondo
No Brasil não se tem nem o conhecimento nem o controle das organizações neonazistas, mesmo aquelas que são identificadas apenas como grupos de estilos de vida ou de lazer juvenis. Também não há uma classificação específica para esse tipo de crime, que não é considerado hediondo. Espanta a audácia dos que perpetram o assassinato de mendigos na maior cidade brasileira. A repercussão de seus crimes nos jornais do país, as manifestações de repúdio vindas de muitas partes, as declarações firmes de autoridades, os cuidados com os sobreviventes, nada disso tem impedido a continuidade do morticínio. O ovo da serpente tem que ser destruído com a punição legal de seus autores. A investigação inteligente vai desmantelar as organizações que espalham o ódio nos corações e mentes juvenis e os levam a cometer tais atrocidades.
Mas a prevenção contra a intolerância religiosa, étnica, racial, de orientação sexual e de origem geográfica e cultural dos migrantes deve fazer parte do currículo escolar nas cidades e regiões metropolitanas, como São Paulo, caracterizadas pela diversidade de seus habitantes. Só propalando a tolerância neutraliza-se o ódio e o preconceito. E só assim se pode ser cidadão de uma cidade cosmopolita.


Alba Zaluar é antropóloga e coordenadora do Núcleo de Pesquisa das Violências, ligado ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autora de "Integração Perversa - Pobreza e Tráfico de Drogas" (ed. FGV).


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