São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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Ponto de fuga

Repulsa e atração

Jorge Coli
especial para a Folha

Numa sala de cinema, em Paris, a platéia aplaude o final de "Fahrenheit 11 de Setembro", que conclama a uma posição contra George W. Bush.
Nunca a Palma de Ouro teve um sentido tão diretamente político. Era menos coroar um filme do que intervir diretamente nas eleições para a presidência dos EUA. Só os norte-americanos podem votar num líder cujas decisões terão um enorme peso internacional; parece legítimo, para o resto do mundo, tentar, como fez o júri de Cannes, por algum meio, influir nessa escolha.
A discussão sobre a excelência cinematográfica de "Farenheit 11 de Setembro" é bem secundária; a crítica já listou suas qualidades e defeitos. Resta o fato de que Michael Moore, o diretor, explora um sentimento que percorre o planeta, forte e difuso, de antipatia generalizada contra seu país. Bush encarna, nos piores atributos, a imagem preconceituosa desenhada sobre os americanos.
O novo filme do realizador egípcio Youssef Chahine, "Alexandria... New York", ao contrário, tece laços entre as diferenças. Autobiográfico, enfrenta a aversão instintiva e o amor inevitável provocados pela cultura americana. É verdade que expande os sentimentos no tempo e opõe a elegância antiga de Fred Astaire à brutalidade contemporânea de Stallone. Mas não esconde um fascínio egípcio pela cultura do Ocidente, recusando afirmar qualquer raiz oriental. Num jogo irônico, faz os americanos falarem árabe, como os árabes, nos filmes americanos, falam inglês. As contradições brotam a cada passo... de dança, pois se trata de um musical. Tudo é muito kitsch e bastante narcisista, mas ferve de energia e de sensibilidade à flor da pele.

Origens - Godard tem invenções esplêndidas, dirigiu obras insuperáveis, como "O Desprezo" (1963). Lembra, no entanto, a mulher de César, que não devia apenas ser virtuosa, mas, ainda, parecer virtuosa. Godard não se contenta em ser gênio, quer parecer gênio também, o tempo todo, em seus filmes e fora deles. Certas seqüências estéreis na tela, certas declarações superficiais e inconseqüentes, de sua autoria, devem sempre ter um jeito genial e brilhante. Vem repetindo que os cidadãos dos EUA não têm nome. "Americano não quer dizer nada: os mexicanos e os brasileiros são também americanos. (...) Não é espantoso que um país cujos habitantes não têm nome sinta necessidade da História dos outros." Porque não têm nome, os americanos "não têm raízes, não vêm de lugar nenhum, e isso lhes dá medo". "Não possuindo uma longa História, devem buscar (sua origem) nos outros." Foi por causa disso que invadiram o Vietnã e o Iraque. Ótimo raciocínio, tão original e tão esperto.
Preconceito por preconceito, pode-se tentar aplicá-lo a outro lugar. À Suíça, por exemplo, já que todo gênio desse país adere a uma nacionalidade cultural de empréstimo, renegando a sua própria. Klee tornou-se alemão; franceses tornaram-se Rousseau, Le Corbusier e Jean-Luc Godard. Assim, seria justo considerar como verdadeira a tirada de "O Terceiro Homem", filme de Carol Reed: "O que a Suíça produziu em 500 anos de democracia? O relógio cuco".

Maluco - Medo, cada um sente de um jeito. Então, lá vai: "Audition" (2000) é o filme mais aterrador jamais realizado. Insustentável ao olhar. Seu diretor, o japonês Takashi Miike, foi capaz de dirigir seis filmes num ano, façanha rara desde os tempos de Roger Corman. "Gozu" é de 2003. Não assusta. Cria um labirinto onde se escondem personagens e situações as mais grotescas, absurdas, hilariantes e angustiantes ao mesmo tempo. Miike é o único realizador que merece, hoje, em plenitude e profundidade, o epíteto de surrealista.

Bons - A crítica cinematográfica anda tão mal-humorada que desanima. Torceram o nariz para uma delícia de comédia, "Mulheres Perfeitas", de Frank Oz. Sobretudo, desprezaram "Eu, Robô", filme inteligente, muito belo, de ritmo seguro e leve. Alex Proyas, que o dirige, é o autor do admirável e mítico "O Corvo", no qual Brandon Lee foi morto acidentalmente por uma arma que não deveria estar carregada com balas verdadeiras.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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