São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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O MAPA DAS TENSÕES


Exposição interdisciplinar na Alemanha debate as motivações religiosas, políticas e estéticas da iconoclastia ao longo da história da arte


Lucia Leão
especial para a Folha

As guerras das imagens estão por toda a parte: da aniquilação da estátua do Buda pelos talebans às frequentes sobreposições e destruições de cartazes e faixas nas campanhas políticas. Nossas ruas e olhos testemunham esses combates cujo objetivo duplo envolve manter a imagem do candidato visível e destruir a imagem do adversário. Os conflitos das imagens e suas manifestações nas ciências, nas artes e nas religiões foram tema da instigante exposição internacional "Iconoclash", que ocorreu no ZKM (Centro de Arte e Mídia de Karlsruhe), na Alemanha, entre 4/5 e 1º/9. No time interdisciplinar de curadores estavam o antropólogo francês Bruno Latour, Peter Weibel, Peter Galison, Dario Gamboni, Joseph Leo Koerner, Adam Lowe e Hans Ulrich Obrist. Além da exposição, o projeto incluiu também a elaboração de um livro ["Iconoclash", org. de Bruno Latour e Peter Weibel, MIT Press, 700 págs., US$ 45". Vamos começar pelo título do projeto: "Iconoclash" e não "iconoclasm" (iconoclasmo). Enquanto iconoclasmo nos fala da atitude dos iconoclastas -destruidores de imagens-, o conceito de iconoclash vai mais além. Formada pela junção de "icon" (ícone) e "clash" (oposição frontal, radical), o projeto da exposição busca mapear conflitos e tensões entre imagens. Nas artes, presenciamos o surgimento de poéticas que questionam a necessidade de representação. Com o advento da câmera fotográfica, os pintores puderam se libertar da obrigação de mímesis da realidade e, num ato de iconoclastia, como diz Peter Weibel, passaram a desprezar a função representativa da imagem. Nessa linha de investigação estão, entre outros, os artistas presentes na mostra Marcel Duchamp e Malevich. Nas religiões, a relação de amor e ódio pelas imagens vem de longa data. Território complexo e contraditório, as relações entre imagens e religião são permeadas por posturas diametralmente antagônicas. Para alguns, a verdade e o absoluto podem ser alcançados diretamente, sem intermediários, e, portanto, sem ícones. Para outros, o sagrado só pode ser alcançado por intermédio da imagem. Num terceiro domínio, o científico, as imagens nunca foram tão poderosas como nos dias atuais. Basta pensarmos na multiplicidade de instrumentos que se utilizam da visualização de imagens: raios X, tomografias, ressonâncias magnéticas etc. O conceito que atravessa "Iconoclash" se revela nas escolhas das obras. Num primeiro bloco, vemos várias obras que focam ou comentam a questão da iconoclastia. Na obra "No Sabe Lo Que Hace", de Goya (1814-17), vemos um homem com rosto insolente sobre uma escada, segurando um machado. Seu indicador indica o canto direito, onde vemos apenas um pedaço de um pedestal. O homem ocupa quase a totalidade do papel. No canto inferior direito, um pedaço de escultura quebrado repousa no chão. O título ("Não Sabem O Que Fazem") é uma referência bíblica e reforça o barbarismo da atitude. A guerra das imagens que acompanhou a Revolução Francesa incluiu a destruição de todas as obras que evocavam o poder do Antigo Regime. Assim, obras com imagens da aristocracia e do clero passaram a representar ofensas aos ideais republicanos. Um desenho de Lafontaine nos mostra Alexandre Lenoir, arquiteto do Antigo Regime, lutando para evitar a destruição das tumbas reais de Saint-Denis.

Interação com o ícone
Como representante contemporâneo da iconoclastia, há a instalação interativa "ExAltarcation", dos húngaros Richard Aczel, Márton Fernezelyi, Robert Koch e Zoltán Szegedy-Maszák. "ExAltarcation" apresenta uma simulação na qual o visitante interage na transformação de um ícone. A instalação lembra um altar e contou com a utilização de recursos digitais e imagens em 3D.
Nesse segundo bloco, vemos obras que representam atos de iconoclasmo. A tese desenvolvida por Koerner é que os destruidores de imagens acabam por se tornar fazedores de outras imagens. Com vários exemplos extremamente pertinentes, a exposição nos mostra obras que documentam os atos de iconoclastia dos protestantes. Nas operações de "limpeza" das igrejas vemos remoções, quebras e degradações de crucifixos, imagens de santos e outras relíquias católicas. Na mostra, desenhos e gravuras do século 16 e 17 mostram esses atos de aniquilamento de imagens.
O paradoxo da negação se revela monstruoso na obra do belga Marcus Gheerhaerts, o Velho, "Allegorie des Ikonoklasmus" (1566-68). Vista de perto, essa gravura exibe cenas consideradas como idolatria pelos protestantes. Quando nos afastamos um pouco, percebemos que os desenhos acabam por compor um rosto perverso e desfigurado. Na boca do monstro vemos uma cena de eucaristia, e seu semblante tem um olho só. Assim, a imagem assombrosa, o ícone criado, é um ser artificial, um frankenstein-colagem de ícones.
O poder das imagens se revela no fechamento do ciclo composto por fascínio/destruição/documentação da destruição/restauração. Nesse sentido, museus e curadores acabam por se tornar responsáveis por essa reatualização do ícone destruído, gerando novamente um fascínio do ícone, o que dará início a um novo ciclo.
Das obras expostas, "Electric Labyrinth", de Arata Isozaki [arquiteto japonês (1931)], é a que sintetiza melhor esse ciclo. "Labirinto Elétrico" é uma instalação multimídia que foi concebida originalmente para a Trienal de Arquitetura de Milão de 1968. O projeto faz referências às ruínas de Hiroshima e envolveu a colaboração de músicos, fotógrafos e artistas gráficos. O labirinto é composto por 12 painéis móveis e superfícies espelhadas. No entanto, em 1968, a trienal foi invadida e tomada por uma onda de protestos que culminaram na ocupação e destruição das obras. Paredes foram pichadas e a trienal jamais foi aberta ao público.
Observando as fotografias da trienal ocupada, seu grito de aniquilamento de ícones é evidente. Ter uma das obras da trienal reconstituída e apresentada na exposição "Iconoclash" é testemunho da infinitude dos processos cíclicos na guerra das imagens.


Onde encontrar Mais informações sobre a exposição "Iconoclash" podem ser obtidas no site www.zkm.de


Lucia Leão é artista e professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autora de "A Estética do Labirinto" (ed. Anhembi Morumbi) e "O Labirinto da Hipermídia" (Iluminuras).


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