São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

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+ Teatro

Lavando a roupa suja

O dramaturgo Tony Kushner fala sobre o contundente "Caroline ou Troco", musical que tem com como protagonista uma empregada doméstica negra

PAUL TAYLOR

Estreou recentemente no West End de Londres um musical no qual a heroína é verde. Agora, está pronto a estrear no National Theatre um musical em que a heroína é negra. "Caroline, or Change" [Caroline ou Troco] é um trabalho infinitamente mais ousado do que "Wicked" [Perversa].
Neste último, a cor que distingue a futura Bruxa Malvada do Oeste é usada como símbolo de qualquer espécie de "diferença" que faça com que uma maioria trate mal as suas minorias. Assim, no material publicitário, há uma citação de um espectador que vê, na experiência da heroína, "a história da experiência afro-americana nos EUA".
Mas essa percepção é questionável porque o tom de pele da heroína parece ser exclusivo dela, enquanto ser negro nos EUA é fazer parte de uma comunidade que seria insultuoso retratar como monolítica.
Tal como "Caroline ou Troco" reconhece e dramatiza, existem diferenças de opinião sobre que métodos empregar para promover mudanças.
A ação se passa em 1963, na Louisiana, e conta a história em parte autobiográfica do relacionamento entre um menino judeu, cuja mãe morreu e cujo pai havia se casado de novo pouco tempo antes, e Caroline, a empregada negra que cuida da lavanderia para a família. "Change", no título, é um trocadilho, pois se refere tanto a mudança quanto às moedas que o menino esquece nos bolsos, para grande irritação de sua madrasta nova-iorquina.

Truque astucioso
Ela propõe um jogo segundo o qual Caroline pode ficar com qualquer moeda que encontre nos bolsos do menino. É um truque astucioso, ainda que talvez haja propósitos mais sombrios do que a madrasta percebe, e não parece propício à promoção de um relacionamento melhor entre os privilegiados e os excluídos, os brancos e os negros.
Conversei com Kushner no intervalo dos ensaios. O autor da mais importante peça dos anos 90, "Angels in America", e do roteiro do recente "Munique", de Steven Spielberg, pode ser o dramaturgo mais talentoso de sua geração, mas não parece pretensioso.
Ostentando um aspecto bem mais jovial do que seus 50 anos de idade indicariam, Kushner é cortês, despretensioso e prodigiosamente articulado.
No momento, está escrevendo dois roteiros, um sobre o dramaturgo Eugene O'Neill [1888-1953] e outro passado na Guerra Civil Americana, "quando os negros podiam combater pela União, mas ainda assim teriam de esperar mais cem anos -ainda que as fundações legais da defesa de seus direitos já existissem- antes que pudessem se considerar cidadãos plenos".
Ele também está trabalhando em uma peça épica que aparentemente tem por objetivo dar aos EUA da era Bush o mesmo tratamento que "Anjos na América" deu à era Reagan. Conversamos sobre a maneira como "Caroline ou Troco" deliberadamente subverte as expectativas. O libreto é dedicado a Maudie Lee Davis, a empregada negra da família Kushner quando Tony era menino.

Sem redenção fácil
Mas Caroline tem atributos e uma disposição que o escritor inventou. "Acredito que, para os norte-americanos, a imagem do menino branco e da mulher negra vestida de empregada crie uma expectativa imensamente poderosa... De que a peça seja uma história de mãe substituta, sobre um menino branco solitário que é criado e ajudado por uma negra. E é exatamente isso o que Caroline se recusa a fazer."
E o trabalho não procura redenção fácil ou emoções primárias e tampouco oferece uma solução simples para um problema complexo. Se existe esperança no final, ela não vem (como seria de esperar) do personagem-título, mas sim de Emmie, a filha mais nova de Caroline, que indica um futuro de ativismo e defesa firme de princípios.
O tratamento do dinheiro por Kushner como um meio de troca emocional e política é igualmente aguçado e distante da prática mais comum em nossa era.
"Se existe muito dinheiro em algum lugar, é porque existe escassez dele em algum outro. O dinheiro tem um significado moral. O neoconservadorismo convenceu as pessoas de que não há nada a questionar sobre o dinheiro, a não ser a procura de maneiras de ganhar o máximo possível e de como proteger do governo a maior parte possível do que se tem." Agora há trabalho a fazer para concluir seu épico teatral sobre a era Bush.
Kushner está considerando a possibilidade de criar "duas verões de Laura Bush que resolvem as diferenças no tapa". Em um extrato publicado do trabalho, a primeira-dama critica ferozmente os intelectuais liberais e de esquerda: "Vocês são todos um bando de tontos.
Um grupo de sujeitos chorosos que ainda não descobriram em que gaveta de meias guardar toda essa miséria e decepção pessoal e toda essa culpa". Seria uma deliciosa ironia que um dos melhores dramaturgos da história do teatro americano imortalizasse literariamente a mulher de um dos piores presidentes que o país já teve (ou, mais precisamente, a versão hilariante que sua pena criou para ela).


Este texto foi publicado no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.


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