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Sementes da concórdia
Técnica usada no plantio
de soja e na semeadura das
pastagens se tornou decisiva para o sucesso do projeto de reflorestamento da vegetação ciliar do Médio Xingu
Ayrton Vignola/Folha Imagem
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Índia limpa sementes de "purumu" na aldeia icpengue Moigu
MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL AO XINGU (MT)
Aracá, um icpengue
de idade avançada e
indefinida, chega
com expressão grave no rosto pintado
de urucum à casa de Rosana
Gasparin na aldeia Moigu, a
uma centena de metros do rio
Xingu. "Devagar, devagar", diz
em português, após trocar poucas palavras em sua língua com
a geógrafa. "Amanhã levar câmera onde trabalho, mato.
Agora, dançando."
A sintaxe pode soar hesitante, mas não falta autoridade ao
guerreiro, um dos poucos por
ali nascidos antes de 1964, data
da expedição de contato com
os "txicões", como eram chamados. É uma ordem para que
os repórteres da Folha se abstenham de fazer entrevistas e
fotografar naquele dia de festas, 12 de outubro, uma segunda-feira.
Gasparin, desde 1996 trabalhando para o Instituto Socioambiental (ISA), oito anos
como educadora no Parque Indígena do Xingu (PIX), recomenda obedecer.
Não custa esperar, depois de
quatro dias de negociação para
entrar no PIX. Um bom banho
de rio contribui para diluir a
frustração.
Só no dia seguinte, portanto,
seria possível acompanhar o
trabalho das mulheres icpengues na coleta de sementes para a campanha Y Ikatu Xingu.
O nome quer dizer "água boa
e limpa do Xingu" em língua
camaiurá, uma das 19 etnias
presentes nos cerca de 500 mil
km2 da bacia hidrográfica.
As sementes recolhidas pelas
mulheres serão vendidas para
agricultores recuperarem matas ciliares -vegetação que
protege os rios como cílios protegem os olhos- destruídas a
centenas de quilômetros dali.
Quando as florestas plantadas crescerem, talvez em duas
décadas, ajudarão a proteger
nascentes. Estas, por sua vez,
manterão o Xingu fluindo, como sempre, a poucos metros
das casas de troncos e palha de
inajá da aldeia Moigu.
"Ikpeng", na grafia favorecida pelos antropólogos, significa
"marimbondo" em língua icpengue. Uma gente que tem fama de brava e costumes enigmáticos para não índios.
Aracá é o nome atual de Melobô, que também já foi Maion
-nomes que foi cedendo para
os netos que iam nascendo, como manda a norma.
Antes de serem trazidos ao
PIX pelos irmãos Villas Bôas,
nos anos 1960, os icpengues tomavam de outras tribos uma
criança para cada pessoa que
morria na sua.
A prática quase provocou a
extinção desse povo, porque a
reação dos uaurás -etnia que
tinha contato com brancos e
armas de fogo- ao último sequestro se transformara numa
guerra de extermínio.
No parque, a tradição foi
abandonada em favor de uma
política de boa vizinhança e
matrimônios interétnicos. Em
Moigu ainda vive a última vítima, Kamiru, uaurá casada com
o icpengue Managü.
Uma semente, um centavo
Sentada no chão de uma das
12 casas da aldeia, já na manhã
de terça, Kamiru corta o invólucro sedoso que forma as asas
das sementes de carvoeiro -ou
"alapá", na língua icpengue.
Do tamanho de uma lentilha,
as sementes possuem asas para
se alastrarem com o vento, mas
precisam ser cortadas para que
a germinação ocorra no tempo
dos homens. Kamiru reclama
que os dedos doem e as tesouras quebram.
Cálculo não confirmado sugere que são necessárias 17 mil
sementes para inteirar um quilo. Pelo menos dez dias de trabalho, indica Kamiru, apontando para os dedos dos pés, como
quem conta. Cada quilo é vendido à Y Ikatu Xingu por
R$°200, pouco mais de um centavo por semente limpa.
Com esse dinheiro, dá para
comprar muitas tesouras, lanternas (o trabalho ocorre à noite), bacias, panelas, vestidos e
chinelos de dedo.
Kamiru, no entanto, tem planos mais ambiciosos para a atividade que hoje envolve todas
as mulheres da aldeia pegada
ao posto Pavuru. Na tradução
do agente de manejo indígena
Furigá: "É importante receber
dinheiro, mas com o que recebe
quer comprar carro, caminhonete, trator".
Sua ideia parece bem popular
entre as dezenas de mulheres
que acompanhamos, à tarde,
durante a coleta, literalmente
no caminho da roça (o veículo
ajudaria a trazer a carga na volta, em geral mandioca).
A cada pé de carvoeiro ou leiteiro, bastam poucos minutos
para catar todas as sementes do
chão. As mais jovens trepam
nas árvores e derrubam mais
sementes. Os icpengues são o
grupo mais produtivo da rede
de coleta montada pela campanha Y Ikatu Xingu.
O trato para o semestre era
que colhessem 10 kg de alapá
(carvoeiro) até o fim deste mês,
o que devem cumprir com folga, informa Furigá -um dos
três jovens que falam bem português e se encarregam de organizar os contatos com a rede.
O trabalho de coleta e limpeza das sementes é reservado às
mulheres, embora outro jovem,
Waygué, tenha recebido da Y
Ikatu Xingu treinamento de rapel para alcançar as sementes
de carvoeiro nos galhos mais altos. A demonstração de escalada, na véspera da partida dos
repórteres, se transforma em
um acontecimento.
Enquanto Waygué prepara as
cordas e mosquetões, mulheres, homens e crianças se aproximam do pé de alapá escolhido, na entrada da aldeia.
São 18h30, mas o calor ainda
é forte. Muitos já trazem no
ombro a toalha e a saboneteira
na mão, para o segundo ou terceiro banho do dia no Xingu.
Água Boa, Água Limpa
A mais de 300 km dali, em linha reta, fica o município de
Água Boa. É um dos quatro centros de atuação da campanha Y
Ikatu Xingu no leste de Mato
Grosso, com um orçamento
anual de R$ 600 mil.
Os outros são Canarana,
Querência e São José do Xingu,
todos em região de expansão
acelerada da soja e da pecuária.
Cerca de 60 mil km2 da mata
de transição entre cerrado e
floresta amazônica já foram
destruídos, ou 33% da cobertura da bacia.
Desses 60 mil km2, 2.300 km2
atingiram as matas ciliares que
abrigam boa parte das 22.525
nascentes mapeadas, como as
dos rios Sete de Setembro e
Tanguro, na vizinhança de
Água Boa, afluentes do Culuene, grande tributário do Xingu.
A 67 km da sede do município fica o Projeto de Assentamento Jaraguá, junto ao córrego Água Limpa. Só metade dos
400 lotes de 45 a 60 hectares
delimitados pelo Incra [Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária] estão de fato
ocupados, o suficiente porém
para dizimar a mata ao longo
do riacho.
"Se a gente não tomar cuidado, em cinco anos vai faltar
água no PA Jaraguá", preocupa-se Laércio Mariano da Cruz,
um goiano que já presidiu o
Sindicato de Trabalhadores
Rurais de Água Boa, há dez
anos no assentamento.
"Sem água, nós vamos morrer queimados", afirma, enquanto caminha entre pés de
pequi-do-xingu e de castanha
baru, alguns com pelo menos
três metros de altura, a poucos
passos do córrego.
É uma das agroflorestas mais
antigas plantadas com ajuda da
campanha Y Ikatu Xingu (embora Cruz já tivesse plantado
várias árvores anos antes), em
2006. As 350 sementes de pequi fornecidas pela então incipiente rede criada pelo Instituto Socioambiental foram plantadas de metro em metro, tentativamente, em consórcio
com culturas tradicionais como milho e mandioca.
O assentado conta que capivaras e tatupebas acabaram
com o milho e a mandioca, mas
que os pequis plantados com
sementes deram frutos um ano
antes dos plantados com mudas. Antes, porém, foi preciso
cercar a área na beira do rio
com o arame também doado
pelo ISA, de modo a impedir a
entrada do gado. O trabalho envolveu 40 famílias, que hoje coletam sementes para a campanha Y Ikatu Xingu.
Depois do almoço para três
dezenas de integrantes da comitiva da Y Ikatu Xingu, assentados começam a trazer sementes para pesar e vender.
Laércio Cruz comparece
com 8 kg de carvoeiro, 2,7 kg de
jatobá, 1,6 kg de aroeira-goiana... Só de carvoeiro, R$°1.600
de renda extra.
Não param de chegar sacas e
saquinhos, até que o biólogo
Eduardo Malta, coordenador
da campanha, se vê obrigado a
interromper o alarido anunciando que o combinado era
comprar só as sementes de
Cruz e na quantidade previamente acertada.
Sementes x mudas
Fica evidente para qualquer
pessoa em visita à região que a
coleta de sementes de espécies
arbóreas nativas constitui excelente alternativa de vida, dado seu alto valor.
A rede tenta organizar e disciplinar esse comércio, mas a
alta demanda pode facilmente
inflacionar os preços. Só no
município de Canarana há 30
mil hectares (300 km2) de áreas
de preservação permanente,
como as matas ciliares, para recompor -embora só 86 hectares estejam de fato em recuperação em 2009.
A procura em alta decorre do
sucesso que a técnica de recomposição em desenvolvimento pelo ISA e seus parceiros vem alcançando. Cerca de
mil hectares já foram replantados pela campanha em projetos-piloto, que, no entanto,
abrangem menos de uma centena das 15 mil propriedades
rurais da bacia do Xingu.
Se a tecnologia vingar, é de se
supor que a demanda por sementes explodirá. Em 560 hectares monitorados de perto pela campanha, já se verificou a
presença vigorosa de 51 espécies arbóreas da região.
Na base da técnica está o
abandono do método tradicional de plantio com mudas. Dada a onipresença de capins tropicais agressivos de origem
africana, como braquiária, as
mudas acabam sufocadas.
Agrônomos e biólogos da
campanha optaram então por
fazer o plantio direto com sementes de várias espécies misturadas, a chamada "muvuca",
combinando árvores nativas do
cerrado e da mata de transição
com plantas exóticas de crescimento rápido, como feijão-guandu e feijão-de-porco.
A ideia é imitar o processo de
sucessão florestal. As plantas
que crescem primeiro, como os
dois tipos de feijão, têm a função de dar a sombra que vai inibir o crescimento do capim e
evitar a exposição excessiva
das plântulas que brotarem das
sementes de árvores.
Em alguns meses, o feijão
morre e fornece adubo natural
para o solo. Depois virão espécies arbustivas, ou árvores de
pequeno porte, que fornecerão
abrigo para aquelas de crescimento mais lento e porte
maior, e assim por diante.
Um dos segredos da experiência em curso no Xingu é
utilizar as máquinas e técnicas
normalmente empregadas pelos agricultores e pecuaristas
para trabalhar a terra, como semeadoras e lançadoras de sementes. Plantam-se florestas
como se planta soja e semeiam-se pastagens.
O outro segredo é lançar mão
também de um "muvuca de
gente", de índios a latifundiários, de assentados a ambientalistas, como diz a secretária de
Agricultura e Meio Ambiente
de Canarana, a agrônoma Eliane de Oliveira Felten: "Um,
pondo o dedo na cara do outro,
nunca ia conseguir nada".
Os repórteres Ayrton Vignola e Marcelo Leite
viajaram pela bacia do Xingu com apoio logístico
parcial (transporte e hospedagem) do Instituto
Socioambiental e da Fazenda Bang Bang.
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