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+(s)ociedade
O Google e o futuro do livro
HISTORIADOR AFIRMA QUE DIGITALIZAÇÃO NÃO SUBSTITUI
AS BIBLIOTECAS E DIZ QUE EMPRESAS PRIVADAS
NÃO DEVEM OCUPAR O ESPAÇO DO ESTADO NESSE SETOR
ROGER CHARTIER
Digite "google" no
serviço de pesquisas Google, em
www.google.com:
a tela indicará a
presença da palavra, e da coisa,
em "mais de 400 milhões" de
documentos. Se o sacrilégio
não o incomoda, repita a operação e digite "dieu" [deus, em
francês]: "cerca de 33 milhões"
documentos serão propostos
como retorno.
A comparação basta para
compreender por que, nos últimos meses, todos os debates
sobre a criação de coleções digitais de livros vêm sendo fortemente influenciados pelas iniciativas incessantes da empresa californiana.
A mais recente é o lançamento [previsto para 2010] da livraria digital paga Google Editions, que explorará comercialmente parte dos recursos acumulados pelo Google Books.
A obsessão pelo Google, por
mais legítima que seja, pode resultar no esquecimento de certas questões fundamentais
acarretadas pela digitalização
de textos existentes em outra
mídia, impressa ou manuscrita.
Essa operação serve como
fundamento à criação de coleções digitalizadas que permitirão acesso remoto aos acervos
preservados pelas bibliotecas.
Aqueles que considerarem
inútil ou perigosa essa extraordinária possibilidade que está
sendo oferecida à humanidade
serão decerto insensatos.
Mas nem por isso devemos
perder a sensatez.
A transferência do patrimônio escrito de um meio para outro já teve precedentes. No século 15, a nova técnica de reprodução de textos foi colocada a
serviço dos gêneros que então
dominavam a cultura dos manuscritos: manuais de escolástica, compilações enciclopédicas, calendários e profecias.
Nos primeiros séculos da
nossa era, a invenção do livro
que continua a ser o nosso, em
formato códice, com suas folhas, suas páginas e seus índices, acolheu em um novo objeto
as escrituras cristãs e as obras
dos autores gregos e latinos.
A história não ensina lição
nenhuma, apesar do lugar-comum em contrário, mas, nesses
dois casos, ela aponta para um
fato essencial à compreensão
do presente, a saber: que um
"mesmo" texto deixa de ser o
mesmo quando muda o suporte
sobre o qual está inscrito e, com
isso, suas formas de leitura e o
sentido que lhe venha a ser atribuído por novos leitores.
As bibliotecas sabem disso.
Cabe lembrar que proteger,
catalogar e permitir o acesso
aos textos continua a ser tarefa
essencial das bibliotecas, e isso
inclui oferecer acesso a todas as
formas sucessivas ou concomitantes nas quais os leitores do
passado os tenham lido.
Essa é a primeira justificação
da existência das bibliotecas,
como instituição e como local
de leitura.
Memória das formas
Mesmo supondo que os problemas técnicos e financeiros
da digitalização venham a ser
resolvidos e que todo o patrimônio escrito possa vir a ser
preservado em forma digital, a
conservação e comunicação
das formas anteriores de suporte não se tornará menos necessária.
Pois o que é essencial, aqui, é
a profunda transformação que
veremos na relação entre fragmento e totalidade.
Pelo menos até os nossos
dias, no mundo eletrônico, é a
mesma superfície iluminada da
tela dos computadores que propicia a leitura dos textos, todos
os textos, quaisquer que sejam
seus gêneros e funções.
Rompe-se, assim, a relação
que, em todas as culturas escritas anteriores, ligava estreitamente os objetos, os gêneros e
os usos.
Foi essa relação que organizou as diferenças imediatamente percebidas entre os diversos tipos de publicações impressas e as expectativas de
seus leitores -guiadas pela
própria materialidade dos objetos que transmitem essas diferenças.
Já no mundo da textualidade
digitalizada, o discurso não se
inscreve mais nos objetos, algo
que permitia que eles fossem
classificados, hierarquizados e
reconhecidos em sua identidade própria.
Temos um mundo de fragmentos descontextualizados,
justapostos, indefinidamente
reconstituíveis, sem que seja
necessária ou desejável a compreensão da relação que os inscrevia na obra da qual tenham
sido extraídos.
Seria possível objetar que a
situação sempre foi essa na cultura escrita, construída em larga medida e por largo período
com base em coletâneas de extratos, de antologias de lugares-comuns, de trechos seletos.
Certo. Mas, na cultura da mídia impressa, o desmembramento dos escritos é acompanhado pelo seu oposto: sua circulação em formas que respeitam sua integridade e, ocasionalmente, os reúnem em forma
de "obras" -completas ou não.
Além disso, no livro em si, os
fragmentos são necessária e
materialmente integrados a
uma totalidade textual, reconhecível como tal.
Diversas consequências decorrem dessas diferenças fundamentais.
A própria ideia de revista se
torna incerta, porque a consulta aos artigos já não está ligada
a uma lógica editorial que se
torna visível pela composição
de cada número, mas, sim, que
se organiza a partir de uma ordem temática de rubricas.
E é certo que as novas maneiras de ler, descontínuas e segmentadas, se enquadram mal
às categorias que regiam o relacionamento entre leitores e
textos.
São exatamente essas propriedades fundamentais da
textualidade digital e da leitura
diante de uma tela que o projeto comercial do Google pretende explorar.
O mercado da empresa é o da
informação. Os livros, como todos os demais recursos digitalizáveis, constituem uma imensa
jazida da qual é possível realizar extrações.
Lucro
Daí decorre a percepção imediata e ingênua de todo livro, de
todo discurso, como um banco
de dados que fornece "informações" àqueles que as procuram.
Satisfazer essa demanda e
extrair um lucro é o primeiro
objetivo da empresa californiana, e não construir uma biblioteca universal à disposição da
humanidade.
E o Google não parece estar
bem equipado para a tarefa, a
julgar pelos múltiplos erros de
datação, classificação e identificação cometidos durante a extração automática de dados.
Essa descoberta genial de um
novo mercado, em permanente
expansão, e as proezas técnicas
que deram ao Google um quase
monopólio sobre a digitalização em massa garantiram o
grande sucesso e os copiosos
benefícios dessa lógica comercial. Ela supõe a conversão eletrônica de milhões de livros,
entendidos como uma mina
inesgotável de informações.
E exige, em consequência,
acordos, já realizados ou ainda
por vir, com as grandes bibliotecas do mundo.
Mas também um processo de
digitalização em larga escala,
pouco preocupado com o respeito aos direitos autorais, e a
formação de um gigantesco
banco de dados, capaz de absorver outros bancos de dados e de
arquivar informações pessoais
sobre os internautas que utilizam os múltiplos serviços oferecidos pelo Google.
Os representantes da companhia americana percorrem o
mundo e as conferências para
proclamar suas boas intenções:
democratizar a informação,
tornar acessíveis livros indisponíveis, remunerar corretamente as editoras e autores.
E assegurar a conservação,
"para sempre", de obras ameaçadas pelos desastres que podem afetar as bibliotecas.
Essa retórica de serviço público e de democratização universal não basta para rebater as
preocupações causadas pelos
empreendimentos do Google.
Em artigo para o "New York
Review of Books" (12/2/09) e
em livro publicado recentemente, "The Case for Books
-Past, Present and Future"
[Defesa dos Livros - Passado,
Presente e Futuro, ed. Pub-
licAffairs, 240 págs., US$°23,95,
R$°41], o historiador Robert
Darnton apela aos ideais do iluminismo para alertar contra a
lógica do lucro que orienta as
empreitadas do Google.
É fato que, até o momento,
continua a haver uma clara distinção entre as obras caídas em
domínio público, disponíveis
gratuitamente via Google
Books, e os livros protegidos
por direitos autorais, órfãos ou
não, cujo acesso e aquisição, via
Google Editions, são pagos.
Mas nada garante que no futuro a empresa, dada sua situação monopolista, não venha a
impor preços consideráveis pelo acesso, a despeito de sua
ideologia do bem público e do
acesso público hoje oferecido.
Compromissos
Não se pode esquecer que já
existe um vínculo entre os
anúncios publicitários, que garantem os consideráveis lucros
do Google, e a hierarquização
de "informações" que resulta
de cada busca nesse site.
Além disso, em numerosos
casos, a utilização pelas bibliotecas de suas próprias coleções,
digitalizadas pelo Google (mesmo quando se trata de obras de
domínio público), está sujeita a
condições completamente inaceitáveis, tais como a proibição
de explorar os arquivos digitalizados por algumas décadas ou
de uni-los aos arquivos de outras instituições.
E há outro segredo completamente inaceitável: o que envolve as cláusulas dos contratos
assinados entre a empresa e cada biblioteca.
A justa reticência diante de
uma parceria assim arriscada
tem diversas consequências.
Para começar, é preciso exigir que o financiamento público a programas de digitalização
esteja à altura das necessidades, dos compromissos e das
expectativas de que os Estados
não transfiram a empresas privadas a responsabilidade pelos
investimentos culturais de longo prazo que lhes cabem.
Também é necessário decidir
prioridades, sem necessariamente imaginar que todo "documento" deva ser digitalizado.
A obsessão, talvez excessiva e
indiscriminada, pela digitalização não deve mascarar um outro aspecto da "grande conversão digital", para retomar a expressão do filósofo Milad
Doueihi. Essa escrita palimpséstica e polifônica, aberta e
maleável, infinita e móvel confunde as categorias que, desde o
século 18, servem como fundamento à propriedade literária.
Essas novas produções escritas, muitas das quais digitais já
de origem, propõem a difícil
questão de como se deve conservá-las e arquivá-las.
É preciso estar atento, mesmo que a urgência atual seja a
de decidir como e por quem será realizada a digitalização do
patrimônio escrito, à necessidade de que a "República digitalizada do saber" não seja confundida com o grande mercado
de informação onde o Google e
outros oferecem seus produtos.
ROGER CHARTIER é professor no Collège de
France e autor de "Inscrever e Apagar - Cultura,
Escrita e Literatura" (ed. Unesp). A íntegra deste texto foi publicada no jornal "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci .
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