|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ imaginário
Perspectiva do bug do ano 2000 espalhou um milenarismo de caráter laico, em que a revanche viria de uma criação da própria humanidade, e não de Deus ou da natureza
O fiasco do milênio
Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha
Meio trilhão de dólares foi quanto
custou prevenir os possíveis danos do bug do ano 2000. Ficou barato para a sociedade do desperdício, que sonega no mundo todo os recursos para promover as condições de vida das populações.
Sabemos todos que milenarismo é algo
que se lê nos livros, mas que não acontece com a gente. Só com os ignorantes, os
supersticiosos, os crédulos camponeses,
jagunços, fanáticos.
Estudiosos do milenarismo, como
Ernst Bloch na Alemanha e Maria Isaura
Pereira de Queiroz no Brasil, mostraram
como os surtos do fenômeno -que
ocorrem nas viradas de século e de milênio, donde seu rótulo- configuram
uma situação de crise, expressando múltiplas carências e anseios.
A civilização cristã costuma atribuir-lhe a forma de Juízo Final, ou seja, de fim
dos tempos. Nessa escatologia, Deus baixará das alturas para recompensar os
justos, encaminhando-os ao paraíso, e
punir os maus, a quem cabe o inferno.
Casos de milenarismo foram propiciados pela Revolução Francesa, a qual,
próxima do fim de seu século, e soando
de fato a dobres de finados de todo um
mundo, o do Antigo Regime, provocou
entre outras uma revolta aristocrático-camponesa, católica e monarquista, que
se alastrou pelas Províncias em 1793.
Data fatídica
Entre nós, o exemplo
mais saliente de milenarismo, porém
contaminado pelo messianismo, foi a
Guerra de Canudos. Ali se congregou, e
foi engrossando fileiras à medida que a
data fatídica se aproximava, a ralé de
centenas de léguas de sertão, ao toque de
recolher emitido pelo messias. Para eles,
o mundo se reencantou naquele ermo,
onde procuravam consagrar-se à penitência para salvar a alma no dia do juízo
já à vista em 1897. E pagaram com a própria vida a tenacidade com que resistiram à persuasão e às armas.
Agora, tivemos um movimento laico,
pelo menos aparentemente não-religioso. O que nos ameaçou não foi a divindade, assessorada pelas forças da natureza
-de que detém o comando, como o fogo, a água, os ventos (se bem que houve
um inédito furacão na França, terremotos em outras latitudes etc.). Não, o que
nos ameaçou foi exatamente o progresso, a tecnologia de ponta que se concretiza na informática.
Dois elementos se destacam na síndrome. Primeiro, é óbvio, o complexo de
Prometeu. Desde que dominou o fogo,
origem de toda civilização, o homem não
consegue livrar-se da idéia de que o roubou à divindade, e continua aguardando
punição. Agrilhoado a um rochedo, Prometeu foi condenado a ter o fígado, que
se regenerava por si mesmo para perpetuação da vingança divina, eternamente
lacerado por um abutre.
Segundo, a ligação com a ciência e a
tecnologia, apanágio da modernidade.
Datam já do início do Oitocentos as fantasmagorias literárias a respeito de uma
possível e esperada revolta da máquina.
A mais marcante delas é a de "Frankenstein", de 1818, portanto bastante precoce
-só Hoffmann também estava tramando as suas, à época-, pois mal tinha começado a industrialização. O livro de
Mary Shelley, sem esquecer as tradições
judaicas do golem e do dibuk, vai gerar
uma longa linhagem de seres mecânicos
e artificiais. Naturalmente tinha que se
originar na Inglaterra, berço e modelo da
Revolução Industrial, conceito, como se
sabe, cunhado por Engels.
Contemporaneamente, entre 1811 e
1816, foi lá que os trabalhadores "ludditas" se encarniçaram em quebrar as próprias máquinas, nelas vendo seu principal inimigo. Com o subtítulo de "Um
Prometeu Moderno", esse livro até hoje
alimenta nosso imaginário, em incontáveis versões a que não escaparam a história em quadrinhos nem as paródias, visando a desarmar o terror. No relato, a
insolência luciferina de um cientista leva-o a emular Deus, atrevendo-se a produzir um ser humano em laboratório,
numa antecipação da clonagem. O desastre está à vista quando a criatura escapa ao controle de seu criador, de quem é
xará, voltando-se contra ele.
Ao largo dos pobres
Em que nos
ameaçava o bug do ano 2000? Ameaçava
o que há de mais avançado em ciência e
tecnologia; não corpo e alma, como no
monstro Frankenstein, e sim apenas o
cérebro eletrônico. No enredo desse Juízo Final, os cérebros eletrônicos seriam
atingidos, tendo "sua memória apagada". Esse era o grande perigo, o que provavelmente implicaria o fim da História
e a entronização da pós-modernidade,
atemporal e a-histórica.
Resta ver o que acarretaria esse apagamento da memória. O dinheiro sumiria
dos bancos, a luz se extinguiria, o telefone emudeceria, os computadores domésticos ofereceriam uma tela em branco, os aeroportos entrariam em pane, o
trânsito se inviabilizaria porque os semáforos enguiçariam. Um folheto profético
achado em Canudos rezava: "...E aí será o
fim do mundo. Em 1900 as luzes se apagarão...". Sobreviriam assaltos, saques,
atentados terroristas. No milenarismo
laico e sem messias, a revanche não viria
de Deus nem da natureza, mas daquilo
de que a humanidade satanicamente
mais se orgulha, sua criação, contra ela se
voltando, engendrando o caos e tentando aniquilá-la.
Um olhar mais detido mostraria que,
orquestrado pela mídia, esse neomilenarismo passava ao largo dos pobres, que
não têm dinheiro no banco e não andam
de avião nem dispõem de computadores
pessoais em casa. Nem por isso o pânico
foi menor, e o empenho da mídia em insuflá-lo não é de envaidecer ninguém.
Já houve um pânico prometéico de
âmbito planetário na inauguração da
Guerra Fria, desencadeado pela bomba
atômica. Devido à fissão do átomo, temeu-se ser possível a uma ou várias delas
-e bem mais a de hidrogênio- deslanchar uma reação em cadeia, liberando
uma energia tal que não definharia antes
de explodir o universo. Como não se verificou, hoje se pode apreciar como folclore os incontáveis abrigos antiatômicos domésticos sobreviventes do período, ponto de venda de residências e de
edifícios institucionais durante muitos
anos nos Estados Unidos. Entretanto,
não estando perto do fim do século nem
do milênio, careceu de numerologia para
suporte e não suscitou milenarismo.
Tudo leva a crer que a humanidade, à
medida que os descobrimentos científicos avançam, mais os entende como um
desafio a potências obscuras e mais
aguarda um desfecho apocalíptico, como retaliação àquilo que os gregos chamavam de "hubris" ou desmesura.
Há duas possibilidades de entender o
que se passa, conforme a perspectiva em
que o observador se coloque. Ou a Ilustração foi insuficiente, deixando áreas de
sombra em que as noções supersticiosas,
como a seu ver os mitos, persistiram sobre a razão. Nisso insiste a Escola de
Frankfurt, na esteira de Aristóteles, cujo
combate não era bem esse. Ou, ao contrário, as pretensões da razão apenas
abafaram, sem sublimá-las, as pulsões e
as forças irracionais, que por isso irrompem a cada momento. Isso mais na linha
de Nietzsche e Freud, sem esquecer Lévi-Strauss, que insistiram no valor de conhecimento do mito, sem falar em seu
valor estético. Uma tal irrupção pode resultar, por exemplo, num milenarismo
burguês e informático, portanto laico,
secularizado e cientificista.
Mas nem tudo está perdido. Já que o
apocalipse não se deu e os computadores
viraram o 00 sem mais, ainda há tempo
para inventar, dispondo de um ano inteiro para produzi-la, outra e mais grave
crise até o verdadeiro início do segundo
milênio conforme o calendário, em 2001.
Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre outros, de "Desconversa".
Texto Anterior: + debate - Luiz Carlos Bresser Pereira: Esquerda nova e realista Próximo Texto: + livros - Roberto Ventura: O herói amargurado Índice
|