São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000


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+ imaginário
Perspectiva do bug do ano 2000 espalhou um milenarismo de caráter laico, em que a revanche viria de uma criação da própria humanidade, e não de Deus ou da natureza
O fiasco do milênio

Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha

Meio trilhão de dólares foi quanto custou prevenir os possíveis danos do bug do ano 2000. Ficou barato para a sociedade do desperdício, que sonega no mundo todo os recursos para promover as condições de vida das populações. Sabemos todos que milenarismo é algo que se lê nos livros, mas que não acontece com a gente. Só com os ignorantes, os supersticiosos, os crédulos camponeses, jagunços, fanáticos. Estudiosos do milenarismo, como Ernst Bloch na Alemanha e Maria Isaura Pereira de Queiroz no Brasil, mostraram como os surtos do fenômeno -que ocorrem nas viradas de século e de milênio, donde seu rótulo- configuram uma situação de crise, expressando múltiplas carências e anseios. A civilização cristã costuma atribuir-lhe a forma de Juízo Final, ou seja, de fim dos tempos. Nessa escatologia, Deus baixará das alturas para recompensar os justos, encaminhando-os ao paraíso, e punir os maus, a quem cabe o inferno. Casos de milenarismo foram propiciados pela Revolução Francesa, a qual, próxima do fim de seu século, e soando de fato a dobres de finados de todo um mundo, o do Antigo Regime, provocou entre outras uma revolta aristocrático-camponesa, católica e monarquista, que se alastrou pelas Províncias em 1793.

Data fatídica
Entre nós, o exemplo mais saliente de milenarismo, porém contaminado pelo messianismo, foi a Guerra de Canudos. Ali se congregou, e foi engrossando fileiras à medida que a data fatídica se aproximava, a ralé de centenas de léguas de sertão, ao toque de recolher emitido pelo messias. Para eles, o mundo se reencantou naquele ermo, onde procuravam consagrar-se à penitência para salvar a alma no dia do juízo já à vista em 1897. E pagaram com a própria vida a tenacidade com que resistiram à persuasão e às armas. Agora, tivemos um movimento laico, pelo menos aparentemente não-religioso. O que nos ameaçou não foi a divindade, assessorada pelas forças da natureza -de que detém o comando, como o fogo, a água, os ventos (se bem que houve um inédito furacão na França, terremotos em outras latitudes etc.). Não, o que nos ameaçou foi exatamente o progresso, a tecnologia de ponta que se concretiza na informática. Dois elementos se destacam na síndrome. Primeiro, é óbvio, o complexo de Prometeu. Desde que dominou o fogo, origem de toda civilização, o homem não consegue livrar-se da idéia de que o roubou à divindade, e continua aguardando punição. Agrilhoado a um rochedo, Prometeu foi condenado a ter o fígado, que se regenerava por si mesmo para perpetuação da vingança divina, eternamente lacerado por um abutre. Segundo, a ligação com a ciência e a tecnologia, apanágio da modernidade. Datam já do início do Oitocentos as fantasmagorias literárias a respeito de uma possível e esperada revolta da máquina. A mais marcante delas é a de "Frankenstein", de 1818, portanto bastante precoce -só Hoffmann também estava tramando as suas, à época-, pois mal tinha começado a industrialização. O livro de Mary Shelley, sem esquecer as tradições judaicas do golem e do dibuk, vai gerar uma longa linhagem de seres mecânicos e artificiais. Naturalmente tinha que se originar na Inglaterra, berço e modelo da Revolução Industrial, conceito, como se sabe, cunhado por Engels. Contemporaneamente, entre 1811 e 1816, foi lá que os trabalhadores "ludditas" se encarniçaram em quebrar as próprias máquinas, nelas vendo seu principal inimigo. Com o subtítulo de "Um Prometeu Moderno", esse livro até hoje alimenta nosso imaginário, em incontáveis versões a que não escaparam a história em quadrinhos nem as paródias, visando a desarmar o terror. No relato, a insolência luciferina de um cientista leva-o a emular Deus, atrevendo-se a produzir um ser humano em laboratório, numa antecipação da clonagem. O desastre está à vista quando a criatura escapa ao controle de seu criador, de quem é xará, voltando-se contra ele.

Ao largo dos pobres
Em que nos ameaçava o bug do ano 2000? Ameaçava o que há de mais avançado em ciência e tecnologia; não corpo e alma, como no monstro Frankenstein, e sim apenas o cérebro eletrônico. No enredo desse Juízo Final, os cérebros eletrônicos seriam atingidos, tendo "sua memória apagada". Esse era o grande perigo, o que provavelmente implicaria o fim da História e a entronização da pós-modernidade, atemporal e a-histórica.
Resta ver o que acarretaria esse apagamento da memória. O dinheiro sumiria dos bancos, a luz se extinguiria, o telefone emudeceria, os computadores domésticos ofereceriam uma tela em branco, os aeroportos entrariam em pane, o trânsito se inviabilizaria porque os semáforos enguiçariam. Um folheto profético achado em Canudos rezava: "...E aí será o fim do mundo. Em 1900 as luzes se apagarão...". Sobreviriam assaltos, saques, atentados terroristas. No milenarismo laico e sem messias, a revanche não viria de Deus nem da natureza, mas daquilo de que a humanidade satanicamente mais se orgulha, sua criação, contra ela se voltando, engendrando o caos e tentando aniquilá-la.
Um olhar mais detido mostraria que, orquestrado pela mídia, esse neomilenarismo passava ao largo dos pobres, que não têm dinheiro no banco e não andam de avião nem dispõem de computadores pessoais em casa. Nem por isso o pânico foi menor, e o empenho da mídia em insuflá-lo não é de envaidecer ninguém.
Já houve um pânico prometéico de âmbito planetário na inauguração da Guerra Fria, desencadeado pela bomba atômica. Devido à fissão do átomo, temeu-se ser possível a uma ou várias delas -e bem mais a de hidrogênio- deslanchar uma reação em cadeia, liberando uma energia tal que não definharia antes de explodir o universo. Como não se verificou, hoje se pode apreciar como folclore os incontáveis abrigos antiatômicos domésticos sobreviventes do período, ponto de venda de residências e de edifícios institucionais durante muitos anos nos Estados Unidos. Entretanto, não estando perto do fim do século nem do milênio, careceu de numerologia para suporte e não suscitou milenarismo.
Tudo leva a crer que a humanidade, à medida que os descobrimentos científicos avançam, mais os entende como um desafio a potências obscuras e mais aguarda um desfecho apocalíptico, como retaliação àquilo que os gregos chamavam de "hubris" ou desmesura.
Há duas possibilidades de entender o que se passa, conforme a perspectiva em que o observador se coloque. Ou a Ilustração foi insuficiente, deixando áreas de sombra em que as noções supersticiosas, como a seu ver os mitos, persistiram sobre a razão. Nisso insiste a Escola de Frankfurt, na esteira de Aristóteles, cujo combate não era bem esse. Ou, ao contrário, as pretensões da razão apenas abafaram, sem sublimá-las, as pulsões e as forças irracionais, que por isso irrompem a cada momento. Isso mais na linha de Nietzsche e Freud, sem esquecer Lévi-Strauss, que insistiram no valor de conhecimento do mito, sem falar em seu valor estético. Uma tal irrupção pode resultar, por exemplo, num milenarismo burguês e informático, portanto laico, secularizado e cientificista.
Mas nem tudo está perdido. Já que o apocalipse não se deu e os computadores viraram o 00 sem mais, ainda há tempo para inventar, dispondo de um ano inteiro para produzi-la, outra e mais grave crise até o verdadeiro início do segundo milênio conforme o calendário, em 2001.


Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre outros, de "Desconversa".


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