São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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cultura

O museu público na corda bamba

CRISTINA FREIRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O museu está na ordem do dia e, no Brasil, tem ocupado espaço significativo na mídia e na agenda do governo. Como instrumento ótico privilegiado, o museu vem, ao longo dos séculos, forjando noções sedimentadas na história. Em suas práticas e representações atuais, delineiam-se relações contraditórias e conflitantes com os anseios do humanismo que o criou.
Esse parece ser o drama maior do museu público em tempos neoliberais.
É fato corrente que, há pelo menos algumas décadas, a idéia de museu, sobretudo museu de arte, torna-se sinônimo de edifício, espaço público onde se efetiva a visibilidade de administrações e vaidades indisfarçáveis. Despontam nesse horizonte projetos faraônicos, como o do museu Guggenheim que ameaçou instalar aqui mais um de seus satélites, legítimo fast-food cultural, afrontando os museus nativos pela drenagem de divisas e desprezo pelo local, fruto do velho legado colonial.
Arquitetura monumental não garante lugar simbólico, isto é, legitimidade e relevância social não são feitos, apenas, de concreto e vidro. Está aí a crise do Masp (Museu de Arte de São Paulo) para que nos sirva de lição.

Distração x reflexão
Alavancar a dimensão pública do museu não se resume a invocá-la como chavão nos discursos oficiais, mas, partindo dessa condição, tornar o museu um lugar de apropriação social, independente de interesses mercadológicos e privados. Nesse caso, seu acervo é ponto privilegiado para que se reencontre um sentido, para além do bombardeio de imagens e informações descartáveis a que estamos expostos em nosso dia-a-dia.
É necessário instigar, em cada ação, o pensamento crítico e fomentar, por exemplo, nos museus de arte, por meio da pesquisa de seus acervo, uma revisão da história que se apresenta há tempos como história das formas, estagnada na celebração do fetiche das obras-primas, das cronologias estanques pontuadas por artistas já há muito consagrados.
Buscar a integração do museu com a dinâmica mesma do campo artístico, que não é outra senão a do campo social mais amplo, é vital. Mesclar-se no curso de seus movimentos, abandonar conceitos anacrônicos, apontar diretrizes para rever práticas, articular o global ao local, procurando integrar no museu os diferentes campos do conhecimento junto das novas tecnologias.

Transitório x permanente
Persistentemente, de maneira consistente, formar um público permanente e ampliá-lo. Instigar sua sensibilidade, provocar seu pensamento plástico e fruição intelectual e acima de tudo resistir, tenazmente, à hegemonia abstrata e flutuante das cifras.
Nossa época impregna-se pela lógica econômica em que domina a "síndrome da estatística". Os critérios de avaliação pautam-se inadvertidamente pela lógica da liquidação: massa atrai massa. Quantidade não é sinônimo de qualidade, e o museu público compreende que não deve se pautar pela pressão dos números.
Afinal, vale lembrar a advertência de Walter Benjamin [1892-1940]: "Irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente , sem que esse presente se sinta visado por ela".


Cristina Freire é professora associada no Museu de Arte Contemporânea da USP, autora de "Poéticas do Processo - Arte Conceitual no Museu" (Iluminuras).


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