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Ex-agente da CIA lança livro em que prevê o fracasso da democracia no Iraque e afirma, a partir de documento da
Al Qaeda, que o diplomata Sérgio Vieira de Mello era um dos alvos no ataque ao prédio da ONU em Bagdá, em 2003
A terra prometida
FABIANO MAISONNAVE
DE WASHINGTON
Os EUA estão perdendo nos
fronts do Iraque e do Afeganistão, Osama bin Laden não é um terrorista
apocalíptico, mas o popular líder de
uma insurgência religiosa islâmica, e
Washington deveria rever seu apoio
a Israel. E, sobretudo, o diplomata
brasileiro Sérgio Vieira de Mello,
morto num atentado ao prédio da
ONU em Bagdá em 2003, era um alvo da rede Al Qaeda por sua atuação
no Timor Leste.
As afirmações acima não foram retiradas de um site islâmico, mas fazem parte das conclusões do livro
"Imperial Hubris - Why the West Is
Losing the War on Terror" (Soberba
Imperial - Por Que o Ocidente Está
Perdendo a Guerra contra o Terror,
ed. Brassey's, 309 págs., US$ 27,50
-R$ 73), de Michael Scheuer, publicado nos EUA em meados do ano
passado após ter sido revisado linha
por linha e aprovado pela CIA
(Agência Central de Inteligência).
Servindo-se de um documento da
rede Al Qaeda,
Michael Scheuer mostra que o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de
Mello, morto num atentado ao prédio da ONU em Bagdá em 2003, era
um alvo da rede Al Qaeda por sua
atuação no Timor Leste. "Havia um
propósito duplo: atacar a ONU e
matar o seu diplomata", disse
Scheuer, em entrevista à Folha gravada num café do edifício Watergate, na capital norte-americana.
"Da perspectiva islâmica, ele era o
agente do desmembramento de um
país islâmico [Indonésia] em nome
do cristianismo." Em 1999, Mello fora nomeado administrador da ONU
para o Timor Leste, hoje um país independente.
O documento, divulgado pela internet dias após o atentado, chama
Mello de "amigo do criminoso
Bush" e critica sua atuação no Líbano, em Kosovo, no Iraque e no Timor Leste, onde "ele foi o cruzado
que dividiu parte da terra do islã".
Para Scheuer, a morte de Vieira de
Mello foi uma das principais vitórias
da Al Qaeda após o 11 de Setembro.
Escrito em tom dramático, "Soberba Imperial" propõe uma completa mudança das relações entre os
EUA e o mundo islâmico, aquele
quiser vencer a guerra contra o terror, sob o risco de que o conflito
"dure mais do que a vida de nossas
crianças e tenha lugar sobretudo em
solo norte-americano". Já Bin Laden
é descrito como "o mais respeitado,
amado, romântico, carismático e
talvez talentoso personagem dos últimos 150 anos de história islâmica".
Apesar das críticas, a única condição
imposta pela CIA para a publicação
era que o seu autor, um analista com
22 anos de casa, permanecesse no
anonimato.
Mas não foi o que aconteceu. A repercussão dos duros ataques aos pilares da estratégia antiterror do presidente George W. Bush acabou revelando Michael Scheuer, 52, ex-diretor da unidade encarregada de investigar Bin Laden entre 1996 e 1999.
Em novembro, ele pediu demissão.
O ex-analista da CIA, no entanto,
ressalta que seguiu os procedimentos burocráticos. "Não há nada de
glamouroso no que fiz. O livro foi revisado para ver se não havia informações sigilosas, segui os procedimentos do sistema. O porquê de a
CIA ter autorizado o livro é desconhecido para mim", disse Scheuer.
O principal argumento de Scheuer
é de que o governo americano tem
uma visão completamente equivocada do inimigo, apesar de toda a informação disponível -seu livro cita
centenas de documentos da [rede
terrorista] Al Qaeda que circulam
pela internet em inglês, sem que ninguém preste a devida atenção.
O livro de Scheuer recebeu críticas
favoráveis, freqüentou por mais de
dois meses a lista dos mais vendidos
do "New York Times" e obteve bastante espaço na grande imprensa
americana. No mundo político, no
entanto, a reação foi fria.
Scheuer afirma que nunca foi chamado para discutir seu livro com
congressistas ou membros do governo. "Os funcionários do governo,
eleitos ou não, têm interesse mínimo
pelo livro porque ele levanta questões que ninguém da América oficial
quer discutir: religião, Israel, preço
do petróleo, temas sobre os quais
não temos falado nos últimos 25
anos", diz na entrevista abaixo.
Folha - Vieira de Mello era o alvo
no ataque em Bagdá?
Michael Scheuer - Havia um propósito duplo: atacar a ONU e matar o
seu diplomata, porque ele era a pessoa que estava envolvida em fazer a
paz no Timor Leste. Mas, da perspectiva islâmica, ele era o agente do
desmembramento de um país islâmico em nome do cristianismo. Portanto, era um alvo muito lucrativo
para a Al Qaeda por dois motivos:
ele trabalhava para a ONU -e eles
vêem a ONU com uma criatura dos
EUA e do Ocidente e porque foi o
responsável por tirar território do
maior país muçulmano do mundo, a
Indonésia.
O comunicado foi bastante específico sobre ele. Eles teriam atacado a
ONU em Bagdá com ou sem ele,
mas, porque ele estava em Bagdá, se
tornou muito mais importante.
Folha - Apesar de a nota sobre Vieira
de Mello ser assinada pelas Brigadas
de Abu Hafs al Masri, o sr. afirma que o
documento é da Al Qaeda. Qual é a relação entre as duas organizações?
Scheuer - Abu Hafs al Masri era um
egípcio comandante militar de Bin
Laden. Ele foi morto em novembro
de 2001, e eles nomearam uma das
unidades de ataque da Al Qaeda em
sua homenagem.
Folha - Recentemente, um engenheiro brasileiro, trabalhando para
uma empresa brasileira, foi seqüestrado no Iraque. Se somado à morte
de Vieira de Mello, é possível que o
Brasil passe a ser considerado um país
ligado aos EUA?
Scheuer - Pelo fato de a empresa estar dentro do Iraque, o Brasil provavelmente será identificado com os
EUA, mas não creio que o seu país
seja um alvo fora do Iraque. A única
razão do ataque é por estar dentro
do Iraque. Os insurgentes estão tentando expulsar todos os países estrangeiros que estão colaborando
com os EUA.
Folha - O sr. afirma que o islã está
em guerra contra os EUA, mas no Iraque se vê um crescente conflito entre
xiitas e sunitas. Os EUA são de fato um
inimigo comum?
Scheuer - Não é tão forte entre os
xiitas na medida em que eles não
sentem que é necessário atacar os
norte-americanos agora porque vão
ganhar as eleições. O que eles querem é acumular poder e depois tirar
os americanos. Os xiitas estão de
acordo com as eleições porque sabem que vão ganhar. Não tem sentido combater os americanos porque
não precisam. Eles não gostam dos
EUA mais do que os sunitas, mas são
a maioria e estão sentados no banco
do motorista agora.
Folha - O governo dos EUA afirma
que as eleições ajudarão a diminuir a
violência no país. O sr. concorda?
Scheuer - Não fará nenhuma diferença. Os sunitas não querem desistir do poder que tinham. Se houver
qualquer forma de acordo entre os
sunitas e os EUA, os xiitas começarão a combater. Muitos combatentes
estão vindo de fora do Iraque e vão
continuar lutando para matar norte-americanos.
E há ainda o equilíbrio de poder no
Oriente Médio. O Irã não tolerará
outro governo sunita no Iraque como o último. Os jordanianos, sauditas e kuaitianos não querem outro
Estado iraniano. De uma forma ou
de outra, haverá muita violência e
interferência dentro do Iraque.
Folha - Foi a invasão dos EUA, e não
Saddam Hussein, quem trouxe a Al
Qaeda para o Iraque?
Scheuer - Não havia conexão entre
Saddam e a Al Qaeda. A Al Qaeda
chegou ao Iraque em 1999 porque
estava envolvida com os curdos, no
norte do Iraque, mas a grande maioria chegou após a invasão. Os EUA
deram a oportunidade para eles
mandaram combatentes para lá e
matarem norte-americanos.
Mais importante do que isso, a invasão provou para o mundo muçulmano que o que Bin Laden vem dizendo é verdade: que os EUA destruiriam qualquer governo forte,
que os EUA querem as reservas de
petróleo árabes, que os EUA destruiriam qualquer um que se opusesse a
Israel.
Portanto, a invasão deu oportunidade de mais ataques, mas principalmente provou que o que ele dizia
há mais de uma década, pelo menos
na lógica muçulmana, está correto.
Folha - Por que o sr. diz que os EUA
estão perdendo a guerra no Iraque e
no Afeganistão?
Scheuer - No Afeganistão, nós conquistamos as cidades muito rapidamente -Cabul, Herat e Candahar-, mas confundimos as batalhas
nas cidades com ganhar a guerra. Estamos numa posição na qual o Taleban, a Al Qaeda e outros grupos de
oposição ao governo [do presidente
Hamid Karzai] controlam o interior,
e eles não começaram realmente a
lutar lá ainda. Os EUA, em algum
momento, terão de decidir se colocarão muito mais soldados lá ou deixarem como está. O Afeganistão não
tolera a ocupação estrangeira. E,
com o tempo, eles começarão a detestar a presença norte-americana.
E há sempre o risco de uma guerra
civil. Com a eleição presidencial, não
foi realmente uma vitória da democracia, pois havia um grupo étnico,
os pashtus, votando por Karzai porque ele também era um pashtu, e
não porque ele era um democrata ou
porque é líder, mas porque é da mesma tribo. O que estamos vendo é um
alinhamento como preparação para
uma guerra civil entre grupos étnicos: as tribos nos sul, os pashtus,
contra os uzbeques e os tadjiques no
norte. É uma situação muito frágil.
E, claro, o Iraque é simplesmente
um desastre da política externa norte-americana. As eleições serão insignificantes. Ocupamos o Iraque, o
segundo lugar mais sagrado para o
islã. Portanto, neste momento, no
mundo islâmico, os EUA são vistos
ocupando os três lugares mais sagrados do islã: a península Arábica e o
Iraque, e os israelenses controlam
Jerusalém.
No mundo islâmico, israelenses e
americanos são sinônimos. Nós
conseguimos ofender 1,3 bilhão de
muçulmanos, simpatizantes ou não
de Bin Laden, simplesmente porque
estamos controlando seus santuários. E a insurgência está aumentando num ritmo diário. Os muçulmanos estão vindo de todas as partes do
mundo. Creio que, por quaisquer
padrões razoáveis, estamos perdendo ambas as guerras.
Onde encomendar
"Imperial Hubris", de Michael Scheuer, pode
ser encomendado, em SP, na livraria Cultura
(tel. 0/xx/11/ 3170-4033) ou no site
www.amazon.com
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