São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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Ex-agente da CIA lança livro em que prevê o fracasso da democracia no Iraque e afirma, a partir de documento da Al Qaeda, que o diplomata Sérgio Vieira de Mello era um dos alvos no ataque ao prédio da ONU em Bagdá, em 2003

A terra prometida

FABIANO MAISONNAVE
DE WASHINGTON

Os EUA estão perdendo nos fronts do Iraque e do Afeganistão, Osama bin Laden não é um terrorista apocalíptico, mas o popular líder de uma insurgência religiosa islâmica, e Washington deveria rever seu apoio a Israel. E, sobretudo, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto num atentado ao prédio da ONU em Bagdá em 2003, era um alvo da rede Al Qaeda por sua atuação no Timor Leste.
As afirmações acima não foram retiradas de um site islâmico, mas fazem parte das conclusões do livro "Imperial Hubris - Why the West Is Losing the War on Terror" (Soberba Imperial - Por Que o Ocidente Está Perdendo a Guerra contra o Terror, ed. Brassey's, 309 págs., US$ 27,50 -R$ 73), de Michael Scheuer, publicado nos EUA em meados do ano passado após ter sido revisado linha por linha e aprovado pela CIA (Agência Central de Inteligência).
Servindo-se de um documento da rede Al Qaeda, Michael Scheuer mostra que o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto num atentado ao prédio da ONU em Bagdá em 2003, era um alvo da rede Al Qaeda por sua atuação no Timor Leste. "Havia um propósito duplo: atacar a ONU e matar o seu diplomata", disse Scheuer, em entrevista à Folha gravada num café do edifício Watergate, na capital norte-americana.
"Da perspectiva islâmica, ele era o agente do desmembramento de um país islâmico [Indonésia] em nome do cristianismo." Em 1999, Mello fora nomeado administrador da ONU para o Timor Leste, hoje um país independente.
O documento, divulgado pela internet dias após o atentado, chama Mello de "amigo do criminoso Bush" e critica sua atuação no Líbano, em Kosovo, no Iraque e no Timor Leste, onde "ele foi o cruzado que dividiu parte da terra do islã". Para Scheuer, a morte de Vieira de Mello foi uma das principais vitórias da Al Qaeda após o 11 de Setembro.
Escrito em tom dramático, "Soberba Imperial" propõe uma completa mudança das relações entre os EUA e o mundo islâmico, aquele quiser vencer a guerra contra o terror, sob o risco de que o conflito "dure mais do que a vida de nossas crianças e tenha lugar sobretudo em solo norte-americano". Já Bin Laden é descrito como "o mais respeitado, amado, romântico, carismático e talvez talentoso personagem dos últimos 150 anos de história islâmica". Apesar das críticas, a única condição imposta pela CIA para a publicação era que o seu autor, um analista com 22 anos de casa, permanecesse no anonimato.
Mas não foi o que aconteceu. A repercussão dos duros ataques aos pilares da estratégia antiterror do presidente George W. Bush acabou revelando Michael Scheuer, 52, ex-diretor da unidade encarregada de investigar Bin Laden entre 1996 e 1999. Em novembro, ele pediu demissão.
O ex-analista da CIA, no entanto, ressalta que seguiu os procedimentos burocráticos. "Não há nada de glamouroso no que fiz. O livro foi revisado para ver se não havia informações sigilosas, segui os procedimentos do sistema. O porquê de a CIA ter autorizado o livro é desconhecido para mim", disse Scheuer.
O principal argumento de Scheuer é de que o governo americano tem uma visão completamente equivocada do inimigo, apesar de toda a informação disponível -seu livro cita centenas de documentos da [rede terrorista] Al Qaeda que circulam pela internet em inglês, sem que ninguém preste a devida atenção.
O livro de Scheuer recebeu críticas favoráveis, freqüentou por mais de dois meses a lista dos mais vendidos do "New York Times" e obteve bastante espaço na grande imprensa americana. No mundo político, no entanto, a reação foi fria.
Scheuer afirma que nunca foi chamado para discutir seu livro com congressistas ou membros do governo. "Os funcionários do governo, eleitos ou não, têm interesse mínimo pelo livro porque ele levanta questões que ninguém da América oficial quer discutir: religião, Israel, preço do petróleo, temas sobre os quais não temos falado nos últimos 25 anos", diz na entrevista abaixo.
 

Folha - Vieira de Mello era o alvo no ataque em Bagdá?
Michael Scheuer -
Havia um propósito duplo: atacar a ONU e matar o seu diplomata, porque ele era a pessoa que estava envolvida em fazer a paz no Timor Leste. Mas, da perspectiva islâmica, ele era o agente do desmembramento de um país islâmico em nome do cristianismo. Portanto, era um alvo muito lucrativo para a Al Qaeda por dois motivos: ele trabalhava para a ONU -e eles vêem a ONU com uma criatura dos EUA e do Ocidente e porque foi o responsável por tirar território do maior país muçulmano do mundo, a Indonésia.
O comunicado foi bastante específico sobre ele. Eles teriam atacado a ONU em Bagdá com ou sem ele, mas, porque ele estava em Bagdá, se tornou muito mais importante.

Folha - Apesar de a nota sobre Vieira de Mello ser assinada pelas Brigadas de Abu Hafs al Masri, o sr. afirma que o documento é da Al Qaeda. Qual é a relação entre as duas organizações?
Scheuer -
Abu Hafs al Masri era um egípcio comandante militar de Bin Laden. Ele foi morto em novembro de 2001, e eles nomearam uma das unidades de ataque da Al Qaeda em sua homenagem.

Folha - Recentemente, um engenheiro brasileiro, trabalhando para uma empresa brasileira, foi seqüestrado no Iraque. Se somado à morte de Vieira de Mello, é possível que o Brasil passe a ser considerado um país ligado aos EUA?
Scheuer -
Pelo fato de a empresa estar dentro do Iraque, o Brasil provavelmente será identificado com os EUA, mas não creio que o seu país seja um alvo fora do Iraque. A única razão do ataque é por estar dentro do Iraque. Os insurgentes estão tentando expulsar todos os países estrangeiros que estão colaborando com os EUA.

Folha - O sr. afirma que o islã está em guerra contra os EUA, mas no Iraque se vê um crescente conflito entre xiitas e sunitas. Os EUA são de fato um inimigo comum?
Scheuer -
Não é tão forte entre os xiitas na medida em que eles não sentem que é necessário atacar os norte-americanos agora porque vão ganhar as eleições. O que eles querem é acumular poder e depois tirar os americanos. Os xiitas estão de acordo com as eleições porque sabem que vão ganhar. Não tem sentido combater os americanos porque não precisam. Eles não gostam dos EUA mais do que os sunitas, mas são a maioria e estão sentados no banco do motorista agora.

Folha - O governo dos EUA afirma que as eleições ajudarão a diminuir a violência no país. O sr. concorda?
Scheuer -
Não fará nenhuma diferença. Os sunitas não querem desistir do poder que tinham. Se houver qualquer forma de acordo entre os sunitas e os EUA, os xiitas começarão a combater. Muitos combatentes estão vindo de fora do Iraque e vão continuar lutando para matar norte-americanos.
E há ainda o equilíbrio de poder no Oriente Médio. O Irã não tolerará outro governo sunita no Iraque como o último. Os jordanianos, sauditas e kuaitianos não querem outro Estado iraniano. De uma forma ou de outra, haverá muita violência e interferência dentro do Iraque.

Folha - Foi a invasão dos EUA, e não Saddam Hussein, quem trouxe a Al Qaeda para o Iraque?
Scheuer -
Não havia conexão entre Saddam e a Al Qaeda. A Al Qaeda chegou ao Iraque em 1999 porque estava envolvida com os curdos, no norte do Iraque, mas a grande maioria chegou após a invasão. Os EUA deram a oportunidade para eles mandaram combatentes para lá e matarem norte-americanos.
Mais importante do que isso, a invasão provou para o mundo muçulmano que o que Bin Laden vem dizendo é verdade: que os EUA destruiriam qualquer governo forte, que os EUA querem as reservas de petróleo árabes, que os EUA destruiriam qualquer um que se opusesse a Israel.
Portanto, a invasão deu oportunidade de mais ataques, mas principalmente provou que o que ele dizia há mais de uma década, pelo menos na lógica muçulmana, está correto.

Folha - Por que o sr. diz que os EUA estão perdendo a guerra no Iraque e no Afeganistão?
Scheuer -
No Afeganistão, nós conquistamos as cidades muito rapidamente -Cabul, Herat e Candahar-, mas confundimos as batalhas nas cidades com ganhar a guerra. Estamos numa posição na qual o Taleban, a Al Qaeda e outros grupos de oposição ao governo [do presidente Hamid Karzai] controlam o interior, e eles não começaram realmente a lutar lá ainda. Os EUA, em algum momento, terão de decidir se colocarão muito mais soldados lá ou deixarem como está. O Afeganistão não tolera a ocupação estrangeira. E, com o tempo, eles começarão a detestar a presença norte-americana.
E há sempre o risco de uma guerra civil. Com a eleição presidencial, não foi realmente uma vitória da democracia, pois havia um grupo étnico, os pashtus, votando por Karzai porque ele também era um pashtu, e não porque ele era um democrata ou porque é líder, mas porque é da mesma tribo. O que estamos vendo é um alinhamento como preparação para uma guerra civil entre grupos étnicos: as tribos nos sul, os pashtus, contra os uzbeques e os tadjiques no norte. É uma situação muito frágil.
E, claro, o Iraque é simplesmente um desastre da política externa norte-americana. As eleições serão insignificantes. Ocupamos o Iraque, o segundo lugar mais sagrado para o islã. Portanto, neste momento, no mundo islâmico, os EUA são vistos ocupando os três lugares mais sagrados do islã: a península Arábica e o Iraque, e os israelenses controlam Jerusalém.
No mundo islâmico, israelenses e americanos são sinônimos. Nós conseguimos ofender 1,3 bilhão de muçulmanos, simpatizantes ou não de Bin Laden, simplesmente porque estamos controlando seus santuários. E a insurgência está aumentando num ritmo diário. Os muçulmanos estão vindo de todas as partes do mundo. Creio que, por quaisquer padrões razoáveis, estamos perdendo ambas as guerras.


Onde encomendar
"Imperial Hubris", de Michael Scheuer, pode ser encomendado, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 3170-4033) ou no site www.amazon.com



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