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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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TEÓRICA DA HOMOSSEXUALIDADE, A AMERICANA EVE SEDGWICK CONDENSA EM SEU PENSAMENTO A EVOLUÇÃO DO FEMINISMO E DA TEORIA LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA

O TEATRO DO DESEJO

Aaron Harris - 14.jan.2001/France Presse
Casamento gay em Toronto, no Canadá


por Elaine Showalter

Na introdução de seu novo livro, "Touching Feeling" [Duke University Press, 216 págs., US$ 18,95], a teórica da homossexualidade Eve Kosofsky Sedgwick descreve a estranha e assustadora fotografia em preto-e-branco da capa como "o catalisador que me impeliu a organizar o livro na forma em que se encontra agora". A fotografia mostra uma mulher abraçando desajeitadamente um objeto que se assemelha a um gigantesco vespeiro feito de palitos e barbante. Os olhos da mulher estão fechados, e seu rosto se amassa contra o lado dessa massa, que se apóia sobre uma mesa.
Sedgwick explica que essa mulher é a artista outsider Judith Scott, com um de seus trabalhos, um núcleo escondido sob muitas camadas de barbante colorido, cordas, fitas e outras fibras embrulhadas ou amarradas, cuja escala se compara à do corpo da própria artista. Judith Scott parece ser a representação mais improvável das intoxicantes idéias estéticas de Sedgwick: nascida com síndrome de Down em 1943, surda, incapaz de fazer uso da linguagem e descrita por seus mentores psiquiátricos e artísticos como desprovida de um conceito de escultura, ela não se dedicou conscientemente à criação de arte e não poderia ter uma noção de sua forma.
Qual poderia ser a relação dessa deficiente outsider com Sedgwick, uma intelectual brilhante educada nas universidades Cornell e Yale, docente das universidades de Boston, Hamilton, Amherst e Duke e agora professora da cadeira de inglês no centro de graduação da Universidade da Cidade de Nova York? O que esse carretel de fibra pode representar a respeito de um livro de ensaios densamente discutidos, difíceis e quase absolutamente teóricos? No nível visual mais imediato, a foto é utilizada para representar o ato de sentir o toque, o esforço de segurar, explorar e confortar-se em algo que é precioso e não tem palavras.
Para aqueles familiarizados com a vida e a carreira da própria Sedgwick, há outras correspondências. Sedgwick frequentemente escreveu a respeito de seu próprio sentimento de alienação, exterioridade, alteridade, homossexualidade. E, mais, desde que foi diagnosticado o seu câncer de mama, logo após a publicação de "Epistemology of the Closet" [Epistemologia do Armário, University of California Press", em 1991, tendo sofrido uma mastectomia e visto o retorno do câncer na forma de uma metástase da espinha seis anos depois, Sedgwick mudou muitas coisas em sua vida. Ela passou por psicoterapia (intimamente descrita em seu livro de memórias, "A Dialogue of Love" [Um Diálogo de Amor, Beacon Press]), viajou pela Ásia, mergulhou no budismo e abandonou a escrita para se voltar à tecelagem e a outras formas de arte com fibras.
Em sua introdução a "Touching Feeling", uma coletânea de ensaios que remonta a 1992 e que ela revisou para que formasse uma longa meditação teórica a respeito de "pensamento não-dualístico", Sedgwick diz que se identifica com as "muito expressivas tristeza e fadiga" do retrato de Scott, e o acha emblemático da "frustração cognitiva" que sentiu ao escrever esse "livro de difícil articulação". Os ensaios vagamente conexos têm temas como vergonha, teatralidade, atuação, a biologia do afeto, leitura reparativa versus leitura paranóica e morte. Assim como Scott aplica camadas de materiais, texturas e cores, esses assuntos são tratados em ensaios ostensivamente a respeito de J.L. Austen, Judith Butler, Melanie Klein, do psicólogo Silvan Tomkins, Michel Foucault, Henry James e Marcel Proust. O livro é estruturado por um "interlúdio pedagógico", um ensaio autobiográfico sobre a experiência de Sedgwick de desmaiar em um protesto contra a Aids no início de seu tratamento contra o câncer e um ensaio de conclusão sobre a pedagogia do budismo e a metáfora da reencarnação. Sentindo o toque, ensinando a sentir: são tarefas difíceis para a crítica literária, e, apesar de intermitentes momentos eletrizantes, o livro, com cinco abstrações em seu título e sua prosa complexa, é muitas vezes de leitura frustrante. Mas eu posso desemaranhar alguns de seus vários feixes ao observar a evolução do pensamento de Sedgwick do feminismo ao ativismo gay e ao "movimento de morte consciente"; da desconstrução ao budismo; de um enfoque muitas vezes escandaloso e controverso sobre a sexualidade e o corpo socialmente construídos a algo que pode ser uma concentração igualmente controversa na espiritualidade e desejos e afetos biológicos. Isso vale a pena porque para muitos envolvidos em estudos literários, em especial feminismo e teoria homossexual, a carreira de Eve Kosofsky Sedgwick parece fornecer não apenas o paradigma da evolução da teoria literária contemporânea como também de uma intelectual feminista contemporânea. Já se sugeriu que ela está, em relação simbólica com os anos 90, em situação análoga a que Oscar Wilde se encontrava na década de 1890. O trabalho acadêmico de Sedgwick e sua vida pessoal estão ligados em um grau excepcional mesmo para a era do sistema de estrelas acadêmicas, porque ela escreveu com uma franqueza a respeito de si mesma e de suas fantasias sexuais sadomasoquistas, ao lado de estudos (para tirar um exemplo do novo livro) das cartas de Henry James a seu irmão William a respeito de sua crônica prisão de ventre e da imagem de bolinação anal na ficção de James.

Egocentrismo da escrita
Sedgwick atraiu tanto adoração quanto ódio. Alguns políticos e jornalistas se sentiram ultrajados pelo que eles vêem como o sensacionalismo do trabalho dela, em particular o seu famoso (mas muito acadêmico) artigo na convenção da Associação da Língua Moderna a respeito de "Jane Austen e a Moça Que Se Masturba"; alguns críticos zombam do egocentrismo da escrita dela ("a simples publicação das lembranças da própria psicoterapia requer algum tipo de grandiosidade", protestou um resenhista). Sedgwick também é conhecida por seu estilo de escrita extraordinário. Ela é celebrada por suas listas e axiomas, por combinar sua própria poesia e mesmo excertos de letras de músicas com análises formidavelmente teóricas. Ela gosta de uma série de adjetivos hiperbólicos -adorável, lindo, luxurioso, maravilhoso-, que ela coloca ao lado de uma incansável sequência de termos técnicos: deontologia, epistemologia, tautologia, ecologia, metafísica, fenomenologia, arqueologia, pedagogia. Acima de tudo, suas idéias a respeito das estruturas do desejo entre homens na ficção geraram trabalho crítico para outros, assim como suas teorias são postas em funcionamento em releituras de autores, textos, gêneros e períodos. Qualquer crítico que desafia de modo tão bem-sucedido os termos fundamentais da disciplina e abre novos assuntos a respeito dos quais outros possam escrever e publicar merece fama e distinção. Mais ainda, a coragem de Sedgwick em falar a respeito de sua doença e de aspectos de seu ser de que a maioria das mulheres acadêmicas não falaria, inclusive o fato de ser gorda, é tocante.

"Desejo triangulado"
O primeiro livro importante de Sedgwick, "Between Men - English Literature and Male Homosocial Desire" (Entre Homens - Literatura Inglesa e Desejo Homossocial Masculino, 1985, Columbia University Press), foi em grande parte escrito no Instituto Bunting, vinculado à Faculdade Radcliffe [da Universidade Harvard]. Apesar de suas raízes em teoria literária feminista, "Entre Homens" marcou o início de estudos literários homossexuais masculinos. A ilustração da capa, o "Desjejum sobre a Grama", de Manet, mostra uma mulher nua em um piquenique com dois homens vestidos e de chapéu; e, retomando a clássica idéia de René Girard de "desejo triangulado", de acordo com a qual rivais desejam mais sobrepujar um ao outro do que ter a coisa para eles mesmos, Sedgwick sugeriu que dois homens que rivalizam por uma mulher na ficção às vezes desejam na realidade um ao outro, com a mulher sendo meramente um veículo para a união proibida dos dois. Esse desejo pode ser "homossocial", um aspecto da ligação entre homens, em vez de explicitamente homossexual. Sedgwick examina esse "desvio do desejo homossocial através de mulheres" em diversos gêneros e períodos da literatura inglesa, dos sonetos de Shakespeare à comédia da Restauração, a Charles Dickens e ao romance gótico, com sua paranóia e referências ao "indizível". Eu não posso superestimar o impacto do estudo de Sedgwick, e as novas leituras do desejo masculino que ele pôs em foco. Sedgwick enfatizou a necessidade de evitar a homofobia na descrição do desejo masculino e descreveu "Entre Homens" como revelador da "forma de todo o espectro homossocial masculino e de seu efeito sobre as mulheres". Mas os efeitos desses arranjos sobre as mulheres foram problemáticos; de fato as mulheres pareciam sair rapidamente da argumentação. Algumas críticas literárias lésbicas, incluindo Terry Castle, tentaram inverter o paradigma para mostrar homens colocados entre mulheres; outras criticaram a obsessão de Sedgwick por gays. Mas, mais importante, "Entre Homens" ignora desde o começo a devastação e a humilhação da mulher que se crê amada ou desejada e então percebe que é na verdade apenas um elo entre homens -a mulher de Oscar Wilde, Constance, por exemplo, ou as heroínas de "De Repente, no Último Verão", de Tennessee Williams, ou a história de Graham Greene "Podemos Tomar Emprestado Seu Marido?". Sedgwick sempre buscou o afeto em homens, identificando posições de desejo masculino ou desejo homossexual masculino, ao invés de buscá-lo em mulheres. À época da escrita de "Entre Homens", Sedgwick "em realidade conhecia apenas um homem assumidamente gay". Isso mudou em 1986, quando deu seu primeiro curso de estudos gays e lésbicos para graduandos na Faculdade Amherst e conheceu Michael Lynch, crítico canadense, ativista gay e portador de Aids, que a apresentou à "cena de laços entre homens gays... que, no nível da experiência, era quase totalmente desconhecida para mim". Em seu livro seguinte, "Epistemologia do Closet", Sedgwick escreveu mais diretamente sobre autores gays, autocompreensão e atuação. Ela participou de manifestações de protesto contra a Aids e "saiu do armário" em uma série de artigos, palestras, peças e poemas autobiográficos em que se mostrava como uma mulher heterossexual e casada que mesmo assim possuía uma identidade "parcialmente no armário", como judia, gorda, apreciadora de erotismo anal e, finalmente, vítima de câncer de mama -"um câncer "feminino", cujas lições para viver intensamente eu me vi aprendendo em larga escala de homens com Aids".

"Escrita branca"
O ativismo em relação à Aids se encontrava em seu ápice em 1993, quando saiu "Tendencies" [Tendências, Duke University Press]. E Sedgwick triunfantemente identificou esse como o "momento homossexual". A teoria homossexual era o desenvolvimento inevitável dos estudos gays e lésbicos, o seu destino manifesto. Todas as escolas de pensamento que começaram como movimentos de protesto de minorias no fim do século 20 seguiram trajetória similar: a crítica afro-americana começou como estética negra e virou estudos de raça, a crítica feminista passou de um foco na imaginação feminina a estudos de gênero.
Tal trajetória fornece a uma escola de pensamento acesso à história da literatura e ao cânone: acesso que não é restrito pela identidade de um autor ou pela identidade racial ou sexual de suas personagens; e serve para problematizar a categoria dominante, seja ela "escrita branca", escrita de homens ou outra qualquer. Batizar essa teoria em particular de "homossexual" em vez de estudos "gays" também deslocou a ênfase da orientação sexual e de gênero do crítico.
De fato, observa Sedgwick em "Touching Feeling", "todos sabem que há algumas lésbicas e alguns gays que não poderiam ser vistos como homossexuais, enquanto há pessoas que vibram ao acorde do homossexualismo sem ter contato com muito erotismo de mesmo sexo". Ela mesma seria a primeira entre esses outros, sendo frequentemente chamada de rainha da teoria homossexual. Ao mesmo tempo, não é tão fácil assim alegar acesso à homossexualidade. Apesar de Sedgwick adicionar à palavra "homossexualidade" o adjetivo "auto-identificada", seria enganoso acreditar que se declarar como um dos que "vibram ao acorde da homossexualidade" significa que você pode se juntar à turma mais do que afirmar que você possui uma alma. Existe uma comunidade implícita que precisa concordar com a sua auto-identificação, e um sentido escorregadio do termo como identidade e conjunto de comportamentos -algo de fabuloso, algo de limítrofe, algo de extremo: "Em uma palavra", diz Sedgwick, "flamejante".

Esnobismo intelectual
Será que Sedgwick é flamejante? Em "Um Diálogo de Amor" ela explorou e expôs as contradições e desapontamentos de suas teorias, sua vida pessoal e história familiar, em uma espécie de diário de suas conversas com sua terapeuta, Shannon van Wey. A verdadeira Eve está em um casamento de longa duração, é estudiosa, tímida, relativamente fiel a seu marido, heterossexual -bem diferente da persona erotizada e transgressiva evocada por sua escrita: "De um ponto de vista, você teria de dizer que eu sou incrivelmente unissexual, pouco exploradora... e no que diz respeito a "fazer sexo", a coisa não poderia ser mais higiênica e rotinizada para mim... Ao mesmo tempo, há esta pessoa altamente sexualizante que eu sou -cujos trabalho, políticas e amizades... são infundidos com significados, motivos e conexões sexuais-homossexuais- tanto quanto qualquer outra pessoa que você possa encontrar". Dos muitos e dolorosos segredos expostos nesse livro, talvez o mais dolorosamente constante seja o esnobismo intelectual. Sedgwick sabe que é obcecada pela inteligência ou "esperteza" dos outros. O pior dos crimes é ser estúpido, complacente, pouco interessante; dizer coisas que vêm diretamente do jardim-de-infância da teoria, ou mesmo, Deus proíba, do "curso de introdução ao desconstrutivismo". Sedgwick relembra que por toda a sua vida adulta todas as suas terapeutas reclamaram do fato de ela ser "intelectualizante". Ainda assim, ela se deprime com isso, ela deseja ser mais real. Ao final da terapia, começa a se voltar ao artesanato, aos têxteis, se afastando da escrita. Suas instalações de fibra foram uma solução atrasada a sua combinação de exibicionismo e timidez: "É surpreendente que eu não tivesse chegado antes à combinação artesanal de silêncio com produtividade e apresentação". Então por que romper o silêncio agora? Em "Touching Feeling", Sedgwick continua a tentar associar intelectualmente o homossexualismo a outros estados, afetos, questões e intenções, primariamente por meio do trabalho de Silvan Tomkins, que escreveu sobre a vergonha ser um "tipo de radical livre que (em diferentes pessoas e diferentes culturas) se liga a e intensifica ou altera o significado de quase qualquer coisa". As formas de vergonha são versáteis, "disponíveis para o trabalho de metamorfose, reestruturação, refiguração, transfiguração, carregamento afetivo e simbólico e deformação". Sedgwick crê que isso se associe ao estado da homossexualidade e à estigmatização: "Para algumas pessoas (homossexuais), a vergonha é apenas o primeiro fato da identidade, e continua a sê-lo permanentemente, de forma estruturante". Simultaneamente, Sedgwick é atraída de novo pelo problema da escritura e do pensar não-dualístico, afetivo, reparativo. As observações pessoais espalhadas pelo livro sobressaem vividamente contra o fundo de pensamento convoluto, embora Sedgwick também escreva sobre si mesma de maneira distanciada e elaborada. Ela explica a natureza descentralizada do livro em termos da "consciência decrescente do autor em ter um forte senso de gravidade em um campo intelectual específico", uma consciência aguçada por "encontros como com a mortalidade e o budismo". Explica a ausência de sexo no livro em termos bastante biológicos: "Muito do motivo é o acaso em minha própria vida: à medida que o tratamento do câncer almeja aniquilar todo traço de hormônios circulantes, a sexualidade passa a ser uma forma de reflexão cada vez menos estimulante". Na última década, ela nos conta que experimentou com formas menos restritas, rigorosas e estruturadas do que, até mesmo, a escrita da crítica: poesia, "muito de jornalismo a respeito de câncer; e, cada vez mais, o trabalho não-linguístico da arte têxtil. Ao mesmo tempo, de forma curiosa, a minha vida em classe se tornou consistentemente mais texturizada e relaxada".

Afeto tenso
"Touching Feeling" é entretanto qualquer coisa menos um livro relaxado: o afeto que emerge de suas páginas é tenso e esforçado. Parece carregado de obrigação intelectual, um objeto pesado apesar de breve, nada etéreo, como o eram as instalações aéreas que ela fazia ao mesmo tempo.
Ao final, no entanto, o tom muda. Sedgwick escreve sobre a pedagogia do budismo, os "ensinamentos do "bardo'", de forma a condensar o espaço entre intelecto e apreensão, entre conhecer e entender. "É uma pedagogia de auto-apagamento", diz ela, "que utiliza o eu de modo a abrir espaço para outros, e que vê a reencarnação como uma forma de colocar a vida humana no contexto de um projeto de aprendizado muito mais longo e complexo". O "Livro Tibetano dos Mortos" oferece, ela acredita, "um espaço no qual articular a subjetividade do morrer" e o ""bardo" que se estende do diagnóstico à morte", e nesse ensaio o próprio livro finalmente adquire textura e uma respiração mais relaxada.


Elaine Showalter é professora no departamento de inglês da Universidade Princeton. É uma das fundadoras da crítica feminista nos EUA e autora de, entre outros, "Anarquia Sexual" (ed. Rocco) e "Inventing Herself" (Inventando a Si Mesma, ed. Picador). A íntegra deste texto foi originalmente publicada no "London Review of Books".
Tradução de Victor Aiello Tsu.


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