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O TERREIRO
DA CONTRADIÇÃO
UMBANDA ADOTOU RITUAIS DA MACUMBA POR SEREM MAIS "DRAMÁTICOS"
QUE OS DO KARDECISMO, MAS BUSCOU SE "DESAFRICANIZAR" AO REJEITAR FEITIÇARIAS E MATANÇAS
História da religião foi marcada pela hostilização
da polícia, da Igreja Católica e de neopentecostais
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Marlene Bergamo/Folha Imagem
| Adeptos participam de culto organizado por colégio de umbanda na zona leste de São Paulo |
MARCELO BERABA
DA SUCURSAL DO RIO
A umbanda comemora neste ano seu
primeiro centenário. Reconhecida
por sua capacidade
de assimilar e misturar rituais,
crenças e símbolos do catolicismo popular, do espiritismo
kardecista, dos cultos africanos, da pajelança indígena, de
tradições orientais e, mais recentemente, do esoterismo, ela
continua a perseguir os mesmos objetivos de quando foi
criada: respeito e reconhecimento social.
A religião ainda é estigmatizada e tem dificuldades de firmar identidade própria e uma
imagem positiva -a maioria
dos brasileiros ouvidos em
2007 pelo Datafolha acha que a
umbanda é coisa do demônio.
Perseguida durante décadas
pela polícia, depois pela Igreja
Católica e, mais recentemente,
pelos evangélicos neopentecostais, ela teve seu apogeu entre o final dos anos 1950 e o início da década de 1980.
Hoje, sofre um pequeno declínio de seguidores, segundo o
censo de 2000, mas está presente em diversos países, é sacudida por movimentos de revitalização, principalmente em
São Paulo, e influencia outras
religiões.
Espiritismo abrasileirado
No dia 15 de novembro de
1908, exatos 19 anos após a Proclamação da República, o Caboclo das Sete Encruzilhadas
se manifestou numa sessão espírita kardecista em Neves, São
Gonçalo, município fluminense próximo ao Rio, então capital federal. Foi um escândalo.
A Doutrina Espírita do francês Allan Kardec [pseudônimo
de Hippolyte Léon Denizard
Rivail, 1804-1869] tinha seguidores no Brasil desde 1865.
Embora haja indícios de incorporações de espíritos de índios e de escravos negros nas
diversas formas de macumba
que existiam no Rio de Janeiro
do século 19, os kardecistas não
os admitiam por considerá-los
espíritos marginais e pouco
evoluídos. Quem recebeu o caboclo indesejado, e logo em seguida o preto-velho Pai Antônio, foi Zélio Fernandino de
Moraes, um rapaz de 17 anos
que se preparava para entrar
para a Escola Naval.
Os registros daquele episódio
variam conforme a fonte.
Em um dos relatos, reproduzido no livro "Umbanda Cristã
e Brasileira" (J. Alves Oliveira,
1985), o caboclo teria assim se
revelado: "Se julgam atrasados
esses espíritos dos pretos e dos
índios [caboclos], devo dizer
que amanhã estarei em casa
deste aparelho [o médium Zélio de Moraes] para dar início a
um culto em que esses pretos e
esses índios poderão dar a sua
mensagem e, assim, cumprir a
missão que o plano espiritual
lhes confiou".
Em 1970, Ronaldo Linares,
hoje presidente da Federação
Umbandista do Grande ABC,
ouviu a história da revelação do
próprio Zélio (1891-1975). O espírito se apresentou como caboclo brasileiro e foi contestado por um médium kardecista,
que disse que via nele "restos
de vestes clericais".
O caboclo então teria explicado: "O que você vê em mim
são restos de uma existência
anterior. Fui padre, meu nome
era Gabriel Malagrida e, acusado de bruxaria, fui sacrificado
na fogueira da Inquisição por
haver previsto o terremoto que
destruiu Lisboa em 1755. Mas,
em minha última existência física, Deus concedeu-me o privilégio de nascer como um caboclo brasileiro".
Quando perguntaram seu
nome, respondeu: "Se é preciso
que eu tenha um nome, digam
que sou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, pois para mim não
existirão caminhos fechados.
Venho trazer a umbanda, uma
religião que harmonizará as famílias e que há de perdurar até
o final dos séculos".
A sina da umbanda, desde
então, é trabalhar para impedir
que os seus caminhos se fechem. A adoção do 15 de novembro como marco da criação
da umbanda é uma convenção
da década de 1970.
Embora o registro da incorporação seja de 1908, o primeiro terreiro, o Centro Espírita
Nossa Senhora da Piedade, do
mesmo Zélio de Moraes, teria
sido criado na década de 1920, e
o estatuto que norteou o seu
funcionamento e serviu de referência para dezenas de outros terreiros umbandistas que
seguiram as orientações ditadas por Zélio é de 1940.
A nova religião nasce de uma
aparente contradição.
De um lado, o desejo de se diferenciar das práticas de feitiçaria dos cultos de origem africanos considerados primitivos;
do outro, a decisão de abrasileirar os espíritos que se manifestavam por meio dos médiuns,
dando espaço de honra aos índios e aos escravos africanos e
descendentes.
A umbanda deu os seus primeiros passos no mesmo período em que a sociedade brasileira vivenciava um forte processo de transformação. A hegemonia econômica da agricultura começava a ceder espaço
para a nascente industrialização, que trazia consigo novas
classes sociais.
A antropóloga norte-americana Diana Brown [leia entrevista na pág. ao lado], pioneira
no estudo da umbanda na década de 1960, constatou que os
fundadores da religião eram
majoritariamente de classe
média, insatisfeitos com o espiritismo kardecista que praticavam e observadores dos centros de macumba que funcionavam nas favelas.
"Eles passaram a preferir os
espíritos e divindades africanos
e indígenas presentes na macumba, considerando-os mais
competentes do que os altamente evoluídos espíritos kardecistas na cura e no tratamento de uma gama muito ampla
de doenças e outros problemas", escreveu em "Uma História da Umbanda no Rio"
(1985).
Os fundadores achavam os
rituais da macumba mais "estimulantes e dramáticos" do que
as sessões de espiritismo, mas
rejeitaram aqueles com matança de animais e incorporação
de espíritos que consideravam
diabólicos, como os de Exu.
O esforço inicial foi no sentido de desafricanizar a umbanda e "purificá-la". É o espiritismo de umbanda, logo umbanda
branca, que adota princípios e
ícones do catolicismo, crenças
e compromissos do kardecismo
(como a mediunidade, a reencarnação e a prática da caridade) e adere à magia e ao culto
aos orixás africanos, mas sem a
feitiçaria e as matanças da macumba e da quimbanda.
O desafio inicial era como, ao
mesmo tempo, incorporar essas aquisições e se diferenciar
de suas matrizes. O primeiro
terreiro mantém a referência
kardecista (Centro Espírita) e
homenageia um ícone católico
(Nossa Senhora da Piedade).
Décadas de perseguições
Há um fator objetivo para
aqueles médiuns tentarem se
distinguir da macumba.
Apesar da liberdade religiosa
conquistada com a República, o
Código Penal de 1890 proibia
"praticar o espiritismo, a magia
e seus sortilégios". O código de
1942 ainda reprimia os "feiticeiros", mas não todos, apenas
os acusados de usarem os seus
poderes para o mal, segundo
estudos da antropóloga Yvonne Maggie.
Um parêntese: na interpretação de Yvonne Maggie, ao combater a feitiçaria, o código de
1890 de alguma maneira indicava que o Estado e sua elite
acreditavam nos poderes sobrenaturais dos feiticeiros e
por isso os perseguiam.
A primeira fase de expansão
da umbanda coincide com as
mudanças sociais e políticas
ocorridas na década de 1930 e
com a ditadura nacionalista e
populista de Getúlio Vargas
(1930 a 1945). Segundo Diana
Brown, a escolha pela umbanda
de símbolos como os caboclos e
pretos-velhos foi influenciada
pelo "intenso nacionalismo do
regime de Vargas e pelo seu esforço de criar uma cultura nacional como base para a unificação do povo brasileiro".
A valorização dos índios e escravos gerou a idéia de que a
umbanda é a única religião genuinamente brasileira, o que é
contestado por vários estudiosos. O antropólogo Émerson
Giumbelli lembra que na década de 30, quando a umbanda se
consolidou, várias religiões
surgiam ou se afirmavam com o
mesmo caráter nacionalista.
Giumbelli cita os casos do
kardecismo, com o lançamento
em 1938 do livro que tornou conhecido o médium Chico Xavier [1910-2002], "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", e o Santo Daime, criado
no Acre.
Mesmo identificados com as
diretrizes do governo Vargas,
os umbandistas foram perseguidos durante o Estado Novo.
O Museu da Polícia, no Rio,
guarda uma coleção de cerca de
200 imagens, vestes, guias e objetos dos cultos apreendidos
naquela época.
O acervo, tombado, está
guardado em armários de aço
no prédio de 1910 da rua da Relação (centro) onde funcionou
a Polícia Central do Distrito
Federal e, na ditadura militar, o
Dops (Departamento de Ordem Política e Social). A Coleção de Cultos Afros foi durante
muitas décadas identificada como Coleção de Magia Negra.
As primeiras federações umbandistas foram criadas para
enfrentar a discriminação social e a repressão policial.
Uma vítima famosa da polícia foi Euclides Barbosa (1909-88), precursor da umbanda em
São Paulo. Mais conhecido pelo
apelido de Jaú, poucos pais-de-santo apanharam tanto e foram
presos tantas vezes quanto ele,
a ponto de ser considerado por
alguns líderes "o grande mártir" da religião.
Antes de ser pai-de-santo,
Jaú se tornou conhecido como
zagueiro do Corinthians (1932-37) e da seleção brasileira que
disputou a Copa de Mundo de
1938 na França.
Um dos idealizadores das
festas de Iemanjá no litoral
paulista no final da década de
1950, Jaú foi perseguido durante anos pela Guarda Civil, e há
relatos de torturas e humilhações públicas que sofreu.
Os anos dourados
A umbanda começou a respirar na década de 1950, mas não
por muito tempo. A redemocratização do país, em 1945,
propiciou o ambiente de liberdade religiosa. Em 1953 foram
criadas em São Paulo as duas
primeiras federações umbandistas (no Rio, já existia uma
desde 1939, fundada por Zélio
de Moraes). Em 1964, caiu a
exigência de registro obrigatório dos terreiros na polícia, e foi
mantido apenas o registro civil
em cartórios públicos.
Levantamento feito pelos
antropólogos Lísias Nogueira
Negrão e Maria Helena Concone mostra que, na década de
1940, em São Paulo, apenas 58
terreiros umbandistas se registraram nos cartórios, para 803
que se declararam espíritas.
Na década de 1950, a proporção se inverteu: 1.025 terreiros
se assumiam de umbanda contra 845 centros espíritas e apenas um terreiro de candomblé.
O apogeu ocorreu na década de
1970, quando foram registrados 7.627 terreiros de umbanda, 856 de candomblé e 202
centros espíritas.
A perseguição policial arrefeceu, mas não terminou, com o
fim da ditadura de Vargas.
Na década de 1950, eles ganharam um novo inimigo
igualmente forte, a Igreja Católica. A campanha religiosa nos
púlpitos e na imprensa só diminuiu depois do Concílio Vaticano 2º (1962-65), mas a trégua
foi curta. A partir da década de
1970, eles passaram a ser perseguidos com um vigor ainda
maior pelos seguidores das novas religiões pentecostais.
Os umbandistas têm recorrido à Justiça contra a intolerância. A ação mais importante,
patrocinada pelo Superior Órgão de Umbanda do Estado de
São Paulo, foi ganha em 2005
na Justiça Federal contra as redes Record e Mulher, ambas da
Igreja Universal, e aguarda manifestação do Superior Tribunal de Justiça. O Ministério Público denunciou os programas
que enfocaram "de maneira negativa e discriminatória as religiões afro-brasileiras".
No Rio, a ação das igrejas
neopentecostais foi fulminante
nas favelas. No morro Dona
Marta, zona sul, funcionaram,
até meados da década de 1980,
seis terreiros de umbanda, um
de candomblé e um de espiritismo de mesa.
Todos acabaram, e hoje é esse o número de templos de
igrejas neopentecostais.
No censo de 2000, 432 mil
brasileiros se declararam umbandistas, uma queda de 20%
em relação ao censo de 1991. A
tendência de queda é real, mas
é bem provável que o número
de fiéis seja bem maior porque
muitos não se declaram publicamente por medo ou vergonha. Muitos freqüentadores
procuram os centros para conselhos ou curas, mas não se
consideram umbandistas.
Apesar disso, a religião parece forte e renovada em cidades
como São Paulo -segunda capital em número de seguidores,
depois do Rio- e Porto Alegre,
matriz da expansão da umbanda para o Uruguai e a Argentina
a partir da década de 1970.
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