São Paulo, domingo, 30 de março de 2008

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São Paulo não pode parar

Psicanalista ataca a negligência das autoridades e sugere medidas simples para desafogar o trânsito na capital paulista

RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

O recente "pacote" anunciado pela prefeitura para o trânsito de São Paulo vem ensejando críticas pela sua "timidez" -esse é o termo empregado pelos especialistas- e pela própria demora em sair das gavetas dos órgãos competentes.
É claro que não existem soluções mágicas para o descalabro produzido por anos de negligência, pela falta de planejamento integrado nos vários níveis de governo, pelo descaso com o transporte público e por outros fatores de amplo conhecimento público.
Mas gostaria de chamar a atenção para alguns aspectos que, me parece, não foram ainda levantados nesse debate. Faço-o na condição de motorista e de usuário eventual do transporte coletivo, na esperança de sensibilizar os que têm nas mãos o poder de melhorar alguma coisa no caos em que se transformou a circulação em nossa cidade.

Caça ao tesouro?
Muito se fala sobre a necessidade de tirar carros das ruas, mas pouco se reflete sobre como estimular o motorista a se servir do transporte público.
Ora, quem tenta utilizar o sistema de ônibus de São Paulo se depara com alguns absurdos que poderiam ser facilmente sanados. Em primeiro lugar, a ausência de um mapa das linhas -e não venham dizer que é impossível elaborá-lo: numa cidade como Londres, de extensão comparável à da nossa capital e com um número equivalente de linhas, o "bus map" é claro, simples de usar e pode ser encontrado em qualquer estação do metrô.
Aqui, a imensa maioria dos pontos é assinalada por um totem fincado no chão, sem nenhuma indicação de quais linhas param ali ou em quais horários (mesmo aproximados).
O sistema de numeração é de tamanha complexidade que ninguém se refere a ele; nos veículos é indicado apenas o destino, o que confunde o usuário, já que dezenas de trajetos levam por caminhos diferentes a um mesmo terminal.
Afixados em pequenas placas à porta de entrada, os itinerários só podem ser lidos no momento do embarque. Sem que se aspire à perfeição, não seria simples copiar o que já deu certo em outras cidades? Até no Rio de Janeiro os pontos trazem informações detalhadas; em Paris, o percurso é indicado por placas colocadas ao longo dos veículos e também dentro deles. Etc. etc.
Tudo isso desestimula o motorista a se servir do transporte coletivo. A idéia dos ônibus executivos ou expressos, tentada alguns anos atrás, foi abandonada: por quê? Se o objetivo é tirar carros das ruas, não seria lógico oferecer a quem está habituado ao conforto (?) do automóvel um motivo que de fato o leve a deixá-lo na garagem?
Mas ninguém com o juízo no lugar fará isso, se a opção for se espremer em veículos sujos, barulhentos e de cujo percurso não se faz idéia antes de sair de casa.
O transporte ferroviário, no qual tanto se aposta, não forma uma rede: as linhas do metrô e da CPTM se cruzam em pouquíssimas estações, tanto no interior de cada sistema quanto entre eles. De novo, o espírito de rotina dirá que se trata de sistemas diferentes.
Valha a lição de Nova York, cidade na qual antigamente tampouco se cruzavam as linhas do metrô, exploradas por companhias particulares: problema resolvido unificando o sistema sob a égide do governo municipal.

Interligações
Para dar um exemplo: por que não ligar por trilhos as estações Vila Madalena (metrô) e Cidade Universitária (CPTM)?
Esses poucos quilômetros são cobertos atualmente por meio da "ponte Orca" -que vai pela superfície, entupindo ainda mais as congestionadas vias da cidade.
Uma das razões pelas quais milhares de motoristas preferem usar seus carros é que, se tomarem um trem, terão de descer longe demais do seu destino -o que alguns pontos de baldeação estrategicamente localizados poderiam resolver.
Uma outra é a ausência de escadas rolantes em número suficiente e de uma coisa tão simples como bancos ao longo das estações. Repito: se se quer que o motorista troque o transporte individual pelo coletivo, é preciso lhe oferecer um mínimo de racionalidade e conforto, e não ameaças como pedágio urbano ou mais horas do infernal rodízio.
Mas a própria circulação de ônibus e automóveis enfrenta dificuldades que poderiam ser diminuídas com um pouco de bom senso. Uma delas são ruas nas quais de repente aparece uma placa de contramão, obrigando o motorista a dar voltas e mais voltas para prosseguir na mesma direção.
A topografia da cidade e o desenho dos quarteirões impedem, na maioria das vezes, seguir por uma via paralela-quando isso acontece, como na área quadriculada dos Jardins, os congestionamentos são menores, e isso apesar da enorme quantidade de veículos que por ali trafegam.
Sugestão: revisar a planta de circulação, de modo a eliminar tais obstáculos. Outro absurdo inexplicável é a proliferação de tartarugas, que diminuem o leito carroçável e impedem a fuga de uma via entupida.
O princípio subjacente à circulação em São Paulo é a proibição de virar à esquerda, obrigando o motorista a fazer múltiplas conversões à direita (quase nunca de apenas um ou dois quarteirões) e, portanto, a ocupar muito mais espaço nas ruas, e por muito mais tempo, do que seria necessário para concluir sua viagem.
Dir-se-á que a conversão à esquerda em avenidas movimentadas atrapalha o fluxo em sentido contrário. Uma visita a Curitiba mostra que basta diminuir a largura do final das ilhas, criando uma pista exclusiva para quem precisa virar à esquerda -e isso sem falar no farol de três tempos ou na simples presença de um guarda de trânsito.
Vias radiais poderiam ter sentido único em todas as faixas em determinadas horas do dia, como há 40 anos se faz no Rio: as avenidas da orla vão para o centro de manhã e para o bairro à tarde, e não consta que ali haja mais acidentes do que em outros lugares.
Criar obstáculos à circulação em vez de os remover, porém, parece ser o desígnio dos nossos planejadores de tráfego. Dois exemplos entre dezenas. Um: acabam de proibir entrar à esquerda na esquina da avenida Paulista com a rua Bela Cintra, bloqueando uma rota paralela à rua da Consolação e dificultando a vida de quem precisa ir para a Augusta e ruas próximas num momento em que se realizam obras na avenida. Por quê? Mistério.
Dois: em vez de terem mãos de direção alternadas, cinco ou seis ruas em seqüência deságuam na Rebouças, na João Moura e na Sumaré, obrigando quem quer sair destas a rodar quilômetros inúteis até conseguir seu intento.
Último lembrete: em Paris, os corredores de ônibus são delimitados por uma faixa de cimento no leito da rua, que impede discreta mas eficazmente a entrada de carros indesejáveis. Conhecendo os hábitos dos nossos motoristas, não seria o caso de pensar em algo semelhante, em vez de inócuas faixas pintadas ou de fileiras de cones de plástico?
Sei perfeitamente que o problema do trânsito em São Paulo só se resolverá com medidas em vários níveis e com tempos variados de implantação. Mas, para que a palavra trânsito recupere entre nós o sentido de passagem ou circulação, em vez de significar rios de carros imóveis, é preciso algum arrojo. E, sobretudo, uma mudança de mentalidade que permita não descartar soluções simples apenas porque exigem pensar em direções diferentes daquela a que estão habituados os responsáveis pelo tráfego urbano.
"São Paulo não pode parar" -o sentido literal desse velho bordão deveria ocupar um pouco mais do tempo e do engenho dos que nos governam.


RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais! .


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