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São Paulo não pode parar
Psicanalista ataca a negligência das autoridades e sugere medidas simples para desafogar
o trânsito na capital paulista
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
O recente "pacote"
anunciado pela
prefeitura para o
trânsito de São
Paulo vem ensejando críticas pela sua "timidez" -esse é o termo empregado pelos especialistas- e pela
própria demora em sair das gavetas dos órgãos competentes.
É claro que não existem soluções mágicas para o descalabro
produzido por anos de negligência, pela falta de planejamento integrado nos vários níveis de governo, pelo descaso
com o transporte público e por
outros fatores de amplo conhecimento público.
Mas gostaria de chamar a
atenção para alguns aspectos
que, me parece, não foram ainda levantados nesse debate. Faço-o na condição de motorista
e de usuário eventual do transporte coletivo, na esperança de
sensibilizar os que têm nas
mãos o poder de melhorar alguma coisa no caos em que se
transformou a circulação em
nossa cidade.
Caça ao tesouro?
Muito se fala sobre a necessidade de tirar carros das ruas,
mas pouco se reflete sobre como estimular o motorista a se
servir do transporte público.
Ora, quem tenta utilizar o
sistema de ônibus de São Paulo
se depara com alguns absurdos
que poderiam ser facilmente
sanados. Em primeiro lugar, a
ausência de um mapa das linhas -e não venham dizer que
é impossível elaborá-lo: numa
cidade como Londres, de extensão comparável à da nossa
capital e com um número equivalente de linhas, o "bus map" é
claro, simples de usar e pode
ser encontrado em qualquer
estação do metrô.
Aqui, a imensa maioria dos
pontos é assinalada por um totem fincado no chão, sem nenhuma indicação de quais linhas param ali ou em quais horários (mesmo aproximados).
O sistema de numeração é de
tamanha complexidade que
ninguém se refere a ele; nos veículos é indicado apenas o destino, o que confunde o usuário, já
que dezenas de trajetos levam
por caminhos diferentes a um
mesmo terminal.
Afixados em pequenas placas
à porta de entrada, os itinerários só podem ser lidos no momento do embarque. Sem que
se aspire à perfeição, não seria
simples copiar o que já deu certo em outras cidades? Até no
Rio de Janeiro os pontos trazem informações detalhadas;
em Paris, o percurso é indicado
por placas colocadas ao longo
dos veículos e também dentro
deles. Etc. etc.
Tudo isso desestimula o motorista a se servir do transporte
coletivo. A idéia dos ônibus
executivos ou expressos, tentada alguns anos atrás, foi abandonada: por quê? Se o objetivo
é tirar carros das ruas, não seria
lógico oferecer a quem está habituado ao conforto (?) do automóvel um motivo que de fato o
leve a deixá-lo na garagem?
Mas ninguém com o juízo no
lugar fará isso, se a opção for se
espremer em veículos sujos,
barulhentos e de cujo percurso
não se faz idéia antes de sair de
casa.
O transporte ferroviário, no
qual tanto se aposta, não forma
uma rede: as linhas do metrô e
da CPTM se cruzam em pouquíssimas estações, tanto no
interior de cada sistema quanto
entre eles. De novo, o espírito
de rotina dirá que se trata de
sistemas diferentes.
Valha a lição de Nova York,
cidade na qual antigamente
tampouco se cruzavam as linhas do metrô, exploradas por
companhias particulares: problema resolvido unificando o
sistema sob a égide do governo
municipal.
Interligações
Para dar um exemplo: por
que não ligar por trilhos as estações Vila Madalena (metrô) e
Cidade Universitária (CPTM)?
Esses poucos quilômetros
são cobertos atualmente por
meio da "ponte Orca" -que vai
pela superfície, entupindo ainda mais as congestionadas vias
da cidade.
Uma das razões pelas quais
milhares de motoristas preferem usar seus carros é que, se
tomarem um trem, terão de
descer longe demais do seu
destino -o que alguns pontos
de baldeação estrategicamente
localizados poderiam resolver.
Uma outra é a ausência de escadas rolantes em número suficiente e de uma coisa tão simples como bancos ao longo das estações. Repito: se se quer que
o motorista troque o transporte individual pelo coletivo, é
preciso lhe oferecer um mínimo de racionalidade e conforto,
e não ameaças como pedágio
urbano ou mais horas do infernal rodízio.
Mas a própria circulação de
ônibus e automóveis enfrenta
dificuldades que poderiam ser
diminuídas com um pouco de
bom senso. Uma delas são ruas
nas quais de repente aparece
uma placa de contramão, obrigando o motorista a dar voltas e
mais voltas para prosseguir na
mesma direção.
A topografia da cidade e o desenho dos quarteirões impedem, na maioria das vezes, seguir por uma via paralela-quando isso acontece, como
na área quadriculada dos Jardins, os congestionamentos são
menores, e isso apesar da enorme quantidade de veículos que
por ali trafegam.
Sugestão: revisar a planta de
circulação, de modo a eliminar
tais obstáculos.
Outro absurdo inexplicável é
a proliferação de tartarugas,
que diminuem o leito carroçável e impedem a fuga de uma
via entupida.
O princípio subjacente à circulação em São Paulo é a proibição de virar à esquerda, obrigando o motorista a fazer múltiplas conversões à direita
(quase nunca de apenas um ou
dois quarteirões) e, portanto, a
ocupar muito mais espaço nas
ruas, e por muito mais tempo,
do que seria necessário para
concluir sua viagem.
Dir-se-á que a conversão à
esquerda em avenidas movimentadas atrapalha o fluxo em
sentido contrário. Uma visita a
Curitiba mostra que basta diminuir a largura do final das
ilhas, criando uma pista exclusiva para quem precisa virar à
esquerda -e isso sem falar no
farol de três tempos ou na simples presença de um guarda de
trânsito.
Vias radiais poderiam ter
sentido único em todas as faixas em determinadas horas do
dia, como há 40 anos se faz no
Rio: as avenidas da orla vão para o centro de manhã e para o
bairro à tarde, e não consta que
ali haja mais acidentes do que
em outros lugares.
Criar obstáculos à circulação
em vez de os remover, porém,
parece ser o desígnio dos nossos planejadores de tráfego.
Dois exemplos entre dezenas. Um: acabam de proibir entrar à esquerda na esquina da
avenida Paulista com a rua Bela
Cintra, bloqueando uma rota
paralela à rua da Consolação e
dificultando a vida de quem
precisa ir para a Augusta e ruas
próximas num momento em
que se realizam obras na avenida. Por quê? Mistério.
Dois: em vez de terem mãos
de direção alternadas, cinco ou
seis ruas em seqüência deságuam na Rebouças, na João
Moura e na Sumaré, obrigando
quem quer sair destas a rodar
quilômetros inúteis até conseguir seu intento.
Último lembrete: em Paris,
os corredores de ônibus são delimitados por uma faixa de cimento no leito da rua, que impede discreta mas eficazmente a entrada de carros indesejáveis. Conhecendo os hábitos
dos nossos motoristas, não seria o caso de pensar em algo semelhante, em vez de inócuas
faixas pintadas ou de fileiras de
cones de plástico?
Sei perfeitamente que o problema do trânsito em São Paulo
só se resolverá com medidas
em vários níveis e com tempos
variados de implantação. Mas,
para que a palavra trânsito recupere entre nós o sentido de
passagem ou circulação, em vez
de significar rios de carros imóveis, é preciso algum arrojo. E,
sobretudo, uma mudança de
mentalidade que permita não
descartar soluções simples
apenas porque exigem pensar
em direções diferentes daquela
a que estão habituados os responsáveis pelo tráfego urbano.
"São Paulo não pode parar"
-o sentido literal desse velho
bordão deveria ocupar um pouco mais do tempo e do engenho
dos que nos governam.
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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