São Paulo, domingo, 30 de abril de 2000


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+ infância
O desenho animado japonês cria um humanismo específico e mexe com as pulsões infantis
Psicanálise dos Pokémons

Divulgação
O garoto Ash (ao centro), com o personagem Pikachu sobre seu ombro, e outras figuras do desenho Pokémon


Tales Ab'Sáber
especial para a Folha

Um fenômeno humano que faz sentido para uma criança sempre busca um sentido também na vida desse brinquedo de adultos chamado psicanálise. Os antigos contos e as cantigas, as formas do brincar ou os objetos de afinidade e eleição são algumas das formas simbólicas privilegiadas da vida infantil em que a psicanálise tem se detido. Hoje podemos pensar em formas e objetos criados na esfera da indústria do imaginário contemporâneo, a indústria da cultura e suas proposições de massa, e podemos conhecer algo de nossa alma nesse mundo de representações repetitivas e no efeito particular dessas novas formas sobre nossas crianças: por exemplo, no famoso desenho japonês Pokémon. Observemos a criança que assiste ao seu desenho. Ela necessita de uma casa, necessita estar relativamente satisfeita em suas necessidades físicas e psíquicas básicas, não pode estar com fome extrema ou com frio ou com dor, irritada ou assustada... A criança dispõe de um tempo livre que lhe pertence e no qual o desenho vem enraizar-se pelo próprio desejo, como forma de brincar. Há um senso de segurança no mundo conhecido em que se deixa ficar, prazer egóico não orgástico, pela estabilidade ambiental e psíquica que lhe permite concentrar-se, intimidade pela natureza própria da criação de sentido no ponto em que o desenho e alma se encontram. Podemos inverter a equação e pensar que, se uma criança assiste a um desenho, aquele momento psíquico traz em si todos os valores de estabilidade ambiental e de liberdade associativa própria ao brincar infantil e que instaura ao redor de si um campo virtual de humanidade, mesmo que ela não o conheça sempre, mas que tal momento -que agora se torna também uma forma de crítica à cultura- permite.

Dimensões prosaicas
Vejamos o desenho. Herdeiros da importante expressão social que são os mangás e conectados a uma cultura gráfica de qualidade, os desenhos animados japoneses têm forma particular. Os espaços representados incluem constantemente uma noção dramática que sustenta uma relação expressiva entre os planos, que podem variar e surpreender, de acordo com a intensidade própria do que se busca dizer. Essa variância imaginativa nas relações entre espaços gerais e primeiros planos também repercute de forma sensível na dimensão temporal do drama, definindo sentidos cuja fonte está na montagem, e não na representação pictórica. Tal poder de linguagem dos desenhos japoneses costuma sustentar um humanismo específico, em que personagens crianças habitam mundos esboçados como reais, e é frequente o desenho se deter sobre dimensões prosaicas e cotidianas da existência ou reações psicológicas contextualizadas e compreensíveis. Tornam-se assim espécies de objetos da vida ao se deixarem invadir pela matéria comum de que a vida é feita.
Por outro lado, é fácil encontrarmos adultos inconformados com o incompreensível, para eles, da tentativa de se comunicar com os termos próprios da alma infantil chamada Pokémon. Nosso mundo parece não mais reconhecer aquilo que as crianças possuem e que Schiller denominava de ingênuo: a base da expressão verdadeira e de uma dialética essencial de reencontro na cultura com a natureza em nós mesmos. Nossa desconfiança frente à curiosidade e ao amor infantil por um objeto que lhes permita brincar é o índice nítido de nossa alienação diante das formas do humano que não coincidem com as nossas, quando nós mesmos perdemos a curiosidade e a capacidade de brincar.
A psicanálise contemporânea é crítica em relação a esse processo em que as qualidades dos mundos humanos se esvaem em nome de uma universal abstração, que no limite é nossa identificação com a abstração universal de valor que é o dinheiro. Os mundos humanos encarnados em seus objetos, em suas formas específicas, em sua historicidade única interessam hoje tanto quanto as forças básicas que constituem as formas do desejo:
"Imaginemos que tivéssemos à nossa disposição um museu onde as primeiras salas abrigassem os artigos e objetos da infância de um certo indivíduo de forma que estivessem penduradas na parede obras contendo partes do corpo da mãe que constituem os interesses eróticos e que são também fontes de angústia para a criança. Estas salas conteriam outros objetos como brinquedos, objetos inanimados e animais que promovem o desenvolvimento da criança, além dos quadros das representações dos objetos internos da criança. E assim, passando de uma ala para outra, presenciaríamos uma exposição que traçaria sucessivamente os estágios da vida humana. Seria um museu que requereria dias para ser explorado. Imaginem ser visitantes desse museu e que vocês estão assistindo a um movimento idiomático daquele indivíduo por meio de todas as formações potenciais dos objetos vivos -um tipo de assinatura estética daquele sujeito" (1).

Os poderes dos pokémons são múltiplos e nos dão noção do potencial criativo de cada criança


O potencial imaginativo de um desenho é incalculável. A imagem criada junto à intimidade da criança, com sua vida e suas amplas texturas sensoriais, a característica de expressar em si o movimento do tempo, desdobrado em sutis formas estéticas e éticas pertencentes à cultura compartilhada habitam a criança no registro mesmo em que ela, protegida de qualquer invasão, está livre para sonhar e criar o desenho. Mais de uma vez eu vi meus pacientezinhos, por vezes necessitados de suas análises, reclamarem que a sessão ocorria no mesmo momento do Pokémon. O desenho guardava o lugar importante de objeto subjetivo. Por isso eles trazem para o nosso trabalho seus pokémons nas formas mais variadas: figurinhas para jogarmos bafo, bonecos para lutas e evocação de poderes, bonecos da sala que viram pokémons, desenhos que serão espalhados pelo consultório e nos permitirão encontrar e aprisionar nossos pokémons em nossas pokébolas também inventadas... Eis o desenho na alma de nossas crianças dando forma, plasticidade e tema para apresentações absolutamente pessoais de ritmos, texturas e problemas humanos próprios de cada um: o menininho para quem escondi os pokémons que desenhamos para a sua busca e captura na pokébola não estaria também encenando o profundo desejo de ser reencontrado e preso na alma da mamãe, cuja presença real se tornou tão rara em sua vida?... Em meio à nossa brincadeira viva, como o desenho é vivo para as crianças, pudemos também conversar sobre tais temas controversos e de difícil expressão de sua alma...

Pokémons e pulsões
Também podemos reconhecer em nossos pokémons temas clássicos de nossa psicanálise adulta. Pequenos bichinhos que habitam nosso imaginário e que podem ser manipulados, guardados, carregados, nos lembram o mundo das pulsões parciais orais e anais e sua criação de fantasia particular. Desde que Freud enunciou a equação simbólica que conecta inconscientemente fezes e bebês, sabemos que a vida pulsional humana é rica de um imaginário próprio, onde partes e sentidos corpóreos podem habitar a alma em formação sob a forma viva de pequenos e estranhos seres, como bebês ou ratos...(2). Winnicott, aprendendo com Melanie Klein, chegou a transformar a si mesmo em matéria de sonho para que as crianças enunciassem esse mundo mágico a si mesmas: "O principal é que ela vê coisas marrons saindo de buracos. Mostra-se ansiosa por dar detalhes de tais formas grotescas e más e estranhos animais. Existe também uma fada com um nome fantástico: "Ela é boazinha, tudo esta bem quando ela está lá, seu verdadeiro nome é Heather" [trata-se do nome da própria menina". Ela parecia quase surpresa em se dar conta de sua própria existência real, sentindo-se mais à vontade no seu mundo encantado. Ela sente como se os genitais estivessem cheios dessas coisas grotescas marrons, que ela tem que estar sempre tirando através do ato de coçar. Eu me aventuro a fazer uma pergunta: "Como elas entram dentro de você?". "Bem", ela responde, "eu as engulo com a minha comida. Sabe, eu gosto muito de fígados e salsichas. E é por isso que elas são na maior parte marrons". Não se trata exatamente de uma adivinhação se dissermos que, em sua fantasia inconsciente, ela comeu pessoas boas e más e pedaços de pessoas -e que, de acordo com o amor e o ódio envolvidos, foi enriquecida ou oprimida em seu mundo interno, respectivamente por objetos intensamente doces ou apavorantemente grotescos." (3) As múltiplas formas de pequenos animais em suas mais variadas situações podem contatar de forma particular as marcas e fantasias pulsionais de uma criança. A impressão psíquica mais profunda do contato particular entre pulsão e representação que sustenta mesmo o bloco mágico de nosso inconsciente encontraria no imaginário do desenho formas para o seu movimento. É assim que, no episódio em que aparece o pokémon inorgânico Magnamite, surgem também os monstrinhos pokémons "feitos de meleca", que são massas de matéria marrom e malcheirosa, que entram pelos buracos e canos da usina de energia elétrica da cidade. É necessário vencê-los em sua dimensão anal que ganha autonomia, removê-los de todos os buracos e passagens que impedem que a energia possa voltar para a vida da cidade. Podemos imaginar que a menininha Heather, 7, tomada por fantasias que giravam ao redor de formas muito semelhantes às do desenho, poderia ficar profundamente (em um sentido psicanalítico) impressionada. Tal matéria coincidente de alma e mundo poderia fazer efeito nela, seja para encontrar formas de desviar os investimentos e as fixações inconscientes, seja para reinvesti-los e, até mesmo, adoecer.

O raio verde
Há assim uma hipótese psicanalítica sobre um estranho fenômeno de saúde pública ocorrido com um episódio dos pokémons. Trata-se do famoso raio verde saído da cabeça de um certo pokémon, que fez com que algumas dezenas de crianças muito pequenas no Japão entrassem em convulsão. Para os neurologistas, parece que a frequência estroboscópica do raio coincidiu com uma certa frequência de processamentos neurológicos das crianças, provocando o pane.
Se as hipóteses psicanalíticas levantadas aqui -do grande investimento imaginativo que dá vida psíquica ao desenho, e de sua operação em níveis simbólicos inconscientes- tiverem alguma validade, podemos pensar que as crianças que foram atingidas pelo raio do monstrinho de fato podem ter se sentido atingidas por tal arma, que em sua vivência psíquica o desenho ocupava um espaço de ser, um simultâneo dentro e fora, real e sonho. As cargas transferenciais colocadas na experiência real para a alma da criança fizeram simplesmente com que elas fossem atacadas, em fantasia que tomou o psiquismo desde fora, pelos terríveis raios do assustador pokémon. A vivência psíquica lançou essas crianças no abismo da luta de vida e morte com o monstrinho vivo da TV. É dessa forma que todo pai e mãe já viram seus filhos adoecer diante de certo filme ou desenho.
Há ainda outros temas nos pokémons, dos mais ricos à alma. Os poderes de cada animalzinho nos falam de armas particulares de cada um de nós em nosso embate criativo com o real, falam mesmo da forma própria do self de cada criança humana que visa a encontrar em uma parte material do mundo, resistente, a própria condição de se expressar, segundo a própria forma. Os poderes dos pokémons são múltiplos e nos dão a noção do que é o potencial criativo de cada criança humana, em busca de uma especificidade única, que se expresse em um mundo compartilhado e real, o da cultura.
Agora pensamos a identificação das crianças com as formas simbólicas próprias aos monstrinhos. A vida psíquica humana, na origem, parece incluir toda a forma possível de ser em si, seja animal, seja a vida dos objetos, desenvolvendo momentos de identificação específicos às fases de seu percurso simbólico. Assim, as crianças bichinhos ou crianças coisas são fundamentos identificatórios para as inscrições mais avançadas no mundo humano. Freud pensou com um paciente seu:
"A noção a respeito de um rato está inseparavelmente comprometida com o fato de que este possui dentes afiados, com as quais rói e morde. Os ratos, contudo, não podem ter dentes tão afiados, ser devoradores e sujos impunemente: são cruelmente perseguidos e impiedosamente mortos pelos homens, como o paciente muitas vezes observara com grande terror. Com frequência havia-se apiedado das pobres criaturas. Ele próprio, porém, tinha sido um sujeitinho asqueroso e sujo, sempre pronto a morder as pessoas quando enfurecido, e fora assustadoramente punido por tê-lo feito. É bem verdade que ele podia ver no rato "uma imagem viva de si mesmo'" (4).
Naquela grave neurose havia uma transição identificatória de um tempo em que ainda se incluía em si os animais, os ratos, para o mundo de formas morais e estéticas humanas. Nos pokémons o centro de tal complexo movimento, que vai do mundo dos animais e dos bebês a eles fundidos até a possibilidade de ser uma criança diferenciada no mundo humano, parece estar colocado sobre o encantador personagem que se chama Pikachu.
Ele oscila de um tempo próprio à dependência absoluta, quando busca colo, cuidados, e registros simbólicos sensíveis próprios aos bebês, até uma grande independência, associada à compreensão dos sentidos na realidade compartilhada dos meninos que brincam, de forma egóica avançada. Parece indicar em sua composição dramatúrgica o tipo de movimento que toda criança vive, do colo ao mundo e do mundo ao colo, em oscilações cada vez mais amplas, em que os sentidos originados no tempo da dependência fundam e possibilitam os sentidos da jornada rumo à relativa independência.
A criança humana não se estrutura em relação à realidade e à própria realidade psíquica em um ato instantâneo, abstrato, mas em um lento processo concreto, em que a consciência e estrutura psíquica afloram muitas vezes o tempo simbólico próprio à dependência de um outro humano. Tal processo constitui uma história de nosso narcisismo primário, definida por ciclos de encontro objetivo do mundo e reencontro com a permanência necessária do objeto de cuidado, onde se vive uma simbólica de outra ordem. Certa vez uma professora do pré-primário me contou uma brincadeira inteiramente inventada pelas crianças de sua classe com o monstrinho Pikachu: quando eles faziam muita bagunça a professora dizia "Pikachu!", e então todos ficavam em silêncio e se concentravam na tarefa proposta... Por meio da presença simbólica de Pikachu as crianças mudavam de posição, do brincar livre e desorganizado movido pela própria fantasia ao brincar com método que possibilita o avanço sobre formas da cultura, o aprender. Pikachu parece habitar mais de um lugar psíquico, mas aqui não estamos falando de estrutura, falamos de movimento, de transições, da passagem pelo tempo que desloca um certo lugar psíquico na direção de um outro. Pikachu parece ser um símbolo da continuidade das formas psíquicas em expansão simbólica -e no movimento de sua constituição no mundo humano ele pode ser monstro, bicho, bebê ou criança que já brinca no mundo ético compartilhado dos adultos. Esta é uma das questões que a psicanálise de nosso tempo pode formular: como conceber modelos que nos dêem a noção de movimento e de passagem, como pensarmos modelos de processo, de "imagens-movimento" e "imagens-tempo", no interior mesmo dos raciocínios clínicos psicanalíticos. Tais movimentos psíquicos precisam buscar representatividade teórica, e aqui podemos avaliar as construções de Winnicott, todas definidas pelas idéias de processo e de transição, como um campo psicanalítico em que podemos deslumbrar o próprio movimento psíquico como constitutivo de um sujeito, e não as estruturas estáticas escalonadas em suas formas acabadas. Em Freud o ponto de vista dinâmico sobre o aparelho psíquico é aquele que integra em si a idéia de movimento e de jogo vivo entre as instâncias, mas talvez a principal forma-movimento que podemos encontrar ali seja o desenvolvimento ao redor do complexo de Édipo e sua superação.

Continuidade da existência
Não deixa de ser significativo que exatamente tal possibilidade de concepção mesma de uma imagem-movimento do psiquismo tenha sido fortemente reatada a um princípio estrutural, em que a vida experimentada em sua fluidez e capacidade de expansão simbólica voltou a ser paralisada pelo conceito. A noção de "continuidade da existência", central ao pensamento de Winnicott, me parece ser a expressão unificada da concepção de um psiquismo em movimento. É mesmo por meio de tal continuidade pelo que é descontínuo que cada um de nós se apropria do existir, da noção do ser um si mesmo e em si mesmo, base da saúde psíquica. Não é à toa que as crianças se impressionem tanto e dêem tanto valor a uma das principais características de seus Pokémons: a capacidade de evoluir ao longo do tempo em que se é, nunca antes representada no mundo dos desenhos animados.


Notas:
1. Cristopher Bollas, "Pulsional Impiedoso e Receptividade Materna", entrevista realizada pela revista "Percurso", departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapienteae, n. 20, 1998.
2. S. Freud, "Sobre as Teorias Sexuais Infantis", 1908.
3. D.W. Winnicott, "Apetite e Perturbação Emocional", 1936, em "Da Pediatria à Psicanálise", pág. 216, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988.
4."Notas sobre um Caso de Neurose Obsessiva", 1909, Edição Standard Brasileira, pág. 218, Rio de Janeiro.




Tales Ab'Sáber é psicanalista.


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