São Paulo, domingo, 30 de abril de 2000


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Antologia traz 260 poemas de Bertolt Brecht e abrange toda a obra em versos do autor de "Coral de Ação de Graças"
Uma lírica entranhada no século

Marcus Mazzari
especial para a Folha

Em um ciclo de "comentários" que dedica à poesia de Brecht no final dos anos 30, Walter Benjamin observa que, entre as diversas posturas que se encontram nessa obra, pela "apolítica", "não-social", o leitor procurará em vão: "A postura a-social do "Manual de Devoção" transforma-se, nos "Poemas de Svendborg", em postura social. Mas isso não é exatamente uma conversão. Nessa obra, não se incendeia o que anteriormente se idolatrara". O balanço é provisório, chegando apenas até o ciclo de poemas que Brecht escreve no exílio dinamarquês de Svendborg, mas exprime uma tendência que a trajetória posterior do poeta não fez senão reforçar.
É o que o leitor brasileiro pode constatar neste volume que compreende 260 poemas de Brecht. Como frequentemente ocorre com antologias, também aqui seria possível discutir os critérios que nortearam a seleção, questionar por exemplo a ausência de poemas mais "antológicos", como a "Lenda do Soldado Morto" (1918), o breve "rondel" "Tudo Se Transforma" ou o poema narrativo sobre a emigração de Lao-Tsé, em que Brecht tematiza também a resistência antifascista -poema excluído, segundo nota do tradutor, em virtude da "perfeição formal" que dificilmente se preservaria em outro idioma (para esses casos, Brecht prescrevia apenas a transposição das idéias e da atitude do autor; é o que poderia ter sido feito com alguns outros poemas rimados e metrificados).
Registre-se também que esta reedição ganharia muito com um estudo introdutório que possibilitasse uma melhor orientação na lírica brechtiana, tão entranhada na história do século 20. Mas, ressalvas à parte, é necessário sublinhar a sua representatividade: entre as imagens expressionistas de um poema que o adolescente escreve em 1913 e os versos elípticos de uma quadra escrita pouco antes da morte ("Se fôssemos infinitos"), o leitor poderá acompanhar a trajetória desse lírico que Benjamin admirava sem reservas e a quem Adorno iria atestar depois pleno domínio da "integridade da linguagem", sem que para isso, ao contrário de poetas como Rilke e Stefan George, "tenha rendido tributo ao esotérico".
O compromisso com o imanente e o mundano revela-se ao leitor logo nas primeiras páginas da antologia; no jovem Brecht a irreverência vem associada a um sentimento niilista da existência, fala-se da solidão e do desespero do homem sob um céu vazio. Expressivo exemplo dessa postura são os poemas do "Manual de Devoção de Bertolt Brecht", que recorrem a formas litúrgicas para veicular os temas mais profanos, como a história da infanticida Maria Farrar ou do parricida Apfelböck, a quem o poeta suplica a compaixão dos leitores; nas estrofes do "Coral de Ação de Graças", o "pobre B.B." louva a escuridão, o frio, a podridão, a "memória ruim do céu".
A transição da postura "a-social" para a "social" poderá ser observada então nas páginas subsequentes, em que o inconformismo antiburguês vai tateando por novas perspectivas. O "Livro de Leituras para Habitantes de Cidades" documenta assim sua aproximação ao marxismo e, desse modo, a constituição da lírica socialista, que atingirá o seu zênite nos "Poemas de Svendborg", um dos marcos da poesia do século 20. Deste livro, escrito sob "o teto de palha dinamarquês", desfilam aqui os epigramas da "Cartilha de Guerra", algumas canções infantis, narrativas em versos sobre figuras como Buda, Empédocles, Lênin e poemas escritos sem rima e em ritmos irregulares, em que o estranhamento estético consiste em incorporar à própria estrutura linguística dos versos as dissonâncias sociais.
Quanto à derradeira fase da lírica brechtiana, cumpre chamar a atenção para o ciclo intitulado "Elegias de Buckow", em alusão ao seu refúgio campestre nos arredores de Berlim: a sugestão do nome vem adensar as imagens "bucólicas" que exprimem, com toda a força simbólica de que esse poeta era capaz, seu desconforto e insatisfação na sociedade que o discurso oficial insistia em apregoar como o "primeiro Estado alemão dos camponeses e operários".
Mas, se a antologia proporciona um contato representativo com essa obra lírica extensa e vária, isso não significa que a tradução esteja isenta de problemas. Traduzir uma poesia cuja complexidade reside, em grande parte, no despojamento formal, na aparente simplicidade dos meios linguísticos (como é também o caso de Manuel Bandeira), oferece dificuldades de que nem sempre o tradutor está consciente. Que apenas dois ou três exemplos sirvam aqui como ilustração.

Horror e pintor
No célebre poema "Mau Tempo para a Poesia", o poeta que acaba de declarar que, em sua canção, "uma rima me pareceria quase uma insolência", exprime logo em seguida, numa desagradável rima interna que Brecht jamais cometeria, o seu "horror pelos discursos do pintor". Aliás, a designação de Hitler como "pintor" mereceria uma nota explicativa, mas, em todo caso, a "Canção do Pintor Hitler" (pág. 110) ajuda a elucidar o epíteto.
Em "Percepção" (1949), a tematização do seu retorno à Alemanha (e o projeto de engajar-se na construção do socialismo) assenta-se, na segunda estrofe, em expressivo quiasmo: "Os esforços ["Mühen"" das montanhas ficam atrás de nós/ Diante de nós ficam os esforços das planícies". A tradução desfigura a rigorosa simetria do quiasmo: "Quando retornei/ Meu cabelo ainda não era [não deveria ser "estava"?" grisalho/ E fiquei contente.// Os trabalhos das montanhas deixamos para trás/ Diante de nós estão os trabalhos das planícies".
Em "Prazeres", de 1954, o último verso, "Freundlich sein", vem traduzido por "ser amigo", e não "gentil", como seria de esperar (Benjamin já chamava a atenção para o relevo que a "gentileza", "Freundlichkeit", possui na concepção de mundo do poeta).
O levantamento dos pontos discutíveis poderia continuar, mas não para diminuir a importância desta ampla antologia, sobretudo porque também se poderiam arrolar aqui vários exemplos em que se soube captar o tom do poema, a atitude fundamental do autor -o que, aliás, o próprio Brecht mais valorizava numa tradução. E isso vale para poemas não só da fase marxista, que revelam o mestre consumado do verso livre, mas também da anterior, como ilustra a canção de alumbramento "Recordação de Marie A.", digna de integrar qualquer antologia de lírica amorosa.



Poemas (1913-1956)
360 págs., R$ 33,00 de Bertolt Brecht. Tradução de Paulo César de Souza. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/816-6777).



Marcus V. Mazzari é professor de teoria literária na USP e autor do livro "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (Ateliê Editorial).


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