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Antologia traz 260 poemas de Bertolt Brecht e abrange toda a obra
em versos do autor de "Coral de Ação de Graças"
Uma lírica entranhada no século
Marcus Mazzari
especial para a Folha
Em um ciclo de "comentários" que
dedica à poesia de Brecht no final dos
anos 30, Walter Benjamin observa que,
entre as diversas posturas que se encontram nessa obra, pela "apolítica", "não-social", o leitor procurará em vão: "A
postura a-social do "Manual de Devoção"
transforma-se, nos "Poemas de Svendborg", em postura social. Mas isso não é
exatamente uma conversão. Nessa obra,
não se incendeia o que anteriormente se
idolatrara". O balanço é provisório, chegando apenas até o ciclo de poemas que
Brecht escreve no exílio dinamarquês de
Svendborg, mas exprime uma tendência
que a trajetória posterior do poeta não
fez senão reforçar.
É o que o leitor brasileiro pode constatar neste volume que compreende 260
poemas de Brecht. Como frequentemente ocorre com antologias, também aqui
seria possível discutir os critérios que
nortearam a seleção, questionar por
exemplo a ausência de poemas mais "antológicos", como a "Lenda do Soldado
Morto" (1918), o breve "rondel" "Tudo
Se Transforma" ou o poema narrativo
sobre a emigração de Lao-Tsé, em que
Brecht tematiza também a resistência
antifascista -poema excluído, segundo
nota do tradutor, em virtude da "perfeição formal" que dificilmente se preservaria em outro idioma (para esses casos,
Brecht prescrevia apenas a transposição
das idéias e da atitude do autor; é o que
poderia ter sido feito com alguns outros
poemas rimados e metrificados).
Registre-se também que esta reedição
ganharia muito com um estudo introdutório que possibilitasse uma melhor
orientação na lírica brechtiana, tão entranhada na história do século 20. Mas,
ressalvas à parte, é necessário sublinhar a
sua representatividade: entre as imagens
expressionistas de um poema que o adolescente escreve em 1913 e os versos elípticos de uma quadra escrita pouco antes
da morte ("Se fôssemos
infinitos"), o leitor poderá
acompanhar a trajetória
desse lírico que Benjamin
admirava sem reservas e a
quem Adorno iria atestar
depois pleno domínio da
"integridade da linguagem", sem que para isso, ao contrário de
poetas como Rilke e Stefan George, "tenha rendido tributo ao esotérico".
O compromisso com o imanente e o
mundano revela-se ao leitor logo nas primeiras páginas da antologia; no jovem
Brecht a irreverência vem associada a
um sentimento niilista da existência, fala-se da solidão e do desespero do homem sob um céu vazio. Expressivo
exemplo dessa postura são os poemas do
"Manual de Devoção de Bertolt Brecht",
que recorrem a formas litúrgicas para
veicular os temas mais profanos, como a
história da infanticida Maria Farrar ou
do parricida Apfelböck, a quem o poeta
suplica a compaixão dos leitores; nas estrofes do "Coral de Ação de Graças", o
"pobre B.B." louva a escuridão, o frio, a
podridão, a "memória ruim do céu".
A transição da postura "a-social" para
a "social" poderá ser observada então nas páginas
subsequentes, em que o
inconformismo antiburguês vai tateando por novas perspectivas. O "Livro
de Leituras para Habitantes de Cidades" documenta assim sua aproximação ao marxismo
e, desse modo, a constituição da lírica socialista, que atingirá o seu zênite nos
"Poemas de Svendborg", um dos marcos
da poesia do século 20. Deste livro, escrito sob "o teto de palha dinamarquês",
desfilam aqui os epigramas da "Cartilha
de Guerra", algumas canções infantis,
narrativas em versos sobre figuras como
Buda, Empédocles, Lênin e poemas escritos sem rima e em ritmos irregulares,
em que o estranhamento estético consiste em incorporar à própria estrutura linguística dos versos as dissonâncias sociais.
Quanto à derradeira fase da lírica
brechtiana, cumpre chamar a atenção
para o ciclo intitulado "Elegias de Buckow", em alusão ao seu refúgio campestre nos arredores de Berlim: a sugestão
do nome vem adensar as imagens "bucólicas" que exprimem, com toda a força
simbólica de que esse poeta era capaz,
seu desconforto e insatisfação na sociedade que o discurso oficial insistia em
apregoar como o "primeiro Estado alemão dos camponeses e operários".
Mas, se a antologia proporciona um
contato representativo com essa obra lírica extensa e vária, isso não significa que
a tradução esteja isenta de problemas.
Traduzir uma poesia cuja complexidade
reside, em grande parte, no despojamento formal, na aparente simplicidade dos
meios linguísticos (como é também o caso de Manuel Bandeira), oferece dificuldades de que nem sempre o tradutor está
consciente. Que apenas dois ou três
exemplos sirvam aqui como ilustração.
Horror e pintor
No célebre poema
"Mau Tempo para a Poesia", o poeta que
acaba de declarar que, em sua canção,
"uma rima me pareceria quase uma insolência", exprime logo em seguida, numa desagradável rima interna que
Brecht jamais cometeria, o seu "horror
pelos discursos do pintor". Aliás, a designação de Hitler como "pintor" mereceria
uma nota explicativa, mas, em todo caso,
a "Canção do Pintor Hitler" (pág. 110)
ajuda a elucidar o epíteto.
Em "Percepção" (1949), a tematização
do seu retorno à Alemanha (e o projeto
de engajar-se na construção do socialismo) assenta-se, na segunda estrofe, em
expressivo quiasmo: "Os esforços ["Mühen"" das montanhas ficam atrás de nós/
Diante de nós ficam os esforços das planícies". A tradução desfigura a rigorosa
simetria do quiasmo: "Quando retornei/
Meu cabelo ainda não era [não deveria
ser "estava"?" grisalho/ E fiquei contente.// Os trabalhos das montanhas deixamos para trás/ Diante de nós estão os trabalhos das planícies".
Em "Prazeres", de 1954, o último verso,
"Freundlich sein", vem traduzido por
"ser amigo", e não "gentil", como seria
de esperar (Benjamin já chamava a atenção para o relevo que a "gentileza",
"Freundlichkeit", possui na concepção
de mundo do poeta).
O levantamento dos pontos discutíveis
poderia continuar, mas não para diminuir a importância desta ampla antologia, sobretudo porque também se poderiam arrolar aqui vários exemplos em
que se soube captar o tom do poema, a
atitude fundamental do autor -o que,
aliás, o próprio Brecht mais valorizava
numa tradução. E isso vale para poemas
não só da fase marxista, que revelam o
mestre consumado do verso livre, mas
também da anterior, como ilustra a canção de alumbramento "Recordação de
Marie A.", digna de integrar qualquer
antologia de lírica amorosa.
Poemas (1913-1956)
360 págs., R$ 33,00
de Bertolt Brecht. Tradução de
Paulo César de Souza. Editora
34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/816-6777).
Marcus V. Mazzari é professor de teoria literária na
USP e autor do livro "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (Ateliê Editorial).
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